"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/12/2021

Jurisprudência 2021 (90)


Caso julgado; limites objectivos;
livre apreciação da prova; poderes do STJ*


1. O sumário de STJ 13/4/2021 (2395/11.1TBFAF.G2.S1) é o seguinte:

I - O STJ conhece matéria de direito, como princípio geral de um tribunal de revista, sendo as decisões proferidas pela Relação no plano dos factos, em regra, irrecorríveis (arts. 662.º, n.º 4, 674.º, n.º 3, e 682.º, n.os 1 e 2, do CPC).

II - O STJ pode, no entanto, sindicar a aplicação da lei adjectiva pela Relação em qualquer das dimensões relativas à decisão da matéria de facto provada e não provada (arts. 662.º, n.os 1 e 2, 674.º, n.º 1, al b), do CPC) – não uso ou uso deficiente ou patológico dos poderes-deveres em segundo grau –, com a restrição constante do art. 662.º, n.º 4, do CPC.

III - Assumindo-se a 2.ª instância como um verdadeiro e próprio segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto, com autonomia volitiva e decisória nessa sede, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostraram acessíveis com observância do princípio do dispositivo, sempre que essa reapreciação se move no domínio da livre apreciação da prova e sem se vislumbrar que tenha desrespeitado a força plena de qualquer meio de prova, imposta por regra vinculativa extraída de regime do direito probatório, essa actuação regida pelo art. 662.º, n.º 1, do CPC é insindicável em sede de revista, nos termos conjugados dos arts. 662.º, n.º 4, e 674.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC.

IV - Tem sido jurisprudência constante do STJ que, por via da válvula de escape residual de reapreciação da matéria de facto prevista no art. 674.º, n.º 3, 2.ª parte, amparada no art. 682.º, n.º 2, 2.ª parte, sempre do CPC, a revista possa servir legitimamente para controlar o uso da construção de presunções judiciais utilizadas pelas instâncias, tendo em vista verificar a violação de norma legal (nomeadamente os arts. 349.º e 351.º do CC), a sua coerência lógica (ilogismo manifesto e evidente) e a fundamentação probatória de base quanto ao facto conhecido. Esse controlo jurisdicional não abarca a migração e consideração de factos provados em outro processo envolvendo as partes, ao abrigo da autoridade de caso julgado (que não é de conhecimento oficioso), para conjugar essa factualidade prejudicialmente vinculativa por decisão judicial anterior com a factualidade provada no processo a decidir, a fim de extrair, em conjunto, a sua convicção quanto à aplicação do direito confrontado com o material probatório trazido ao processo (art. 607.º, n.º 4, pela remissão do art. 663.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC), culminada na subsunção jurídica pertinente.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Tem sido jurisprudência constante do STJ que, por via da válvula de escape residual de reapreciação da matéria de facto prevista no art. 674º, 3, 2ª parte, amparada no art. 682º, 2, 2.ª parte, sempre do CPC, a revista possa servir legitimamente para controlar o uso da construção de presunções judiciais utilizadas pelas instâncias, tendo em vista verificar a violação de norma legal (nomeadamente os arts. 349º e 351º do CCiv.), a sua coerência lógica e a fundamentação probatória de base quanto ao facto conhecido[...].

Neste encalce, do objecto recursivo consta o ataque a uma alegada presunção judicial operada pelo acórdão recorrido, no que respeita (ainda) aos limites físicos dos prédios em confronto, tendo por base um acórdão proferido noutro processo que opôs as partes a respeito de uma questão diversa do presente objecto litigioso (então, incidiu sobre a existência de um direito de servidão de passagem por usucapião).

A presunção consiste na dedução, na inferência, no raciocínio lógico por meio do qual se parte de um facto certo, provado ou conhecido (“base da presunção”), e se chega a um facto desconhecido (“facto presumido”) – art. 349º do CCiv. A presunção judicial, natural ou de facto funda-se nas regras práticas da experiência, ou seja, nos ensinamentos decorrentes da observação (empírica) dos factos.

Será que, antes de tudo o mais, usou o acórdão recorrido desse método dedutivo-empírico para definir a matéria de facto relativa aos limites físicos (“linha divisória”) dos prédios referidos nos factos provados 1 e 7.?

