"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/07/2020

Jurisprudência 2020 (21)


Obrigação alimentar;
Reg. 4/2009*


1. O sumário de RL 4/2/2020 (1843/18.4T8CSC-A.L1-7) é o seguinte:

I - O art. 936º do CPC apenas determinará a competência de um determinado tribunal quando exista uma acção judicial que tenha corrido termos nos tribunais portugueses.

II - Nas situações em que a decisão que fixou os alimentos tenha sido fixada por uma outra entidade no âmbito de processo que corra termos nas conservatórias do registo civil ou no estrangeiro, não terá aplicação o art. 936º do CPC, havendo que recorrer às regras gerais de fixação da competência para se encontrar o tribunal competente em razão da matéria e da nacionalidade e também do território.

III - A competência internacional dos tribunais portugueses resulta de um conjunto de critérios atributivos de competência estabelecidos no CPC e em convenções internacionais e que se encontram individualizados nos arts. 59º, 62º e 63º do CPC.

IV - O Regulamento (CE) 4/2009 do Conselho de 18 de Dezembro de 2008 relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares é directamente aplicável em todos Estados Membros da União Europeia e prevalece perante as normas internas reguladoras da competência internacional.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Apresenta os presentes autos a particularidade de se tratar de acção com vista à cessação de pensão de alimentos fixada em tribunal estrangeiro, em concreto pelo Tribunal de Família de Peterborough, Reino Unido, sendo que requerente e requerido residem ambos em Portugal.

A apreciação desta questão, e tal como resulta dos arts. 59º e 62º do CPC, decorre do Regulamento (CE) 4/2009 do Conselho de 18 de Dezembro de 2008 relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares.

De referir que, tal como resulta do art. 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e do art. 8º da Constituição da República Portuguesa, este Regulamento é directamente aplicável em todos Estados Membros da União Europeia e prevalece perante as normas internas reguladoras da competência internacional, o que vem expressamente previsto no art. 59º do CPC.

Nos termos do seu art. 1º, este regulamento é aplicável às obrigações alimentares decorrentes das relações de família, de parentesco, de casamento ou de afinidade, aplicando-se a todos e entre todos os Estados-Membros da União Europeia, incluindo o Reino Unido.

Com efeito, e pese embora o Reino Unido não tenha participado na aprovação do regulamento, manifestou a intenção em aceitar o Regulamento através da Decisão da Comissão nº 2009/4517CE, de 8 de Junho de 2009, passando a ser aplicável ao Reino Unido, tendo aí entrado em vigor em 1 de Julho de 2009.

Por outro lado, há que referir que a Dinamarca e o Reino Unido não estão vinculados pelo Protocolo da Haia de 23 de Novembro de 2007 sobre a Lei Aplicável às Obrigações Alimentares.

Este aspecto tem particular importância na medida em que este Protocolo deve ser tomado em consideração no momento da interpretação do Regulamento, nomeadamente no que concerne à lei aplicável nos termos do art. 15 do Regulamento.

No caso dos autos, não estando o Reino Unido vinculado pelo Protocolo da Haia de 2007, o aludido art. 15º não é aplicável no Reino Unido, sendo certo que tal questão é irrelevante para aferição do tribunal competente.

Abrange o Regulamento (CE) 4/2009, os pedidos de fixação de prestações alimentares e também os de alteração, como é o caso dos autos.

Daqui resulta que o tribunal competente para apreciar o pedido de alteração/cessação de alimentos em vigor entre as partes será aquele que for competente de acordo com as regras estabelecidas no Regulamento em causa.

Nos termos do art. 3º do Regulamento, e considerando o objecto da presente acção, são competentes para deliberar em matéria de obrigações alimentares nos Estados-Membros:

a) O tribunal do local em que o requerido tem a sua residência habitual; ou

b) O tribunal do local em que o credor tem a sua residência habitual;

ou

c) O tribunal que, de acordo com a lei do foro, tem competência para apreciar uma ação relativa ao estado das pessoas, quando o pedido relativo a uma obrigação alimentar é acessório dessa ação, salvo se esta competência se basear unicamente na nacionalidade de uma das partes; ou

d) O tribunal que, de acordo com a lei do foro, tem competência para apreciar uma ação relativa à responsabilidade parental, quando o pedido relativo a uma obrigação alimentar é acessório dessa ação, salvo se esta competência se basear unicamente na nacionalidade de uma das partes.

No caso vertente, não sendo o pedido de alteração de alimentos deduzido pelo requerente acessório de qualquer outro, não são aplicáveis ao caso as normas estabelecidas nas als. c) e d), mas tão somente as constantes das als. a) e b), sendo importante salientar que requerente e requerido residem ambos em Portugal, mais concretamente no concelho de Cascais.

Logo, é competente para apreciar o pedido formulado pelo Requerente, o tribunal do Estado-Membro em que o Requerido ou o credor tem a sua residência habitual, ou seja, no caso o tribunal de Cascais, sendo certo que não foi alegado qualquer pacto de jurisdição (v. art. 4º do Regulamento).

Saliente-se que, caso se suscitassem dúvidas quanto à aplicabilidade do presente Regulamento ao caso dos autos, ainda assim seria o tribunal recorrido competente para o seu prosseguimento.

Com efeito, tal como resulta do art. 62º, al. a) do CPC, a competência internacional aí estabelecida decorre da possibilidade de a acção puder ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa.

Relembrando que estamos perante uma acção de cessação de alimentos, e na impossibilidade de aplicação da competência por conexão prevista no art. 936º do CPC, tal como se expôs, e na ausência de uma norma especial de atribuição de competência, o tribunal territorialmente competente seria o do domicilio da requerida, nos termos do art. 80º do CPC.

Consequentemente, o tribunal competente para a apreciação do pedido deduzido pelo requerente, ora apelado, é o tribunal da residência da Requerida, como bem decidiu o tribunal recorrido.

*3. [Comentário] A RL decidiu bem.

Aproveita-se para chamar a atenção para um aspecto importante. Ao contrário do Reg. 1215/2012 -- cujo âmbito de aplicação depende, em regra, da circunstância de o réu ter domicílio num EM (art. 6.º, n.º 1, Reg. 1215/2012) --, a aplicação do Reg. 4/2009 não depende de idêntica circunstância. Isto é: o Reg. 4/2009 tem uma aplicação universal, pelo que, tratando-se de uma obrigação alimentar decorrente de uma relação de família, de parentesco, de casamento ou de afinidade (art. 1.º, n.º 1, Reg. 4/2009), não há nenhuma hipótese de o Reg. 4/2009 não ser aplicado num EM.

Em consequência, tratando-se de uma obrigação alimentar a que se aplique o Reg. 4/2009, não há qualquer possibilidade de aplicação do direito interno de qualquer EM. Sendo assim, não havia nenhum motivo para referir as regras que regulam a competência internacional no CPC e, muito menos, para considerar que o tribunal no qual a acção foi proposta sempre seria competente segundo o disposto no CPC.

MTS