"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/12/2021

Jurisprudência 2021 (99)


União de facto; reconhecimento judicial;
legitimidade passiva; interesse em agir


I. O sumário de RL 13/5/2021 (6227/20.1T8LSB.L1-2) é o seguinte:

1.– Nas acções em que o pedido de reconhecimento judicial da união de facto assume natureza instrumental face a futuro pedido de atribuição de nacionalidade portuguesa ao elemento estrangeiro do mesmo, a relevância que tal atribuição assume no seio do Estado Português, leva a que o mesmo seja parte legítima na acção, representado pelo Ministério Público nos termos do disposto nos artgs. 219.º, n.º 1 da CRP e 4.º, n.º 1, al. b) do Estatuto do Ministério Público.

2.– Pedindo os AA. o reconhecimento de que vivem em união de facto, há mais de três anos, nos termos e para os efeitos previstos na Lei nº 7/2001, de 11/05, e do artigo 3º, nº 3, da Lei nº 37/81, de 03/10, e alegando factualidade tendente a fundamentar a sua pretensão, têm interesse em agir, o qual se traduz na necessidade de obter decisão judicial que reconheça a união de facto invocada, por forma a habilitar a A. a requerer a aquisição da nacionalidade portuguesa.

3.– Não sendo uniforme a orientação jurisprudencial nos tribunais superiores quanto à admissão da revisão/confirmação das escrituras “de união estável”, tal é suficiente para que não possa o tribunal recorrido impor aos AA. que façam uso desse meio processual, coartando-lhes, dessa forma, o acesso à presente acção, em manifesta violação do disposto no n.º 2 do art. 2.º do CPC.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"III. Fundamentação

[...] 2.–De direito

[...] são duas as questões que importa conhecer no âmbito do presente recurso, pelo que passaremos à sua análise.

A–Da ilegitimidade do Estado Português como parte na presente acção

Considerou-se na sentença que o Estado Português, representado pelo Ministério Público, seria parte ilegítima nesta acção, dado ter-se entendido que «na acção de reconhecimento da união de facto só interesses individuais se defendem, quais sejam, o direito de ver publicamente reconhecida uma situação jurídica de facto que beneficia de protecção constitucional e legal, constitui efectiva relação familiar apesar de não constar do elenco das fontes jurídico familiares, e donde resultam direitos e deveres para os seus destinatários.»

Quer os apelantes, quer o Ministério Público, têm entendimento contrário, sendo certo que os secundamos.

Na realidade, a acção em causa foi intentada, como expressamente é referido no introito da petição inicial, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 3.º da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro e no n.º 2 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro, isto é, foi instaurada visando obter uma decisão que constituirá pressuposto necessário para que possa posteriormente ser formulado o pedido de nacionalidade portuguesa do elemento estrangeiro do casal.

A ser assim, como é, afigura-se-nos que a acção em causa foi intentada, e bem, contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, pois que nesta acção mostram-se também em discussão interesses de âmbito nacional, na medida em que estará em causa a eventual atribuição dum pressuposto necessário para que seja conferido a um estrangeiro a possibilidade de lhe ser conferido o estatuto de cidadão português, com os inerentes direitos e deveres que tal atribuição encerra. Não estamos, assim, perante uma acção em que apenas estejam em causa interesses individuais dos requerentes envolvidos.  

Como se refere no ac. da Relação de Lisboa de 25-10-2018 [P.º 25835/17.1T8LSB.L1-6, em que foi relator Adeodato Brotas [...]]

«(…). E essa acção foi instaurada contra o Estado Português, como não podia deixar de ser, por ser o titular dos interesses em jogo, como réu, nessa acção.
 
Como é sabido, a Lei da Nacionalidade (Lei 37/81, de 03/10, com as diversas alterações, as relevantes, dadas pela Lei 25/94, de 19/08 e pela Lei Orgânica 2/2006, de 17/04) estabelece no seu artº 3º, relativo à aquisição da nacionalidade em caso de casamento ou união de facto, que:
 
1-O estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do matrimónio.
2-
3- O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.”
 
Portanto, sem necessidade de grandes considerandos, verifica-se que a acção que os autores instauraram, para que lhes seja reconhecida, no confronto com o Estado Português, que vivem em união de facto há mais de três anos, é uma exigência da lei portuguesa da Nacionalidade: a autora mulher jamais conseguirá obter, no actual quadro legislativo, a concessão de nacionalidade portuguesa se não instaurar esta acção.
 