Para este efeito, interessa destacar as parcelas do acórdão recorrido sobre este ponto.

Em primeiro lugar, o acórdão recorrido [...] considerou ter “relevo para a apreciação do objeto da apelação” o constante “do acórdão de fls. 312-337 v.º – proferido por esta Relação a 15-10-2013, no âmbito do processo n.º 461/11……..., intentado pelos ora autores contra os ora réus”–, “cujo trânsito em julgado é admitido por ambas as partes, sendo certo que o acórdão desta Relação proferido nos presentes autos a 28-09-2017 adverte que o decidido no mencionado processo através do aludido acórdão vincula as partes”. O acórdão recorrido transcreve, a seguir, o que foi então alegado pelas partes, o pedido dos Autores, a decisão da Relação no seu dispositivo, com transcrição da matéria de facto considerada provada, e um excerto da fundamentação de direito relativa à “constituição de uma servidão de passagem por usucapião”.

Depois, o acórdão anteriormente proferido entrou em liça e foi escalpelizado pelo acórdão recorrido no que era pertinentemente demandado pela impugnação feita quanto ao acréscimo de factualidade considerada provada.

Vejamos a transcrição pertinente:

“Defendem os apelantes, por último, o aditamento à matéria provada dos factos, considerados não provados, seguintes:

– os factos constantes das alíneas b), c) e d), com a redação seguinte: «b) A linha divisória entre os prédios descritos em 1) e 7), na parte em que confrontam e confinam um com o outro, parte do pilar que se situa junto à Rua do ……., segue em linha recta até ao segundo pilar e deste segue, de Norte para Sul, em direcção à esquina Norte /Nascente do anexo do prédio referido em 7)»;« c) (…) prolongando-se pela parede Nascente daquele até atingir a esquina Sul /Nascente»; «d) (…) altura onde flecte para Nascente até atingir a esquina Norte / Nascente da casa, continuando depois e da mesma forma, em direcção ao limite Sul da referida casa»;

– os factos constantes das alíneas i), j), k), l) e m), com a redação seguinte: «i) Além do referido em 19), há mais de 15, 20, e 30 anos que os autores por si e antepossuidores utilizam as parcelas de terreno referidas em 8), 11) e 18) a 21), designadamente plantando e tratando árvores de fruto e vinha na sua bordadura, semeando e colhendo batatas, feijão, e produtos hortícolas, semeando pastos e pondo-os a pastar»; «j) (…) construindo tanques, regos e muros de suporte e vedação, abrindo acessos, pavimentando-os, e conservando-os»; «k) (…) Usando as ditas parcelas ou permitindo o seu uso por outrem sem qualquer contrapartida ou dando-o de arrendamento e recebendo a renda respectiva, e pagando os impostos sobre elas incidentes»;« l) (…) o que fazem à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja»; «m) (…) na convicção de que exercem um direito próprio».

Alegam os recorrentes que, dos factos considerados provados no acórdão de 15-10-2013, proferido por esta Relação no processo n.º 461/11……..., o qual correu termos entre as mesmas partes, se extrai com clareza que a linha divisória entre os prédios a que aludem os pontos 1 e 7, na parte em que confrontam um com o outro, tem a configuração indicada nas alíneas b), c) e d), o que entendem impor se considerem provados os factos constantes de tais alíneas; acrescentam que tal igualmente decorre da decisão proferida nos autos de procedimento cautelar que identificam. [...]

Respeitam os factos constantes das enunciadas alíneas b), c) e d) à definição da linha divisória entre o prédio urbano a que alude o ponto 7, pertencente aos réus, e o prédio rústico a que alude o ponto 1, pertencente aos autores, na parte em que confrontam um com o outro.

