"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/12/2021

Jurisprudência 2021 (91)


Acção de divisão de coisa comum;
gestão processual


1. O sumário de RP 27/4/2021(5962/20.9T8VNG.P1) é o seguinte:

I – Por força do princípio geral previsto no artigo 2.º, n.º 2, do Código do Processo Civil (CPC) relativo à garantia de acesso aos tribunais, no âmbito de uma ação especial de divisão de coisa comum, haverá sempre todo o interesse, na medida do possível, em procurar discutir e decidir as questões que, para além da divisão, envolvam o prédio dividendo.

II – Não é necessariamente inviável a cumulação de pedidos, envolvendo um deles a forma de processo de divisão de coisa comum e o outro a forma de processo comum, conquanto se possam verificar os pressupostos do art. 555º CPC, conjugado com o art. 37º, nº2 do mesmo Código.

III – Uma vez apurada a indivisibilidade do prédio e restando discernir das questões relativas ao contributo de cada um dos comproprietários para a aquisição do imóvel, decidindo-se pela prossecução dos autos, no essencial, como processo comum, nada obsta, à luz de uma adequada gestão processual, que o litígio possa ser dirimido numa mesma ação.

IV – Perante as exigências de simplificação e agilização processuais impostas pelo artigo 6º do CPC, apenas se deve considerar como tramitação “manifestamente incompatível”, nos termos e para os efeitos dos art.s 266.º, n.º 3 e 37.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aquela que obrigue à pratica de atos processuais concretamente inconciliáveis.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Delimitemos, brevemente, o que está em causa na presente sede de recurso.

A sentença sob escrutínio entendeu verificar-se uma exceção dilatória que impede o tribunal de conhecer do mérito da causa. Segundo a decisão apelada, a cumulação de pedidos, por força do disposto no art. 555º, nº1, do Código do Processo Civil (CPC) apenas é possível se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação nomeadamente o facto de aos pedidos corresponderem formas de processo diferentes (art. 37º, nº1, do CPC). Ora, estando em causa a divisão do imóvel em causa no processo – pedido que segue a tramitação prevista nos arts. 925º e segs. do CPC (processo especial de divisão de coisa comum) – e, paralelamente, a condenação do réu no âmbito de uma ação que segue a forma de processo comum regulada nos arts. 552º e segs. do mesmo diploma legal, estaria verificada a dita impossibilidade.

Entende diferentemente a recorrente. Alega que as diversas formas de processo - especial e comum – não são incompatíveis e que, de acordo com o preceituado nos n.ºs 2 e 3 do indicado artigo 37.º, pode o juiz autorizar a cumulação e a reconvenção, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio. Adenda a apelante que o artigo 2.º, n.º 2, do CPC adverte para a garantia de acesso aos tribunais e que, por via do artigo 6.º, compete ao juiz adotar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a resolução do litígio em prazo razoável.

Perante este litígio, cumpre apreciar e decidir. [...]

[...] atenhamo-nos ao caso concreto.

No mesmo, cumula-se um pedido no qual é requerida a declaração da compropriedade do prédio em causa nos autos e da sua natureza indivisível com um outro onde se pede a condenação do réu a pagar à autora o valor de €17.903,16, acrescido de juros desde a citação até efetivo e integral pagamento. Na contestação apresentada foi, entretanto, aceite a natureza indivisível do imóvel e deduzido pedido reconvencional, decorrente dessa indivisibilidade, no qual se requer a condenação da autora/reconvinda a pagar ao réu/reconvinte a quantia de €4.239,78.

Ou seja, concluindo-se que o imóvel em apreço é, por natureza, indivisível, estão concretamente em causa as questões relativas ao contributo, à proporção, de cada um dos comproprietários para a aquisição do imóvel na medida em que estes não chegam a um entendimento quer quanto à alegada quantia própria da A. de que o R. se serviu para liquidar integralmente o empréstimo bancário contraído por ambos para a aquisição do imóvel quer quanto à alegada quantia própria do R. despendida numa fase inicial para a aquisição do referido prédio.