Ora, também sem sombra de dúvida, essa acção para reconhecimento da situação da união de facto, só pode ter como sujeito passivo o Estado Português. (…)»

Como refere, também, o Digno Magistrado do Ministério Público nas suas alegações, «A acção de reconhecimento judicial da união de facto surge enquanto pressuposto para a aquisição da nacionalidade, de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade. (…).

A nacionalidade, enquanto vínculo político que se estabelece entre um determinado indivíduo e uma comunidade de cidadãos, além de abarcar uma questão identitária, releva também para a atribuição de certos direitos, civis e políticos, apenas reservados na sua plenitude, a «nacionais».

A acção de reconhecimento da união de facto destina-se, assim, à declaração judicial de existência da união de facto, enquadrando-se no tipo de acção declarativa de simples apreciação, conforme o artigo 10.º, n.ºs 2 e 3, alínea a), do Código de Processo Civil, na medida em que, através dela, se visa “obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto”.

Considerando os supra mencionados interesses subjacentes à acção de reconhecimento das uniões de facto para efeitos de atribuição da nacionalidade, sendo a acção judicial intentada contra o Estado português, entende-se que o Ministério Público tem legitimidade passiva na defesa dos interesses do Estado-Coletividade, nos termos do disposto no art. 219º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e do art. 4º, nº 1, al. b) do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei nº 68/2019 de 27-08.»

Efectivamente, tendo em consideração o que se deixa dito, designadamente a natureza instrumental da presente acção, em que se visa reconhecer judicialmente a união de facto de um casal tendo por escopo o futuro pedido de atribuição de nacionalidade portuguesa ao elemento estrangeiro do mesmo e a relevância que tal atribuição assume no seio do Estado Português, representando o Ministério Público este, nos termos do disposto nos artgs. 219.º, n.º 1 da CRP e 4.º, n.º 1, al. b) do Estatuto do Ministério Público, entende-se que o mesmo é parte legítima na presente acção.  

B – Do interesse em agir por parte dos AA.

Na decisão recorrida entendeu-se que os AA. não teriam interesse em agir, alicerçando-se essa posição no «facto da união de facto dos autores já ter sido reconhecida notarialmente pelo Estado brasileiro, o que determina que se lance mão do processo de revisão a que alude o artigo 980º do Código de Processo Civil e não, por falta de interesse em agir, excepção dilatória inominada, de uma acção declarativa comum de reconhecimento da união marital porquanto a mesma já foi objecto de reconhecimento pela ordem jurídica brasileira.»

Discordamos de tal entendimento.

Como resultou do ponto 1 da matéria dada como provada, o fim pretendido pelos AA. com a instauração da presente acção é o de dar cumprimento ao que dispõem os artgs. n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade e no n.º 2 do artigo 14.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, que fazem referência expressa à necessidade de ser instaurada acção para reconhecimento judicial da situação de união de facto.

O entendimento assumido pela Exma. Juíza no despacho recorrido, no sentido de que os AA. são já detentores dum reconhecimento notarial brasileiro da sua união de facto, por via do documento que juntaram com a sua petição inicial, carecendo assim, tão-só, de ver esse documento revisto no nosso ordenamento jurídico, nos termos do que despõem os artgs 980.º e seguintes do CPC, não pode ser assumido como posição generalizada na jurisprudência dos nossos tribunais, pois que se trata de situação ainda muito discutida, onde se alinham posições antagónicas.

Com efeito, se é certo que há quem sustente essa possibilidade[...][...], não é menos verdade que outros defendem a insusceptibilidade de tais documentos serem passíveis de “revisão de sentença estrangeira”[...], pelo que não se poderá assumir, face às posições não consensuais e mesmo contrárias da jurisprudência, que quem pretende fazer valer um seu direito a ver reconhecida a união de facto do casal, lhe veja barrada uma das possibilidades, quiçá a legalmente menos controversa, de o fazer.

Saliente-se até, que em recente acórdão desta Relação de Lisboa [De 17-12-2020, no P.º 1904/20.0YRLSB-6 (Adeodato Brotas) [...]], se considerou ser indevida a instauração da acção de revisão de sentença estrangeira visando precisamente a obtenção da nacionalidade, tendo-se entendido estar-se perante situação de falta de interesse em agir, posto que se defendeu que tal finalidade apenas poderia ser alcançada através da propositura de acção visando o reconhecimento da união de facto. Disse-se aí:

«1– Instaurando um cidadão português e uma cidadã brasileira, ambos residentes no Brasil, acção de revisão de sentença estrangeira, pedindo que “sejam revistas e confirmadas as Escrituras Públicas Declaratórias de União Estável, celebradas pelos Requerentes, com todas consequências legais, designadamente para os fins do art. 3º, da Lei nº 37/81, de 3/10 …”, tem de concluir-se que não têm interesse em agir.

