Transacção; legitimidade substantiva;
nulidade*
1. O sumário de RP 6/2/2020 (1552/18.4T8PVZ.P1) é o seguinte:
I - A par dos sujeitos processuais, é de admitir a intervenção de terceiros na transação (art.º 1248º do Código Civil), mesmo sem formalização processual incidental, desde que tenham interesse direto na resolução global do litígio; a transação também pode envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito ou direitos controvertidos, sem recurso às normas que condicionam a alteração do pedido. Ponto é que exista uma conexão objetiva ou subjetiva que justifique a ampliação dos efeitos que se obtêm através da homologação judicial da transação.
II - A legitimidade passiva para a ação não se confunde com a legitimidade substantiva no negócio que a transação encerra.
III - Se, nos termos da ação, tal como o A. a configura, não há preterição de litisconsórcio necessário passivo, a falta de intervenção de um terceiro indispensável na transação pela qual as partes puseram fim ao litígio e constituíram direitos novos sobre determinadas frações autónomas, não é qualificável como falta daquele pressuposto processual, mas como ilegitimidade substantiva para o negócio da transação.
IV - Não pode esta questão ser apreciada em recurso ordinário de apelação da sentença homologatória da transação, porque é nova relativamente às questões sobre as quais o tribunal a quo se debruçou e não é do conhecimento oficioso.
V - Têm as partes ao seu alcance, se nisso tiverem interesse, mesmo após o trânsito em julgado da sentença homologatória, a ação autónoma e o recurso de revisão, nos termos dos art.ºs 291º, nº 2, e 696º, al. d), do Código de Processo Civil.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Vem-nos a recorrente informar, já depois de ter sido proferida a sentença homologatória da transação, em sede de recurso, que tal sentença não atendeu ao facto de o 2º R. D… ser casado em regime de comunhão de adquiridos na data da aquisição das frações e, por isso, estando ainda os bens comuns desse extinto casal pendentes de partilha, não ter legitimidade para sozinho se vincular à oneração com um direito real que integra os bens comuns do casal. Ao homologar uma transação sem a intervenção do ex-cônjuge do 2º R., o Ex.mo Juiz não apreciou, como lhe competia fazer, a validade e a regularidade do negócio celebrado pelas partes, não podendo o 2ª R. dispor daqueles direitos sem a intervenção do seu ex-cônjuge, havendo ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio necessário.
Nos termos do art.º 1682º-A, nº 1, do Código Civil, carece do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime de separação de bens, além do mais, a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns. De acordo com o disposto no art.º 1724º, al. b), daquele mesmo código, fazem parte da comunhão os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio que não sejam excetuados por lei. Casos há em que, apesar de adquiridos na pendência do casamento, os bens não integram a comunhão conjugal (art.ºs 1726º e seg.s do Código Civil).
Compulsados os termos dos articulados da ação e da reconvenção, em parte alguma se observa qualquer referência ao casamento do 2º R., nomeadamente com G…, ao estado dos bens e à sua partilha. Nem há qualquer referência ao momento da aquisição da compropriedade de cada um das frações (não obstante o que resulta dos elementos do registo predial juntos com a petição inicial). Todas as alegações foram produzidas como se o interesse do 2º R. não fosse influenciado nem devesse ser partilhado com terceiros não intervenientes na ação, designadamente um cônjuge ou ex-cônjuge. Somente por requerimento de 12.11.2019 – a sentença homologatória da transação fora já proferida a 17.10.2019 --- o 2º R. juntou aos autos uma certidão do seu assento de casamento, celebrado em 28 de junho de 1990, com a G…, informando nessa mesma data (12 de novembro) que fora preterido o litisconsórcio necessário passivo, ocorrendo, por isso, uma nulidade processual insanável. [...]
O tribunal ad quem apenas pode conhecer, em princípio, das questões que, tendo sido apreciadas na decisão recorrida, constituam objeto do recurso, delimitado este pelas conclusões da alegação (art.ºs 627°, nº 1 e 635º, do Código de Processo Civil). O objeto do recurso é a decisão proferida pelo tribunal recorrido, as questões postas à sua apreciação que ele efetivamente decidiu ou omitiu (devendo decidir) nesse mesmo despacho ou sentença. Pelo recurso, a parte vencida nessa decisão visa obter a sua reapreciação ou reexame e a respetiva modificação, tendo em vista a realização do seu interesse.