Correu termos entre as mesmas partes o processo n.º 461/11……., intentado pelos ora autores/recorrentes contra os ora réus/recorridos, definitivamente julgado, no qual, por acórdão proferido por esta Relação a 15-10-2013: a) se reconheceu o direito de propriedade dos autores sobre o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo …..44 e sobre o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo …..82 (a que alude o ponto 1 dos presentes autos); b) se reconheceu o direito de servidão de passagem dos autores, constituída por usucapião, enquanto titulares do direito real reconhecido em a), a pé, com gados presos e soltos, com veículos de tração animal, motorizados ou com tratores e respetivas alfaias, durante todo o ano e a qualquer hora, através do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo …..05 (a que alude o ponto 7 dos presentes autos), pertencente aos réus; c) se condenou os réus a reconhecer aqueles direitos a favor dos prédios dos autores e, consequentemente, a não impedir nem estorvar o respetivo exercício; e ainda, d) a demolir o muro que haviam construído, identificado no item gg. dos factos provados, permitindo o livre exercício do direito de servidão de passagem dos autores.

Estando em causa uma ação entre as mesmas partes e relativa aos mesmos prédios, cumpre apreciar em que medida vincula esta decisão as partes nos presentes autos.

Transitada em julgado, a decisão sobre a relação material controvertida tem força obrigatória dentro do processo e fora dele, nos termos fixados nos artigos 580.º e 581.º do CPC. Por outro lado, dispondo o artigo 621.º do CPC que «a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga», verifica-se que o alcance do caso julgado decorre dos próprios termos da decisão. O caso julgado abrange apenas a parte decisória e não, em princípio, os fundamentos de facto e de direito em que se baseia, podendo os seus limites integrar a decisão de questões que constituam antecedente lógico que conduza à decisão final.

Neste domínio, dúvidas não há de que o caso julgado vincula as partes, não só no processo onde foi proferida a decisão, mas igualmente noutros processos, impedindo a repetição da causa (artigos 576.º, n.º 2, 577.º, al. i), 580.º e 581.º do CPC) e fazendo valer a sua autoridade, através da imposição da decisão tomada, a título prejudicial relativamente a decisões a proferir noutras ações.

Sendo as mesmas as partes no processo n.º 461/11………. e nos presentes autos, e reportando-se ambos aos mesmos prédios, a autoridade do caso julgado impõe que as questões decididas naquela ação vinculem as partes no âmbito da presente ação, tanto a título principal, como a título prejudicial. Verifica-se, assim, que o caso julgado abrange, não apenas a parte dispositiva do julgado, mas também a decisão de questões conexas com aquela, o que impõe seja tida em conta a resolução das questões fáctico-jurídicas prévias ou preliminares que constituam pressuposto daquela parte dispositiva. Porém, daqui não decorre que o caso julgado se estenda aos próprios factos considerados provados na decisão em causa, assim não podendo tais factos ser invocados por si só, separadamente da decisão que com base neles tiver sido proferida – neste sentido, cfr. o Ac. do STJ de 17-05-2018 (relatora: Rosa Tching), no qual se entendeu o seguinte: «Os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente»; no mesmo sentido, cfr. o Ac. do STJ de 08-11-2018 (relator: Tomé Gomes), no qual se entendeu o seguinte: «(…) IV – Os juízos probatórios positivos ou negativos que consubstanciam a chamada “decisão de facto” não revestem, em si mesmos, a natureza de decisão definidora de efeitos jurídicos, constituindo apenas fundamentos de facto da decisão jurídica em que se integram. V – Nessa medida, embora tais juízos probatórios relevem como limites objetivos do caso julgado material nos termos do art. 621.º do CPC, sobre eles não se forma qualquer efeito de caso julgado autónomo, mormente que lhes confira, enquanto factos provados ou não provados, autoridade de caso julgado no âmbito de outro processo. VI – De resto, os factos dados como provados ou não provados no âmbito de determinada pretensão judicial não se assumem como uma verdade material absoluta, mas apenas com o sentido e alcance que têm nesse âmbito específico. Ademais, a consistência dos juízos de facto depende das contingências dos mecanismos da prova inerentes a cada processo a que respeitam, não sendo, por isso, tais juízos transponíveis, sem mais, para o âmbito de outra acção».

Deste modo, a matéria de facto julgada provada no âmbito da decisão proferida no processo n.º 461/11……... não impõe, por si só, que sejam considerados provados os factos constantes dos pontos b), c) e d), impugnados pelos apelantes. [...]"