2 E não têm interesse em agir porque:
(i)- A sentença de revisão de escritura de união estável não substitui a (necessária) acção declarativa para reconhecimento de vivência em união de facto por mais de três anos, a instaurar nos tribunais cíveis contra o Estado Português, como o exige o art. 3º nº 3 da Lei da Nacionalidade;
(ii)- Além disso, a sentença de revisão/confirmação que viesse a reconhecer/confirmar a escritura de união estável, não teria eficácia de caso julgado em relação ao Estado Português, não produzindo, por isso, os mesmos efeitos da acção de declaração de vivência em união de facto, por mais de três anos, exigidos por aquele art. 3º nº 3 da mencionada Lei da Nacionalidade;
(iii)- Finalmente, conforme decorre do art. 978º nº 2 do CPC, se os requerentes pretendem aproveitar-se dessa escritura de união estável, que celebraram no Brasil, podem usá-la na acção a instaurar para a finalidade do art. 3º nº 3 da Lei da Nacionalidade, nos termos dos arts. 365º nº 1 e 371º nº 1 do CC.
 
3– O interesse em agir apura-se, além do mais, pela necessidade de tutela judicial que é aferida, objectivamente, perante o direito subjetivo alegado pelo autor: o autor tem interesse em agir se da situação descrita e peticionada resulta que necessita da tutela judicial para realizar ou impor o seu direito.
 
4– Por isso, percebe-se que o interesse em agir, enquanto pressuposto processual, impõe algumas restrições ao exercício do direito à jurisdição ou da garantia de acesso aos tribunais, dado que condiciona esse recurso aos tribunais à efectiva necessidade de tutela judicial e à inexistência de qualquer outro meio, processual ou extraprocessual, para obter a realização do direito subjectivo alegado/pretendido pelo autor.»

Efectivamente, resultando claro da petição inicial que o pedido formulado pelos AA. de que seja reconhecido judicialmente a sua união de facto, visa obter o pressuposto legal necessário para a obtenção da nacionalidade portuguesa, atento o disposto nos referidos artgs. 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 03/10 e 14.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro, não se poderá considerar estarmos perante uma situação de falta de interesse em agir, tanto mais, quanto é insofismável que os citados preceitos legais inseridos nos respectivos diplomas, apontam para a necessidade de que seja instaurada acção de reconhecimento da união de facto entre os requerentes. 

Na realidade, os AA. não pediram o reconhecimento da validade do que consta do documento que subscreveram e intitularam de “Contrato de Convivência”, mas o reconhecimento judicial, perante o Estado Português, da sua união de facto, com o interesse expressamente manifestado na PI de tal reconhecimento judicial vir a instruir o pedido que pretendem formular para a aquisição de nacionalidade portuguesa, conforme expressamente previsto nas disposições legais invocadas.

Neste sentido, de que não nos encontramos perante um caso de falta de interesse em agir, veja-se o que foi sustentado no recente acórdão da Relação de Lisboa de 23-03-2021 [P.º 11440/19.1T8LSB.L1-7, Relatora Cristina Coelho [...]]:

«(…). É inegável, face à causa de pedir e ao pedido, que os AA. têm interesse em agir, ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido, o qual se traduz na necessidade de obter decisão judicial que reconheça a união de facto invocada, por forma a habilitar o A. a requerer a aquisição da nacionalidade portuguesa.
 
Conforme escrevia Manuel de Andrade, em Noções Elementares de Processo Civil, pág. 79, o interesse em agir, ou “interesse processual”, “consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial. É o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece”.
 
Os AA. não requereram o reconhecimento da validade do declarado na escritura de “pacto de união estável”, que outorgaram em Cartório Notarial no Brasil em 1.6.2001, apenas tendo alegado que, pelo menos desde aquela data, vivem em condições análogas às dos cônjuges, juntando a referida escritura como meio de prova.(…).»

Pelo que se deixa dito há pois que concluir não se verificar a excepção de falta de interesse em agir, procedendo assim a questão suscitada pelos apelantes."

[MTS]