"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/12/2021

Jurisprudência 2021 (97)


Recurso de revisão;
falsidade de depoimento


1. O sumário de STJ 13/5/2021 (3606/12.1TBBRG-A.G1.S2) é o seguinte:

I. A revisão de decisão judicial transitada com fundamento na al. b) do art. 696º do CPC, designadamente quando se trate de falsidade de depoimento testemunhal, depende da demonstração da falsidade do meio de prova que tenha sido determinante da decisão, isto é causal ou concausal da decisão.

II. Verificada a condenação de uma testemunha pela prática do crime de falsidade do depoimento prestado na audiência final que precedeu a sentença que decretou a anulação de um testamento por incapacidade do testador e a anulação de um contrato de cessão de quinhão hereditário por erro, depoimento que influiu na formação da convicção relativamente aos factos que a 1ª instância e, depois, a Relação consideraram provados e não provados, verifica-se o nexo de causalidade exigido pela al. b) do art. 696º do CPC.

III. Ainda que na condenação criminal a falsidade do depoimento testemunhal tenha sido especificamente evidenciada relativamente aos factos de que resultou a anulação do testamento, revelar-se-ia artificial o estabelecimento de uma distinção relativamente aos dois negócios jurídicos que estavam em discussão, tanto mais que a credibilidade que foi atribuída ao depoimento da testemunha adveio do facto de ser magistrado judicial e de ter uma relação de proximidade com os outorgantes em ambos negócios jurídicos: conviveu com o testador, viveu em união de facto com a filha deste e estava a par do relacionamento existente entre esta e o seu irmão que vieram a celebrar o contrato de cessão do quinhão hereditário.

IV. Nestas circunstâncias, é legítimo concluir que se acaso qualquer das instâncias tivesse conhecimento da falsidade do depoimento testemunhal nos termos que veio a ser penalmente sancionado, tal elemento não deixaria de ser ponderado na avaliação da credibilidade de todo o depoimento, quer quando foi proferida a sentença de 1ª instância quer, depois, quando a Relação apreciou a impugnação da decisão da matéria de facto.

V. Verificando-se, assim, a relação de concausalidade entre o depoimento falso e o acórdão da Relação que confirmou a sentença que declarara a anulação do contrato de cessão de quinhão hereditário, estão preenchidos os pressupostos da revisão extraordinária desse acórdão. 


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II – Elementos a ponderar:

1. A recorrente sustentou o recurso de revisão nos seguintes fundamentos que, atenta a especificidade deste recurso e o facto - realmente invulgar e grave - de ser sustentado na falsidade do depoimento testemunhal prestado por um juiz de direito (que, entretanto, foi compulsivamente aposentado por Deliberação do Conselho Superior da Magistratura publicada no D.R., II Série, de 15-10-2019) [...]

III – Decidindo:

1. O recurso extraordinário de revisão regulado nos arts. 696º e ss. do CPC constitui um instrumento excecional que permite quebrar a resistência de uma decisão coberta pelo caso julgado, no pressuposto de que, em casos tipificados, os valores da segurança e da certeza jurídica inerentes ao caso julgado material devem ceder perante a demonstração de circunstâncias cuja gravidade abala os alicerces da própria decisão.

É nestes casos que uma decisão judicial transitada em julgado pode ser anulada, com efeitos que podem desencadear, consoante as circunstâncias, a retoma da tramitação processual a partir do momento em que ocorreu o vício ou a substituição da decisão por outra isenta do vício processual ou adjetivo que a afetou.

Um grupo de situações é enunciado na al. c) do art. 696º, preceito que abarca não apenas a falsidade do depoimento (de parte, testemunhal ou outro), mas ainda a de qualquer declaração ou documento prestado ou apresentado na ação em que o meio de prova foi apreciado e valorado. Ponto é que o meio de prova cuja falsidade seja reconhecida (in casu, o depoimento testemunhal) tenha sido determinante para a decisão a rever e que a matéria da falsidade probatória não tenha sido - devendo sê-lo - objeto de discussão e de apreciação no processo em que o meio de prova foi apresentado.