Assim sendo, verifica-se com clareza que a mobilização do acórdão anteriormente proferido em 2013 serviu para se confrontar neste pleito a sua autoridade de caso julgado material e, nesse âmbito, recusar a essa autoridade a legitimidade para migrar desse acórdão todo o complexo de factos provados e não provados, invocados por si só e separadamente da decisão a que dizem respeito, o que eventualmente dispensaria a circunscrição e fundamentação autónomos neste processo dos factos assentes – o que se asseverou não existir (“a matéria de facto julgada provada no âmbito da decisão proferida no processo n.º 461/11……... não impõe, por si só, que sejam considerados provados os factos constantes dos pontos b), c) e d), impugnados pelos apelantes”), partindo-se para o que exige o art. 662º, 1, do CPC, quanto ao aditamento da matéria de facto como provada (antes no elenco de factos não provados).

O que se fez depois, partindo dessa posição de princípio e já em sede de fundamentação da questão de direito a resolver – e apontando que a “definição dos limites de cada um dos prédios constitui uma questão prejudicial, essencial à apreciação do objeto da presente ação, dado que permitirá determinar a titularidade do direito de propriedade sobre a faixa de terreno em litígio e, em conformidade, apreciar os demais pedidos deduzidos pelas partes” –, foi entender que “os limites do caso julgado podem abranger, além da parte decisória, também a decisão de questões que constituam antecedente lógico que conduza à decisão final”, de modo que a força de caso julgado inclui, “além da parte dispositiva propriamente dita, igualmente a decisão de questões conexas com aquela”, o que conduz a que “se tenha em conta a resolução das questões fáctico-jurídicas prévias ou preliminares que constituam pressuposto da decisão final”. Ora, prosseguiu o acórdão recorrido, nesse processo anterior “foi suscitada e decidida, a título de questão prévia, subjacente à apreciação dos pedidos formulados pelos autores, a determinação da realidade física dos prédios em causa, nomeadamente quanto às respetivas confrontações e delimitação, o que constituiu pressuposto e antecedente lógico da decisão final, que reconheceu a constituição de servidão de passagem a favor do prédio a que alude o ponto 1 dos presentes autos, pertencente aos autores, sobre o prédio a que alude o ponto 7 dos presentes autos, pertencente aos réus”. Daí – sempre na perspectiva do acórdão recorrido – “decorre que a questão da determinação da realidade física dos prédios em causa, nomeadamente no que respeita às respetivas confrontações e delimitação dos prédios a que aludem os pontos 1 e 7 dos presentes autos, foi decidida no aludido processo”, em particular “na respetiva confrontação poente/nascente”, e, assim, “vincula as partes nos presentes autos, pelo que cumpre ter em conta a linha divisória entre os dois prédios aí definida”.

Mais acrescentou: “De todo modo, a factualidade julgada provada nos presentes autos mostra-se conforme àquela decisão, como decorre dos pontos 42 a 45, dos quais se extrai que a linha divisória entre os prédios descritos em 1 e em 7, na parte em que confrontam e confinam um com o outro, passa junto à esquina norte/nascente do anexo do prédio referido em 7, prolonga-se pela parede nascente daquele anexo até atingir a esquina sul/nascente do mesmo, prolonga-se até atingir a esquina norte/nascente da casa do prédio referido em 7 e continua até atingir o limite sul/nascente da referida casa. Esta delimitação entre os dois prédios permite concluir que as parcelas de terreno em litígio – as parcelas de terreno a que aludem os pontos 15 a 18 –, localizadas a nascente da casa e do anexo implantados no prédio a que alude o ponto 7, se integram no prédio a que alude o ponto 1, pertencente aos autores”.

Destarte, julgamos ter por certo que o acórdão recorrido não se socorreu desse acórdão, proferido nesse outro processo que opôs as partes, para construir qualquer presunção assente em regras de experiência e observação empírica a partir de factos provados nesse outro processo, que baseassem um raciocínio dedutivo para arvorar um meio de prova autónomo em face de qualquer outra dedução ou inferência inerente a outro meio de prova[...]. Na verdade, o acórdão recorrido não assenta um facto desconhecido a partir de um facto conhecido por provado. E que agora, como presunção natural ou de facto, tal fosse susceptível de controlo jurisdicional em último grau.