E, neste cenário concreto, entendemos, salvo o devido respeito, que o poder/dever de gestão processual abarca a dita cumulação. Neste sentido, remetendo para a fundamentação expressa no acórdão citado do STJ, deve considerar-se, genericamente, que a “perturbação” na tramitação processual resultante da cumulação de formas processuais distintas não é “enjeitada” pela lei processual civil salvo se a mesma for manifestamente incompatível (artigo 37º, nºs. 2 e 3 do CPC). Materializando, o Supremo Tribunal explica que “incompatibilidade manifesta (intolerável, gritante) só existirá naqueles casos em que se imporia (ou, pelo menos, em que houvesse o risco de isso suceder) praticar atos processuais contraditórios ou inconciliáveis. Não basta que se esteja perante tramitações desajustadas umas das outras, pois que isso sempre acontece, em maior ou menor grau, em formas processuais diferentes.”

Neste mesmo sentido, o Acórdão da Relação de Évora de 17 de Janeiro de 2019, processo nº 764/18.5T8STB.E, recenseado pelo STJ, assume uma opção igualmente por nós sufragada e que evita remeter as partes para uma outra ação com o prejuízo decorrente em termos de acesso à justiça.

Deste modo, “data venia”, citemos o percurso argumentativo num caso similar ao nosso: “(...) o artigo 2.º, n.º 2, do CPC adverte para a garantia de acesso aos tribunais, mediante todos os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção, salvo se a lei disser o contrário, o que neste caso não diz; e, por via do artigo 6.º da mesma codificação compete ao juiz adoptar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a almejada justa-composição do litígio em prazo razoável.

Deste modo, fazemos nossas as judiciosas considerações tecidas no Ac. TRG de 20.09.2014, para concluir que «o interesse em discutir e decidir todas as questões que, para além da divisão, envolvem os prédios dividendos, (…) evitando dessa forma que ele se veja compelido a recorrer à propositura de uma outra acção para ver o seu direito reconhecido, para além de não beliscar qualquer daqueles princípios estruturantes, assume indiscutível relevância e que justifica plenamente a admissão da reconvenção.

E o próprio processo especial de divisão de coisa comum contém em si os mecanismos adequados para adaptar o processo à cumulação autorizada bastando, para o efeito, seguir o “iter” inverso ao do despacho recorrido: em vez de decidir em primeiro lugar da possibilidade de proferir logo decisão sobre as questões suscitadas pelo pedido de divisão para, em face disso, concluir depois pela incompatibilidade de tramitação, começar por, reconhecendo o interesse relevante na admissão da reconvenção e, verificada a impossibilidade de conhecer sumariamente das questões suscitadas, mandar seguir os termos, subsequentes à contestação, do processo comum.

Parece-nos, assim, que os princípios subjacentes àqueles poderes/deveres de gestão e adequação processual atribuídos ao juiz impõem que, acção de divisão de coisa comum, se for deduzida reconvenção em que o demandado formule pedido de indemnização por benfeitorias feitas no prédio dividendo, deverá a reconvenção ser admitida, ao abrigo do disposto nos artigos 266º, n.º 3 e 37º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Civil ordenando-se, em consequência, que o processo siga os termos, subsequentes à contestação, do processo comum.”

É certo que a questão relativa a eventuais créditos dos comproprietários aquando da aquisição do imóvel não surge, neste processo, apenas a partir do pedido reconvencional mas é logo articulada no próprio petitório, invocando um enriquecimento sem causa aquando do pagamento do imóvel, através da amortização total do empréstimo bancário, e depois novamente trazida à colação por força da reconvenção aduzida que alega uma contribuição acrescida do comproprietário demandado. Mas, ainda assim, o argumento expendido acima mantém-se incólume. Assim, apurando-se da indivisibilidade do prédio, sempre se concluiria, em sede de ação especial de divisão de coisa comum, não poder a questão ser sumariamente decidida e como tal a mesma teria que seguir os termos do processo comum, conforme imposto pelo artigo 926º, nº3 do CPC.