A verificação de um nexo de causalidade entre a falsidade do meio probatório e a decisão judicial que com base no mesmo foi proferida constitui um requisito comum a todas as situações acauteladas pelo art. 696º, al. b), do CPC, sendo necessário que se possa afirmar que o concreto meio de prova exerceu influência decisiva no resultado ou, noutros termos, que foi causa adequada do resultado que veio a ser declarado na ação.

2. Trata-se de matéria relativamente à qual a doutrina e a jurisprudência é uniforme, como o comprovam diversos arestos, entre os quais o Ac. do STJ, 6-6-19, 98/16, www.dgsi.pt, no qual estava em causa um depoimento testemunhal. Nele se alude á verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

- Que se demonstre a falsidade do depoimento;

- Que se estabeleça um nexo de causalidade adequada entre a falsidade do depoimento e o resultado da ação em que foi proferida a sentença, em termos de se poder afirmar que o depoimento falso foi determinante para esse resultado;

- E que a falsidade do depoimento não tenha sido objeto de discussão no processo em que foi proferida a sentença.

Noutra perspetiva, foi precisamente a falta do nexo de causalidade que serviu de justificação à improcedência do pedido de revisão apreciado no Ac. do STJ 27-4-17, 978/06, www.dgsi.pt, relatado pelo ora relator, num caso em que “a decisão da matéria de facto foi sustentada em depoimentos testemunhais, servindo o relatório pericial (arguido de falso) para corroborar esses depoimentos”. Outrossim no Ac. do STJ, de 7-2-13, 877-B/2002, www.dgsi.pt, também relatado pelo ora relator, no qual se asseverou que “a invocação da falsidade de documentos, declarações ou depoimentos para efeitos de recurso extraordinário de revisão não prescinde da verificação de um nexo de causalidade adequada relativamente à decisão revidenda”.

Anote-se ainda, também a título exemplificativo, o Ac. do STJ, de 7-4-11, 1242-L/1998, em www.dgsi.pt, no qual se concluiu que “a revisão não pode ter como base, apenas, indícios da razão daquele que a pretende, mas sim uma consistente demonstração de que essa razão é provável, ou seja, o art. 771º do CPC (de 1961) exige que o documento por si só indicie tal probabilidade”.

Repare-se que não é exigível que o meio de prova em causa tenha sido o fundamento único da decisão da matéria de facto; basta que tenha sido um dos meios de prova que contribuiu decisivamente para a formação da convicção do tribunal, relevando para o efeito o que tenha ficado espelhado na motivação da decisão revidenda.

Como refere Amâncio Ferreira, em Manual dos Recursos Cíveis, 8ª ed., p. 315, “é condição essencial que haja um nexo de causalidade entre a peça falsa e a decisão revidenda; quer dizer, é necessário que a decisão se baseie na prova viciada, ou que ela tenha determinado a decisão que se pretende rever”. E, citando Rodrigues Bastos, acrescenta que “não é indispensável que a decisão a rever tenha como única base ou se funde exclusivamente no documento ou ato judicial cuja falsidade foi verificada. Basta que possam ter determinado aquela decisão, que nela tenham exercido influência relevante”.

Assim foi decidido recentemente, num caso semelhante, no Ac. do STJ 7-10-20, 2262/16, www.dgsi.pt, relatado pela ora segunda adjunta, em cujo sumário se refere, alem do mais, que: 

“… IV - Pode assim concluir-se que a falsidade do depoimento testemunhal foi concausal em relação à inserção do facto descrito no ponto III, e, consequentemente, foi também concausal em relação à decisão de improcedência da ação.

V - De acordo com orientação doutrinal que se acompanha não é de exigir que a falsidade do meio probatório em crise tenha sido a causa exclusiva da decisão, bastando que tenha, de acordo com a teoria da causalidade adequada comummente aceite pela doutrina e pela jurisprudência nacionais, sido uma das causas da mesma decisão.

