"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/12/2021

Jurisprudência 2021 (93)


Garantia on first demand;
procedimento cautelar; procedência*


1. O sumário (?) de RL 6/5/2021 (3962/21.0T8LBS.L1-8) é o seguinte:

- A audição das requeridas inviabilizará não só o efeito surpresa, como induzirá, com elevada probabilidade, a 2ª requerida a accionar de imediato as garantias bancárias – salientando-se que a citação não tem como efeito a paralisação dos efeitos jurídicos do que é peticionado até à decisão final.

- Tal conduzirá inevitavelmente ao pagamento das respectivas quantias pela entidade bancária ora 1ª requerida e consequente dever de reembolso por parte da requerente, com os efeitos patrimoniais daí advenientes, o que, de forma irremediável nesta fase (estamos perante uma providência antecipatória), impede o efeito útil, a eficácia de qualquer decisão a proferir nestes autos, pelo que se impõe o afastamento do contraditório (art. 366º, n.º 1 do CPC).

- Não suscitando dúvidas a maior exigência quanto à prova do direito invocado neste tipo de providências, que não se deve bastar com juízos de verosimilhança, antes devendo ser a respectiva prova inequívoca, segura, já no que respeita à exigência de prova pré-constituída, não sujeita a instrução, resumindo-se a mesma a prova documental (ou quiçá pericial) se nos afigura excessiva e sem qualquer correspondência no disposto no artº 362º e ss. do CPC.

- Na medida em que a paralisação do accionamento de garantia bancária não constitui um procedimento cautelar específico, com regras próprias, está sujeito ao regime geral, não se justificando que a peculiaridade, adveniente da natureza autónoma da garantia, imponha uma derrogação daquele regime no que respeita aos meios de prova. Nem se vislumbra que os factos integrantes do comportamento abusivo, da má fé, da fraude, não possam ser sujeitos a instrução, mormente mediante prova testemunhal, sujeita à livre apreciação pelo juiz.

- A prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso evidente do beneficiário da garantia bancária on first demand pode ser efetuada pelos meios legalmente admissíveis, designadamente documental e testemunhal.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A requerente interpôs procedimento cautelar comum pedindo a notificação:

“a) Da 1.ª Requerida para se abster imediatamente de qualquer pagamento à 2ª e 3ª Requeridas ao abrigo (i) da Garantia Bancária G 301395 emitida em dezembro de 2012 pelo valor de € 870.496,00, (ii) da Garantia Bancária G 302328 emitida em abril de 2014 pelo valor de € 165.493,38 e (iii) da Garantia Bancária G 302114 emitida em janeiro de 2014 pelo valor de € 90.842,00;

b) Das 2ª e 3ª Requeridas no sentido de suspenderem imediatamente o acionamento das referidas Garantias Bancárias.” [...]

O Tribunal recorrido indeferiu liminarmente o procedimento cautelar por manifesta improcedência, considerando não se verificar um dos requisitos do seu decretamento – o comportamento abusivo da 2ª requerida – por o mesmo não ser suscetível de prova testemunhal, dado que o mesmo não resulta dos documentos juntos pela requerente.

Nos termos do art. 362º e ss. do CPC, são requisitos do decretamento de procedimentos cautelares não especificados que se verifique a existência de um direito, já existente ou emergente, na esfera jurídica do requerente e que é o objeto da ação declarativa ou executiva conexionada com o procedimento instaurado; que haja um fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável a esse direito; que a providência requerida seja adequada a remover o perigo de lesão existente e ainda que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que se pretende evitar.

A requerente pretende obter a suspensão do acionamento de garantias autónomas on first demand, que prestou.

Neste tipo de garantia o garante (o banco) fica constituído na obrigação de pagar imediatamente, a simples pedido do beneficiário, sem poder discutir os fundamentos e pressupostos que legitimam o pedido de pagamento, designadamente, sem poder discutir o incumprimento do devedor nem invocar em seu benefício qualquer meio de defesa relacionado com o contrato base, celebrado entre o ordenador e o beneficiário. É, pois, exequível mediante simples, imotivada, ou potestativa comunicação pelo beneficiário do incumprimento da obrigação principal do mandante.

A obrigação garantida é devida "mesmo que a relação principal se mostre inválida e sem que o garante possa opor ao beneficiário os meios de defesa do devedor, visto que o garante assume uma obrigação própria, independente (desligada) do contrato base. Nem o devedor pode, por isso, impedir o garante de prestar a soma acordada logo que o beneficiário a solicite " (cfr. Almeida Costa e Pinto Monteiro, in “Garantias Bancárias. O contrato de garantia à primeira solicitação”, C.J. 1986. t. V, págs. 15 e segs).

Conforme escrevem estes autores pode haver recusa a pagar de imediato a garantia nos seguintes casos: a) de prova inequívoca de fraude manifesta; b) de abuso evidente por parte do beneficiário.

Nessa medida – escrevem os referidos autores –, o devedor pode impedir o pagamento ou execução da garantia através de medidas de natureza cautelar se possuir provas inequívocas do abuso evidente por parte do beneficiário.

