"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/07/2020

Jurisprudência 2020 (28)



Reg. 2201/2003;
responsabilidades parentais; domicílio do menor


1. O sumário de RE 30/1/2020 (205/09.9TBABT-H.E1) é o seguinte:

- No âmbito da regulação do exercício das responsabilidades parentais, a competência internacional dos tribunais portugueses é aferida, com base no critério da residência habitual dos menores à data da instauração da acção, de acordo com o disposto no art. 8º, nº 1, do Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27.11 e no art. 9º do RGPTC.

- Para efeitos de se saber qual a residência habitual, haverá que atender-se à factualidade alegada no requerimento inicial.

- Não especificando a lei o que se deve entender por residência habitual, tal conceito deve ser interpretado no sentido da residência do local onde o menor tiver maior permanência, no sentido de facilitar a reunião dos elementos necessários à defesa dos seus interesses, enquanto residência estável e duradoura.

- No caso em apreço, estando o menor em França, desde Agosto de 2017, onde se encontra habitualmente a viver e a estudar, na companhia da sua mãe, aqui requerente, forçoso é concluir que o tribunal francês está melhor colocado do que o de Portugal para a prolação de uma decisão em conformidade com o superior interesse da criança.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Apreciando, de imediato, a questão suscitada pela requerente, ora apelante, importa, desde já, referir a tal propósito que resultou apurada nos autos a seguinte factualidade:

- O menor (…), filho da requerente e do requerido, está a residir com a progenitora em França, desde finais de Agosto de 2017 até ao momento, sem qualquer interrupção.

- Os presentes autos apenas foram instaurados no decurso do ano de 2019.

Como sabemos, a competência do tribunal constitui um pressuposto processual, sendo assim um dos elementos de cuja verificação depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a pretensão deduzida e, como qualquer outro pressuposto processual, a competência é aferida em relação ao objecto da acção apresentado pelo requerente.

Como se refere no recente Ac. do STJ de 10/10/2013, disponível in www.dgsi. que aqui seguimos de perto (relator Oliveira Vasconcelos), são normas de competência internacional aquelas que atribuem a um conjunto de tribunais de um Estado o complexo de poderes para o exercício da função jurisdicional em situações transnacionais. Vigoram na ordem jurídica portuguesa normas de fonte interna e normas de fonte supra estadual.

Destas, destacam-se, como fonte comunitária e com relevo para o caso dos autos, o Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução das decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, aplicável às acções judiciais, actos autênticos e acordos posteriores a 1 de Março de 2005 – cfr. artigo 72º do Regulamento. O Regulamento é directamente aplicável a todos os Estados Membros, em conformidade com o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia (arts. 1°, 68° e 76° e, em Portugal, o art. 8° da Constituição da República Portuguesa) e prevalece perante as normas reguladoras da competência internacional previstas no Código de Processo Civil.

Aliás, a actual redacção do art. 59° do C.P.C. já ressalva o que se acha estabelecido em tratados, convenções e regulamentos comunitários.

Vejamos então o que se dispõe no supra aludido Regulamento com interesse para a decisão da questão em apreço.

Ora, a regra estabelecida naquele Regulamento para a competência dos tribunais quanto à responsabilidade parental, na parte que interessa para presente decisão, consta do art. 8º, nº 1, onde se estipula que os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.

Também o art. 9º, nº 1, do RGPTC, a propósito da competência do tribunal, estipula que, para decretar as providências cautelares cíveis é competente o Tribunal da residência da criança no momento em que o processo for instaurado.

Face à questão posta e tendo em conta a regra de competência internacional acima transcrita, temos, pois, que determinar qual a residência habitual do menor à data da instauração destes autos.

Já vimos que nos termos do artigo 8º do Regulamento, o que interessa para o efeito é a residência habitual do menor à data da instauração dos presentes autos. E tal dispositivo refere que os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado, à data em que o processo seja instaurado no tribunal. À luz desse sistema, está vedado condicionar a atribuição da competência à emissão de um juízo sobre a natureza dos órgãos jurisdicionais do Estado, aos quais, de acordo com o seu direito interno, caberia dirimir a causa. O Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro, que entrou em vigor no dia 1 de Agosto de 1994, excepto os artºs 67º e 70º aplicáveis a partir de 1 de Março de 2005, vigorava na data em que os presentes autos foram instaurados.