Estamos no caso, perante uma questão nova, de que a 1ª instância não conheceu nem podia ter conhecido, por falta de alegação. Só em sede de recurso, depois da prolação da sentença, foi suscitada. Dela a Relação só deve conhecer se for conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2 e 663º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Ora, o 2º R. só não poderia ter disposto do objeto do litígio, por meio da transação, se, na realidade se concluísse pela sua ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio necessário com o seu ex-cônjuge. Na afirmativa, caso estivesse na ação o 2º R. e a G…, os (seus) direitos, a vontade de ambos era suficiente para que a transação fosse lavrada nos termos em que o foi, não se podendo então falar de qualquer ilegitimidade passiva ou de indisponibilidade dos direitos constituídos pela transação.
Importa saber se foi preterido o litisconsórcio necessário do 2º R. com o seu ex-cônjuge.
A legitimidade é um pressuposto processual, do conhecimento oficioso e a sua preterição conduz à absolvição a instância (art.ºs 30º e seg.s, 278º, nº 1, al. d), 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. e) e 578º, do Código de Processo Civil).
É pacífico que desde a reforma processual introduzida pelo Decreto-lei nº 180/96, de 25 de setembro, que alterou a redação do nº 3 do art.º 26º do Código de Processo Civil então em vigor, o legislador tomou posição na antiga querela jurídico-processual que se desenvolve desde o tempo em que foi debatida entre os Prof.s Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães. Fê-lo no sentido da tese deste último professor que, aliás, vinha sendo amplamente defendida na doutrina e na jurisprudência.
A norma manteve-se sem qualquer alteração no novo Código de Processo Civil [...], desta feita sob o art.º 30º, que reza assim:
“1 – O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.2 – O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.3 – Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertia, tal como é configurada pelo autor.”.
Enquanto pressuposto processual, a legitimidade processual representa sempre uma posição da parte em relação a certo processo em concreto --- melhor, em relação a certo objeto do processo, à matéria que nesse processo se trata, à questão de que esse processo se ocupa; uma posição de autor e réu, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objeto do processo. A legitimidade é de determinação casuística, portanto. [Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. II, AAFDL, 1980, pág. 153]
Na perspetiva da tese acolhida na lei, a legitimidade das partes deve ser aferida pela posição que cada uma delas ocupa no litígio, tal como este é configurado na petição inicial pelo autor na ação (nº 3 do art.º 30º). Mas não pode afastar-se do interesse direto em demandar ou do interesse direto em contradizer a que se refere o nº 1 do mesmo artigo. Temos assim que são considerados titulares dos interesses relevantes para efeitos de legitimidade, na falta de indicação da lei em contrário, os sujeitos da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor, atendendo fundamentalmente à substância do pedido formulado e à concretização da causa pedir. Como se referia já no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.2.1997 [...], “a legitimidade tem de ser apreciada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou da improcedência) da ação pode advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e à posição que as mesmas, perante o pedido formulado e a causa de pedir, têm na relação jurídica material controvertida, tal como a apresenta o autor”.
O autor e o réu têm que ter um interesse direto a defender no processo. Só excecionalmente a lei permite que venha prosseguir certo interesse em Juízo o titular de outros interesses, indiretos, ou meramente conexos com o primeiro [...].
A questão de saber se a relação material controvertida existe ou não validamente, se o dever jurídico correlativo se extinguiu ou não, interessa ao mérito da questão. Ao problema da legitimidade importa apenas saber quem são os sujeitos dessa relação --- pressupondo que ela exista --- quais as pessoas a quem a relação realmente diz respeito ou a quem ela interessa de modo direto. É este o sentido seguido na jurisprudência, de que é exemplo ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.10.2004 [...], segundo o qual “a legitimidade processual, que se não confunde com a denominada legitimidade substantiva, requisito da procedência do pedido, afere-se pelo pedido e causa de pedir, tal como os apresenta o autor, independentemente da prova dos factos que integram a última. Assim, a parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, ela for efectivamente seu titular” [...].