Deste modo, sem prejuízo da situação de “fronteira” com que, efectivamente, lidamos nos autos, entendemos poder em ordem a salvaguardar o processado, em obediência a uma visão dúctil do processo civil, que procura, até ao limite, salvaguardar a possibilidade de as partes terem acesso à justiça sem terem que intentar, por questões de índole essencialmente formal, ações sucessivas, dever fazer improceder a exceção dilatória alegada pelo réu.

Donde, os autos devem prosseguir segundo os termos do processo declarativo comum para apuramento dos contributos de cada um dos comproprietários, salvaguardando-se, em sede de gestão processual, a admissibilidade do pedido reconvencional deduzido. Deste modo, pode promover-se uma audiência prévia, para os efeitos do art. 929º, nº 2 do CPC, e, na falta de acordo sobre a adjudicação, proceder à instrução e julgamento em sede de processo comum das questões controvertidas relativas às quotas detidas por cada uma das partes litigantes, analisando as causas de pedir atinentes a estes pedidos de cada um dos comproprietários, e após decisão final sobre esta matéria, fixados os quinhões, promover-se eventualmente a respetiva venda.

Miguel Teixeira de Sousa abordou igualmente esta polémica no seu blog defendendo uma solução que vai ao encontro daquela por nós sufragada (leia-se https://blogippc.blogspot.com/2019/05/jurisprudencia-2019-18.html ).

Por esta via, agora devidamente detalhada, afigura-se-nos possível, ainda que com o ónus da acrescida complexidade processual, compaginar numa só ação a apreciação dos pedidos vertidos no petitório e na contestação, sem que ocorra a prática de atos processuais inconciliáveis, “manifestamente incompatíveis”, logrando-se, então, cumprir princípios processuais fundamentais do nosso Código (vide epígrafe do Título I) no que concerne à garantia de acesso aos tribunais e ao dever, que impende sobre os tribunais, de gestão processual (artigos 2º e 6º do CPC).

Por força do princípio geral previsto no artigo 2.º, n.º 2, do Código do Processo Civil (CPC) relativo à garantia de acesso aos tribunais, no âmbito de uma ação especial de divisão de coisa comum, haverá sempre todo o interesse, na medida do possível, em procurar discutir e decidir as questões que, para além da divisão, envolvam o prédio dividendo.

Porém, o dissídio em apreço não queda ainda encerrado.

Na verdade, o apelado, em sede de resposta às alegações, levanta uma outra questão relativa às regras de competência dos tribunais em razão da matéria. Alega o recorrido que, ainda que se discorde da decisão do tribunal de primeira instância, sempre se depararia um segundo obstáculo inultrapassável quanto à cumulação de pedidos por ofensa das regras da competência dos Tribunais em razão da matéria. Destarte, a recorrente intentou a presente ação na Instância Central Cível de Vila Nova de Gaia face ao valor do pedido e tendo em conta a cumulação efetuada. Entende o apelado, que, como resulta do preceituado no art.º 130º nº 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º Lei n.º 107/2019, de 09/09), os presentes autos, porque de divisão de coisa comum, seriam da competência da Instância Local Cível. Acresce que a infração das regras de competência em razão da matéria integra a exceção dilatória da incompetência absoluta, a qual se apresenta de conhecimento oficioso – art.º 96º, alínea a) e 97º, nº 2 do CPC.

A resposta ao tema central em discussão abarca, a nosso ver, a solução para este novo problema formal.

É que, tendo-se optado pelo aproveitamento máximo dos presentes autos, extirpando-se, como vimos, a forma especial da ação de divisão de coisa comum, seguindo-se agora, no essencial, o formalismo da ação declarativa sob a forma de processo comum (artigo 926º, nº3 do CPC, já citado), conclui-se ser este o tribunal competente para julgamento do litígio atento o valor da ação e a sua natureza concreta agora delimitada."

[MTS]