Também na jurisprudência se tem entendido que é possível instaurar procedimento cautelar com vista a obter a suspensão do pagamento deste tipo de garantias desde que se produza prova líquida e inequívoca que o beneficiário atua com má fé, abuso de direito, fraude à lei, ou em caso de extinção da garantia por cumprimento ou outra causa similar (dação em cumprimento, compensação), resolução ou caducidade, tendo em conta as características específicas dessas garantias, com especial realce para a sua autonomia em relação ao contrato subjacente, reservando o decretamento de tais providências para situações excecionais, sob pena desse desvirtuar a finalidade da obrigação autónoma automática (Neste sentido v. Ac. STJ de 23/06/2016, Ac. da Relação de Lisboa de 10/11/2016 e de 09/06/2016, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Não suscitando dúvidas a maior exigência quanto à prova do direito invocado neste tipo de providências, que não se deve bastar com juízos de verosimilhança, antes devendo ser a respetiva prova inequívoca, segura, já no que respeita à exigência de prova pré-constituída, não sujeita a instrução, resumindo-se a mesma a prova documental (ou quiçá pericial) se nos afigura excessiva e sem qualquer correspondência no disposto no artº 362º e ss. do CPC.

Na medida em que a paralisação do acionamento de garantia bancária não constitui um procedimento cautelar especifico, com regras próprias, está sujeito ao regime geral, não se justificando que a peculiaridade, adveniente da natureza autónoma da garantia, imponha uma derrogação daquele regime no que respeita aos meios de prova. Nem se vislumbra que os factos integrantes do comportamento abusivo, da má fé, da fraude, não possam ser sujeitos a instrução, mormente mediante prova testemunhal, sujeita à livre apreciação pelo juiz.

Seguimos, pois, a corrente jurisprudencial menos restritiva, segundo a qual a prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso evidente do beneficiário pode ser efetuada pelos meios legalmente admissíveis, designadamente documental e testemunhal (Neste sentido Ac. da Relação de Lisboa de 25/10/2012 e de 09/06/2016, in www.dgsi.pt).

Enunciadas estas especificidades e sendo admissível o recurso ao procedimento cautelar cremos que a análise da prova e a sua admissibilidade terá de ser vista neste contexto – o contexto das providencias cautelares – não se impondo as limitações enumeradas na decisão recorrida.

Essa restrição aos meios de prova admissíveis concretizar-se-ia na exigência de que o garante demonstre a falta de cabimento material da pretensão do beneficiário exclusivamente através de “provas líquidas”, quando essa carência não resulte de factos notórios. Contudo, o que seja de entender por “meios de prova líquidos” é altamente controvertido: alguns defendem que líquida é exclusivamente a prova documental, outros admitem ainda a prova pericial, debate-se acerca da “liquidez” da prova testemunhal e da possibilidade da valoração dos depoimentos das partes. Por outro lado, alguns autores sustentam que apenas seria admissível o recurso pelo garante a provas pré-constituídas. Só através destas restrições – invoca-se – seria respeitado o “fim da liquidez” da garantia autónoma à 1ª solicitação, pois só assim se permitiria ao beneficiário uma rápida obtenção da soma de garantia”, Miguel Brito Bastos, in Recusa licita da prestação pelo garante na garantia autónoma “on first demand”, Estudos em homenagem ao Prof Doutor Sérvulo Correia, Vol. III, p.547.

Entendemos que a prova líquida, pronta e inequívoca pode extrair-se de qualquer meio de prova permitido em direito e não apenas da prova documental, sendo por isso possível o recurso a prova testemunhal” (Ac. da Relação do Porto de 23/02/2012, in www.dgsi.pt).

Soçobra, assim, o fundamento da inidoneidade da prova testemunhal requerida para prova do requisito da providência solicitada, em que se estribou a decisão recorrida para concluir pela manifesta improcedência do procedimento cautelar. [...]

[...] a apelante requereu a produção de prova testemunhal sem audição prévia das requeridas – o que é atendido na presente decisão".

*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, não se pode acompanhar a orientação defendida no acórdão. Note-se que isso sucede, não porque a dispensa da audição prévia das requeridas e a produção de prova testemunhal não possam verificar-se num procedimento cautelar destinado a obstar ao accionamento de uma garantia autónoma, mas antes porque a decisão tomada no acórdão é contraditória com uma das premissas em que assenta.

Com efeito, a RL adere à posição segundo a qual, no procedimento cautelar com vista a obter a suspensão do pagamento de garantias autónomas, é necessário que "se produza prova líquida e inequívoca [de] que o beneficiário atua com má fé, abuso de direito, fraude à lei, ou em caso de extinção da garantia por cumprimento ou outra causa similar (dação em cumprimento, compensação), resolução ou caducidade". No rigor dos princípios, esta orientação (que agora não se discute) significa que esse procedimento só pode ser considerado procedente se houver justificação para nele inverter o contencioso (art. 369.º, n.º 1, CPC).

Ora, o que não é coerente é exigir que se produza no procedimento cautelar uma prova "ilíquida e inequívoca" e, ao mesmo tempo, aceitar -- como o acórdão aceita -- que a correspondente providência possa vir a ser decretada sem audição prévia do requerido. Se há coisa indiscutível no âmbito do processo civil é a de que, sem a garantia do exercício do contraditório, nada pode ser líquido e inequívoco.

Quer dizer: se se exige uma prova "líquida e inequívoca", então a providência cautelar nunca pode ser decretada sem a audição do requerido.

MTS