Com base neste entendimento, pode afirmar-se, em síntese, que a parte é legítima quando a procedência ou a improcedência da ação lhe diz respeito, segundo o critério do seu interesse direto, tal como o autor o configura. Se a procedência ou improcedência da ação não releva no âmbito do seu interesse direto, ainda que o autor indique um prejuízo colateral de um dos réus em caso de procedência da ação, ele não tem interesse direto em contradizer e, por isso, não é parte legítima. Não basta que o autor dê qualquer contorno ao interesse do réu, que invoque qualquer interesse dele; é necessário que a decisão a proferir, em função do pedido da ação, afete o interesse direto do réu em contradizer.
O art.º 33º reza assim:
“1- Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade.2 - É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.3 - A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.”
O litisconsórcio necessário, que tem carácter excecional, verifica-se se a lei ou o contrato o exigirem, ou quando for imposto pela própria natureza da relação jurídica controvertida, ou seja, desde que, de outro modo, a decisão não produzisse qualquer efeito útil ou, pelo menos, o seu efeito útil normal. Este efeito é produzido quando a decisão define uma situação jurídica que não só não poderá mais ser contestada por qualquer das partes, como ainda é de modo a poder subsistir inalterada não obstante ser ineficaz em confronto dos outros cointeressados e como quer que uma nova sentença venha a definir a posição ou situação destes últimos [...]. Só existe litisconsórcio necessário quando a lei ou a lógica exijam a presença na lide de todos os interessados para que a decisão produza os efeitos erga omnes por ela exigidas; quando o ordenamento jurídico aceita que a decisão possa produzir efeitos só contra algumas pessoas, de modo a que a relação jurídica subsista, ainda que ineficaz face às não partes, não há lugar a litisconsórcio.
No caso de litisconsórcio necessário, há uma única ação com pluralidade de sujeitos (art.º 35º do Código de Processo Civil).
Face ao que a recorrente alega depois da prolação da sentença homologatória, tendemos a admitir que a constituição dos direitos referidos na transação a favor da 1ª R. só seria consentida se nela tivesse intervindo o ex-cônjuge do 2º R., por incidirem sobre direitos a frações que integram o património comum do extinto casal. Só com a sua intervenção a ação poderia vir a sortir o seu efeito útil.
Acontece que, à luz do pedido e dos seus fundamentos, tal como foram delineados na petição inicial e até na generalidade dos articulados da ação e da reconvenção, não há litisconsórcio necessário passivo entre o 2º R. e a sua ex-mulher H…, sendo as frações apresentadas como não integrando qualquer comunhão conjugal ou património de comunhão aguardando partilha de bens de casamento extinto. A legitimidade passiva estava assegurada pelos dois RR. demandados atendendo à relação controvertida tal como o A. a descreveu, não se justificando o agora invocado litisconsórcio necessário passivo entre o 2º R. e a sua ex-mulher.
A criação de novos direitos na transação configura mesmo uma alteração significativa relativamente aos pedidos da ação e da reconvenção.
Face aos termos da ação dados a conhecer ao Sr. Juiz do tribunal recorrido, impunha-se-lhe a sentença homologatória tal como a proferiu, por não haver preterição de litisconsórcio necessário. E impunha-se-lhe fazer intervir na transação o ex-cônjuge do 2º R. se, em devido tempo, antes da prolação da sentença homologatória, tivesse sido alertado para a situação jurídica do património do 2º R. e se, cumprido que fosse o contraditório, aquela se confirmasse. Não foi o que aconteceu. Proferida a sentença, ficou esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art.º 613º, nº 1, do Código de Processo Civil) e não é caso de retificação de erros materiais, suprimento de nulidades ou de reforma da sentença nos termos dos art.ºs 614º e seg.s daquela lei do processo, em que a sua intervenção seria admissível.
A decisão da questão na apelação não permitiria um adequado exercício do contraditório. Como refere o A., nas suas contra-alegações, “(…) os autos ignoram que haja algum dos imóveis em apreço que sejam, de facto, um bem comum do ex-casal pois não basta a mera presunção de que tal bem será comum e é sabido existir – ou ter existido – um processo de partilha, cuja concreta situação é, porém, totalmente desconhecida e ignorada, podendo até já ter sido objeto de partilha a favor do aqui réu”.
A necessidade de intervenção da H… na transação nem sequer emerge dos termos da própria transação, mas da informação posteriormente prestada sobre a situação patrimonial dos bens sobre os quais foram constituídos direitos a favor da 1ª R.