Sobre o conceito de residência habitual, refere-se no guia prático para aplicação do Regulamento nº 2201/2003 elaborado pelos serviços da Comissão Europeia, que esse conceito “cada vez mais utilizado em instrumentos internacionais, não é definido pelo Regulamento, mas deve ser determinado pelo juiz em cada caso com base nos elementos de facto. O significado da expressão deve ser interpretado em conformidade com os objectivos e as finalidades do Regulamento. Deve-se sublinhar que não se trata de um conceito de residência habitual com base na legislação nacional, mas de uma noção “autónoma” de legislação comunitária. Se uma criança se deslocar de um Estado-Membro para outro, a aquisição da residência habitual no novo Estado-Membro deveria, em princípio coincidir com a “perda” da residência habitual no anterior Estado-Membro. A determinação caso a caso pelo juiz implica que enquanto o adjectivo “habitual” tende a indicar uma certa duração, não se pode excluir que uma criança possa adquirir a residência habitual num Estado-Membro no próprio dia da sua chegada, dependendo de elementos de facto do caso concreto”.

Conforme refere Carlos Melo Marinho in Textos de Cooperação Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial, 2008, a página 56, “a definição de residência habitual não está vertida no Regulamento Bruxelas e não corresponde, também, a qualquer definição nativa. Deverá, antes, ser obtida pelo juiz à luz dos elementos fácticos disponíveis e dos fins e objectivos do sempre invocado Regulamento, tendo presente que se está perante um conceito autónomo emergente do Direito Comunitário. Tal conceito, de natureza flexível e alargada, permite ao julgador, por exemplo, concluir, em função das circunstâncias específicas da situação em apreço, ter a criança adquirido uma residência habitual num Estado Membro no próprio dia da chegada a esse Estado”.

À luz desse sistema, está vedado condicionar a atribuição da competência à emissão de um juízo sobre a natureza dos órgãos jurisdicionais do Estado, aos quais, de acordo com o seu direito interno, caberia dirimir a causa.

No caso em apreço, apurou-se que o menor (…), filho da requerente e do requerido, está a residir com a progenitora em França, desde finais de Agosto de 2017 até ao momento, sem qualquer interrupção.

Ora, o art. 8º do Regulamento (CE) 2201/2003, de 27/11 – em cujos termos os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado, à data em que o processo seja instaurado no tribunal – não oferece dúvidas de que, na situação concreta, o menor, filho da requerente e do requerido residia, à data da instauração dos presentes autos, em França e só depois foi intentado este incidente em Portugal.

Assim sendo, não podemos deixar de considerar que o menor tem e tinha, à data da instauração destes autos, a residência habitual em França e que as suas vindas a Portugal são inexistentes ou, quando muito, precárias, pois vive e estuda, com carácter de regularidade, em França. Por isso, a instauração destes autos, por parte da requerente, no nosso país, terá ocorrido, eventualmente, por estar convencida de que logrará obter mais benefícios do que os que lhe serão concedidos pelo tribunal francês!

Como vimo o artigo 8.º determina que os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal e, por isso, a competência internacional deve aferir-se pelo critério da residência habitual do menor.

Ora, o conceito de "residência habitual", na acepção dos artigos 8.º e 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.º 1347/2000, deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar – Acórdão da 1.ª Secção do Tribunal de Justiça da UE, de 22.12.2010, processo C-497/10 PPU: Barbara Mercredi/Richard Chaffe.

Seguindo de perto esta jurisprudência, não se vê como se possa sustentar que o menor em causa não tem a sua residência habitual em França. Com efeito, desde Agosto de 2017 que o menor sempre tem vivido, com carácter de regularidade, em França, na companhia da sua mãe, ora requerente, estando o mesmo confiado à sua guarda e cuidados.

Deste modo, forçoso é concluir que o tribunal francês está melhor colocado do que o de Portugal para a prolação de uma decisão em conformidade com o superior interesse da criança, conseguindo com maior facilidade reunir os elementos necessários à defesa dos interesses da criança, tendo em conta que o (…) lá tem vivido, com carácter de regularidade, desde Agosto de 2017, na companhia da sua progenitora – cfr., nesse sentido, entre outros, o Ac. da R.E. de 27/9/2012, o Ac. da R.G. de 12/7/2016 e os Acs. da R.P. de 21/2/2017 e 6/3/2018, todos disponíveis in www.dgsi.pt.

Nestes termos, atentas as razões e fundamentos supra referidos, resulta claro que o tribunal português – mais concretamente o Juízo de Família e Menores de Abrantes – tem de ser considerado internacionalmente incompetente para dirimir o pleito aqui em causa."


[MTS]