VI - Ora, a partir dos elementos do processado que culminou na decisão revidenda, resulta que o depoimento testemunhal (cuja falsidade se encontra provada) teve influência muito relevante tanto sobre a sentença como sobre o acórdão da Relação, admitindo-se que, no que se refere a este último – que é afinal a decisão revidenda – tal influência tenha mesmo sido determinante.

VII - Apurar se, excluído o depoimento falso, a decisão de facto se manterá ou não, é o objetivo da “fase rescisória” do recurso extraordinário de revisão e não da presente “fase rescidente” na qual apenas cabe proceder à apreciação da verificação do fundamento invocado para o recurso. …”.

3. [...] Importa, [...] pois, apreciar se o facto de a testemunha que depôs na audiência final na ação declarativa ter sido condenada pela prática de um crime de falsidade do depoimento constitui fundamento suficiente para decretar a revisão do acórdão da Relação, transitado em julgado, que confirmou a sentença de 1ª instância que decretou a anulação do contrato de cessão de quinhão hereditário. Para o efeito cumpre avaliar essencialmente se e em que medida o depoimento testemunhal que foi cominado de falso pode ou não ser considerado determinante da decisão revidenda.

A pretensão extraordinária foi apreciada pela Relação, a qual, com base nos elementos documentais que foram mencionados e parcialmente reproduzidos no relatório inicial, julgou-a improcedente. Concluiu que, apesar de a testemunha CC (na altura juiz de direito) ter sido condenada pelo crime de falsidade do seu depoimento, não se verificaria o nexo de causalidade previsto no art. 696º, al. b), do CPC, entre a falsidade que foi criminalmente sancionada e a decisão cível respeitante à anulação da cessão de quinhão hereditário.

4 Analisando o acórdão da Relação, em conjugação com a sentença de 1ª instância que apreciou e motivou a matéria de facto provada e não provada, constata-se que aquele modificou a decisão a respeito de alguns factos em que fora sustentada a anulação do testamento, mas manteve intacta a decisão de facto na parte relacionada com o pedido de anulação da cessão do quinhão hereditário.

Da motivação constante da sentença de 1ª instância, na parte relativa à decisão da matéria de facto provada e não provada, consta a expressa referência ao depoimento prestado pela testemunha CC relativamente a ambos os blocos de factos, quer o relacionado com a anulação do testamento, quer o atinente à anulação da cessão de quinhão hereditário. Asseverou-se que em relação a cada segmento da realidade a referida testemunha revelou ter conhecimento direto, por ter contactado com cada um dos intervenientes nos negócios jurídicos [...].

Por seu lado, a Relação, dentro do objeto da impugnação da decisão da matéria de facto, apreciou os meios de prova que foram indicados pela recorrente, mas fundamentalmente acabou por apoiar-se na motivação que fora exposta na sentença de 1ª instância, à qual aderiu, designadamente na parte em que nela se atribuiu credibilidade ao depoimento da testemunha CC.

É, pois, dentro destas balizas que deverá apreciar-se em que medida o depoimento da testemunha CC, para além de ter sido determinante da anulação do testamento (cujo resultado foi invertido através do recurso ordinário de apelação), também o foi relativamente à anulação do contrato de cessão de quinhão hereditário.

Para o efeito não pode olvidar-se que qualquer depoimento testemunhal é precedido da prestação de juramento, nos termos dos arts. 513º e 459º do CPC, comprometendo a testemunha a depor com veracidade sobre o que he for perguntado. Por outro lado, como decorre do art. 516º, a testemunha, ao depor com precisão sobre a matéria a que é inquirida, deve revelar a razão de ciência e quaisquer circunstâncias que possam justificar o seu conhecimento.

Todos estes aspetos assumem especial relevo no caso concreto, atenta a relação de proximidade para-familiar (decorrente da união de facto com a ora recorrente) que existia entre a testemunha e os demais intervenientes em ambos os negócios jurídicos: testador, a filha beneficiada pela deixa testamentária e o outro filho cedente do quinhão hereditário.