O acórdão recorrido focou-se em delimitar o caso julgado prejudicial desse outro aresto – sem que tal fosse agora impugnado[...] –, no que vinculava as partes relativamente à questão prévia de delimitação física dos prédios, e conjugar essa factualidade prejudicialmente vinculativa por decisão judicial anterior com a factualidade provada neste processo, a fim de extrair, em conjunto, a sua convicção, quanto à aplicação do direito confrontado com o material probatório trazido ao processo (art. 607º, 4, pela remissão do art. 663º, 2, 2ª parte, do CPC), de que “as parcelas de terreno em litígio – as parcelas de terreno a que aludem os pontos 15 a 18 –, localizadas a nascente da casa e do anexo implantados no prédio a que alude o ponto 7, se integram no prédio a que alude o ponto 1, pertencente aos autores”. Em suma, fez-se uma nova ponderação e valoração, analítica e crítica, incluindo as ilações (legítimas) que se retiraram, de acordo com as regras da ciência, lógica e experiência, dos factos mobilizados como provados, depois da alteração feita neste processo e tendo em conta a factualidade de processo prejudicial, levando a uma convicção diversa (legítima) da obtida no primeiro grau de decisão, culminada na subsunção jurídica pertinente[...].

Tudo visto, em particular tendo em conta os poderes de cognição do STJ em sede de revista, não resta outro cenário que não seja fazer improceder as Conclusões dos Recorrentes."

*3. [Comentário] a) Se bem se percebe os dados do processo, é duvidoso que o acórdão tenha enquadrado devidamente a situação em análise. Com a mesma reserva, o mesmo se pode dizer do acórdão recorrido.

Segundo se informa no acórdão recorrido, no processo anterior que decorreu entre as mesmas partes “foi suscitada e decidida a título de questão prévia, subjacente à apreciação dos pedidos formulados pelos autores, a determinação da realidade física dos prédios em causa, nomeadamente quanto às respetivas confrontações e delimitação, o que constituiu pressuposto e antecedente lógico da decisão final, que reconheceu a constituição de servidão de passagem a favor do prédio a que alude o ponto 1 dos presentes autos, pertencente aos autores, sobre o prédio a que alude o ponto 7 dos presentes autos, pertencente aos réus”.

Ora, a referida "questão prévia" é, realmente, uma questão prejudicial sobre a qual não recai, em princípio, caso julgado material (art. 91.º, n.º 2, CPC). No caso concreto apreciado no anterior processo, compreende-se muito bem esta solução, dado que uma acção de constituição de uma servidão de passagem não pode produzir os efeitos de uma acção de demarcação ou de reivindicação.

Nestes termos, o problema não era de vinculação a um caso julgado anterior, mas antes de não vinculação a esse caso julgado. Isto mesmo deveria ter sido reconhecido pelo STJ. 

Esta conclusão levanta, aliás, um problema muito interessante. Se é certo que o STJ não pode sindicar a livre apreciação da prova realizada pelas instâncias (art. 682.º, n.º 2, CPC), parece que há que entender que o STJ pode sindicar a não realização dessa livre apreciação pela errada convicção das instâncias de que estão vinculadas a um caso julgado. Na realidade, nesta hipótese não houve nenhuma apreciação da prova pelas instâncias, mas antes a substituição dessa apreciação por uma equivocada convicção de vinculação a um caso julgado.

Na mesma hipótese, parece que o STJ deve mandar baixar o processo às instâncias. Dado que a situação não se encontra prevista na lei, cabe aplicar. com base num argumento a fortiori, o disposto no art. 682.º, n.º 3, CPC. Se o processo deve baixar às instâncias quando a matéria de facto deve ser ampliada, por maioria de razão o mesmo deve suceder quando, afinal, não haja matéria de facto que não tenha sido fixada, devendo tê-lo sido, através de prova.

b) Um pouco a latere, cabe referir que a formulação do acórdão quanto ao controlo das presunções judiciais pelo STJ é mais "aberta" do que é habitual. Isto significa que está mais próxima do que realmente acontece: o STJ controla realmente essas presunções quando tem de verificar o seu ilogismo manifesto, ou seja, o STJ só aceita as presunções judiciais quando a inferência que é feita através delas a partir do facto probatório seja razoável.

MTS