De resto, a intervenção daquela pessoa (terceiro relativamente à ação) na transação também não dependia de qualquer regularização processual subjetiva, como já observámos.
Por conseguinte, não está em causa qualquer litisconsórcio necessário passivo na ação, mas apenas um negócio jurídico consubstanciado na transação que poderá não surtir o seu efeito útil normal, por ilegitimidade substantiva do 2º R.
Desta questão nova não impõe a lei o seu conhecimento oficioso (pela Relação) em sede de recurso ordinário, restando às partes, mesmo que transitada em julgado a sentença, recorrer aos mecanismos de impugnação previstos no art.º 291º, nº 2 e 696º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil, se nisso entenderem haver viabilidade e tiverem interesse atendível, com observância do contraditório e do necessário formalismo legal.
*3. [Comentário] a) A RP terá querido decidir by the book, mas não deixou de advertir para a invalidade da transacção resultante da
situação de indivisão subsequente ao divórcio e decorrente, por isso, da falta de participação do ex-cônjuge de um dos réus.
Este resultado não deixa de ser algo perturbador, pelo que talvez se pudesse ter sido algo imaginativo para evitar improcedência do recurso e a confirmação da sentença homologatória da transacção. Esta confirmação implica, em termos práticos, a confirmação da validade de uma transacção que a própria RP intui que é nula pela falta do ex-cônjuge de um dos réus.
b) Um primeiro aspecto a considerar é o de que a transacção judicial é regulada quer pelo direito substantivo, quer pelo direito processual (art. 291.º, n.º 1, CPC). Atendendo a isto não pode deixar de se colocar a questão de saber qual é o âmbito do controlo que cabe ao tribunal de recurso no controlo da sentença homologatória da 1.ª instância.
Pode certamente responder-se que este controlo é o mesmo que em qualquer recurso: o controlo fica limitado pelos fundamentos do recurso. No entanto, como sucede em qualquer recurso, o tribunal ad quem pode sempre considerar matéria de conhecimento oficioso.
Disto decorre que a Relação pode sempre recusar a homologação da transacção (ou da confissão ou desistência do pedido) com base numa nulidade não invocada pelo recorrente. O que se pode então perguntar é se, suspeitando a Relação de uma nulidade não alegada pelo recorrente, não lhe cabem poderes instrutórios próprios para se certificar da existência ou inexistência da nulidade. Supõe-se que, sendo a nulidade da transacção resultante da ilegitimidade de uma das partes matéria de conhecimento oficioso (art. 286.º CC), não é difícil aceitar que a RP pudesse utilizar os poderes inquisitórios atribuídos pelo art. 411.º CPC (que, de modo algum, estão restringidos à 1.ª instância).
A nulidade de que o tribunal pode conhecer oficiosamente não é apenas aquela que é patente em função dos dados do processo. É também aquela que o tribunal tem razões para investigar e que, através do uso dos poderes inquisitórios, pode confirmar ou infirmar. Também isto vale para a 1.ª e a 2.ª instâncias.
No caso concreto, sucede ainda que para confirmar a eventual nulidade da transacção teria bastado considerar a certidão de casamento do segundo réu junta ao processo e, eventualmente, pedir a certidão da partilha de bens dos cônjuges (ou documento equivalente).
c) Acresce um outro aspecto. Se a RP tivesse confirmado através da referida prova documental a nulidade da transacção pela não participação do ex-cônjuge de uma das partes, isso implicaria a recusa da sua homologação e, portanto, a não extinção da instância (art. 277.º, al. d), a contrario). Isto permitiria que, voltando necessariamente o processo à 1.ª instância, nesta viesse eventualmente a ser sanado o vício -- ou no processo (o que não era necessário) ou apenas na celebração da transacção (o que era indispensável).
Tudo isto teria sido uma melhor solução -- também sob o ponto de vista da economia processual -- do que remeter as partes e o ex-cônjuge não participante para um outro processo com a finalidade de obter a declaração de nulidade da transacção entretanto homologada pela própria RP.
E tudo isso poderia ter sido obtido com a mera consideração de uma certidão de casamento constante do processo e do eventual comprovativo da partilha de bens entre os ex-cônjuges. Em suma: a RP ficou a duas simples provas documentais (no caso concreto, até quase de certeza a apenas uma) de encontrar uma solução muito mais adequada.
MTS