1. Um recente acórdão da RP (RP 18/6/2020 (586/19.6T8VNG-A.P1)) mostra, para alguma surpresa, uma grande dificuldade em lidar com a chamada compensação subsidiária ou eventual.
2. a) No respectivo sumário, afirma-se que:
I - Quem pretende liberar-se de uma obrigação com recurso à compensação tem necessariamente de admitir a preexistência de um crédito por parte daquele a quem se acha juridicamente vinculado e que o demanda para tornar efectivo esse crédito, devendo o devedor, para tanto, efectuar declaração no sentido de que pretende operar a compensação com o crédito que também tem sobre aquele.
II - Não é admissível reconvenção condicional ou subsidiária, para a hipótese de procedência da acção, libertando-se o réu, por meio de compensação, da obrigação que o vinculava ao autor, tendo ele negado a existência do crédito que este tinha sobre si.
Estas afirmações partem de um equívoco. Se a compensação subsidiária não serve para que o réu possa (i) negar, por impugnação ou excepção, a existência do crédito do autor e (ii) deduzir subsidiariamente a extinção deste crédito por compensação com um crédito próprio sobre o autor, então cabe perguntar para que serve a compensação subsidiária.
Pode ainda referir-se que, a seguir-se a orientação da RP, o pedido reconvencional regulado no art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC só seria admissível na hipótese de o réu não contestar ou confessar o pedido do autor e reconhecer o crédito alegado por esta parte. O que se pode perguntar até nem é tanto se, em teoria, esta orientação faz algum sentido (é claro que não faz), mas se, na prática, é esse o uso que se faz daquele preceito. A resposta é clara: a prática quotidiana da aplicação do art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC não confirma aquela restrição.
A realidade é, pois, precisamente aquela que a RP não aceita como admissível: a enorme maioria das compensações judiciárias deduzidas com base no art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC são compensações subsidiárias. Como é claro, se assim não pudesse ser, a aplicação do disposto no art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC não passaria de uma raridade.
Por fim, cabe referir que, se a compensação subsidiária tivesse o âmbito de aplicação que a RP lhe atribui, então bem se poderia dizer que a discussão -- entretanto centenária -- sobre a forma de alegar a compensação em juízo -- se por via de excepção, se por via de reconvenção -- seria pouco mais do que uma "bizantinice", tal o reduzido campo de aplicação dessa compensação. Ora, a discussão tem interesse porque a compensação é frequentemente invocada em juízo, precisamente porque nada obsta à admissibilidade da compensação subsidiária.
b) É certo que a RP cita alguma jurisprudência do STJ que rejeita a admissibilidade da dedução subsidiária da compensação. Só que essa jurisprudência -- anterior ao CPC de 2013 -- padece, ela própria, de um enorme equívoco. Como se sabe, durante a vigência do CPC/1961 havia uma orientação -- talvez até maioritária -- que entendia que, até ao montante dos créditos compensáveis, a compensação devia ser deduzida por via de excepção. Pois bem, perante isto cabe perguntar o seguinte: onde é que alguma vez se entendeu que uma excepção peremptória não pode ser alegada a título subsidiário da defesa por impugnação?
A resposta só pode ser esta: isso jamais foi defendido! Sempre se aceitou, com a maior das naturalidades (e das justificações), que o réu pode começar por se defender por impugnação ("não celebrei o contrato com o autor") e, a título subsidiário, alegar uma excepção peremptória ("se se reconhecer que celebrei o contrato, então o mesmo é nulo"). Transposta esta indiscutível solução para a compensação, isto tinha necessariamente de conduzir, na altura, à admissibilidade de o réu negar o crédito invocado pelo autor (defesa por impugnação) e alegar, a título subsidiário, a excepção de compensação (defesa por excepção).
Sendo assim, a transposição para a actualidade dessa pouco feliz jurisprudência não deveria ter sido realizada sem uma ponderação da sua difícil sustentabilidade no próprio momento em que foi proferida.
3. Contra a admissibilidade da reconvenção subsidiária, a RP invoca o disposto no art. 848.º, n.º 2, CC, que determina que a declaração de compensação é ineficaz, se for feita sob condição ou a termo.
Salvo o devido respeito, há aqui uma confusão. Uma coisa é não ser possível fazer uma declaração de compensação sujeita a uma condição, outra coisa completamente diferente é deduzir em juízo a compensação para o caso de o crédito do autor vir a ser reconhecido. No primeiro caso, a compensação só operaria se se verificasse a condição aposta pelo declarante, no segundo a compensação opera, sem qualquer condição aposta pelo réu reconvinte, logo que esteja verificada a existência do crédito do autor.
Acresce que a existência do crédito do autor não é uma condição da compensação, mas antes um requisito da compensação. Portanto, a dedução subsidiária da compensação em juízo nada tem a ver com a inadmissibilidade da sujeição da declaração de compensação a uma condição.
4. Duas observações finais:
-- A compensação subsidiária ou eventual é uma figura antiga; a título de exemplo, cita-se Oertmann, Die Aufrechnung im Deutschen Zivilprozessrecht (1916), 265 ss., e transcreve-se Rosenberg, Lehrbuch des Deutschen Zivilprozessrechts (1927), 309: "A declaração da compensação é insusceptível de ser sujeita a condição (BGB, § 388 (2)). A alegação da compensação (declarada) pode, como qualquer outro acto processual, ser feita de forma eventual, isto é, pode ser invocada como dependência de um acontecimento intraprocessual, em especial de que o juiz considere o crédito do autor fundamentado ou considere não fundamentada uma outra excepção do réu: é a chamada compensação eventual";
-- Também a título de exemplo, a compensação subsidiária é admitida (naturalmente, pode dizer-se) por Antunes Varela/Pires de Lima, Código Civil Anotado II (1997), 136 (precisamente em anotação ao art. 848.º CC), e por Lebre de Freitas/ I. Alexandre, Código de Processo Civil Anotado I (2018), 533.
MTS