5. Vejamos o que se nos depara no caso concreto:

5.1. O acórdão criminal emanado deste Supremo Tribunal de Justiça, que confirmou o acórdão da Relação no processo-crime, julgou “procedente a pronúncia contra o “arguido CC, pela prática do crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo art. 360º nºs 1 e 3, do Cód. Penal”. [...]

Perante um depoimento testemunhal prestado por um magistrado judicial que até justificou a sua condenação penal e que, além disso, deu azo à aplicação da pena disciplinar de aposentação compulsiva (deliberação do Conselho Superior da Magistratura publicada no D.R., II Série de 15-10-2019), toda a credibilidade que lhe foi atribuída por ambas as instâncias ficou inquinada, independentemente de o foco da ação criminal ter incidido mais sobre o que foi relatado pela testemunha acerca das condições psíquicas do testador e menos sobre as circunstâncias em que foi outorgada a cessão do quinhão da herança.

A conclusão diversa que foi extraída no acórdão recorrido em torno do modo como no tribunal de 1ª instância e, depois, na Relação, foram apreciados e reapreciados os meios de prova que serviram para sustentar cada uma das decisões da matéria de facto provada e não provada (redundando na afirmação da falsidade causal em relação ao que foi decidido relativamente ao testamento e na negação dessa causalidade ou concausalidade a respeito da cessão do quinhão hereditário) de modo algum consegue ultrapassar o teste da fiabilidade ou da credibilidade do depoimento da testemunha relativamente a toda a matéria a que foi inquirida.

Com efeito, se, porventura, como veio a comprovar-se posteriormente, o tribunal de 1ª instância e, depois, a Relação se tivessem apercebido de que o depoimento da testemunha era falso em relação a algum dos factos relatados acaso teria sido atribuída ao depoimento a credibilidade que serviu para sustentar a decisão relativamente a outros factos?

Por simples dedução lógica, a resposta não pode deixar de ser negativa, resultado que mais se acentua quando se verifica que a testemunha, depois do envolvimento que teve na outorga do contrato de cessão do quinhão hereditário, acabou por tomar o partido do outro interessado, numa altura em que tinha cessado a união de facto com a ora recorrente, o que se refletiu no aconselhamento relativamente à instauração da ação de anulação de ambos os negócios jurídicos.

Não é pelo facto de não estar em causa neste recurso extraordinário de revisão o segmento decisório respeitante à anulação do testamento, que a Relação oportunamente revogou pela via ordinária do recurso de apelação, que o crime de falsidade do depoimento deixa de relevar para revisão do outro segmento decisório.

A prestação de um depoimento testemunhal clara e inequivocamente marcado pelo perjúrio relativamente a um dos negócios jurídicos (testamento) maculou indelevelmente todo o depoimento que também foi determinante para o que foi decidido acerca do outro negócio (cessão do quinhão da herança), tanto mais que quanto a este se revelou especialmente importante a prova testemunhal, considerando que estavam em causa factos relacionados com as motivações do cedente e a alegada estratégia da ora recorrente para conseguir convencê-lo a outorgar a cessão.

O acréscimo de causalidade relativamente ao efeito persuasivo do depoimento testemunhal em causa é mais evidente quando se verifica que a testemunha era um magistrado judicial e que, por esse facto, estava especialmente vinculado ao dever de colaborar na sã administração da justiça, o que envolvia a prestação de depoimento testemunhal verdadeiro imposto quer pelas normas gerais, quer pelas regras estatutárias. [...]

6. Reunidos estão, pois, os requisitos para a procedência do recurso extraordinário de revisão, o que, nos termos do art. 701º, nº 1, al. b), implica a anulação do acórdão da Relação, na parte em que apreciou o pedido e a causa de pedir atinentes ao contrato de cessão de quinhão hereditário, com reflexos também na anulação do segmento correspondente da sentença de 1ª instância.

É por isso que, atenta a falsidade do depoimento prestado pela testemunha CC, deverá ser retomada a audiência final, com exclusão desse depoimento e com a realização das diligências de prova que forem consideradas pertinentes, com eventual aproveitamento dos demais depoimentos que foram prestados."

[MTS]