"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/12/2021

Jurisprudência 2021 (89)


Arresto;
requisitos

1. O sumário de RG 29/4/2021 (531/20.6T8BGC-A.G1) é o seguinte:

I- Para que possa ser decretado a arresto é necessário que se mostrem preenchidos dois requisitos cumulativos: a probabilidade séria de existência do direito de crédito de que o requerente se arroga titular (fumus boni iuris) e a existência de um justificado receio de o credor poder vir a perder a garantia patrimonial do seu crédito (periculum in mora), cabendo ao requerente da providência o ónus de alegação e prova dos factos destinados ao preenchimento destes requisitos, os quais se devem verificar no momento em que o arresto é decretado.

II- Não é necessário que o direito de crédito que o requerente visa acautelar seja certo, líquido e exigível à data da instauração da providência cautelar de arresto e do seu decretamento, bastando a séria probabilidade da sua existência.

III- Contudo, o juízo de probabilidade ou verosimilhança terá de se reportar a um crédito atual, já constituído na esfera jurídica do requerente, e não a um crédito futuro, hipotético ou eventual (ainda que provável), dependente de eventos futuros e incertos.

IV- Não deve ser admitido o arresto se a Requerente apenas alega e demonstra ter a expectativa, ainda que séria, de vir a ser chamada a responder perante clientes lesados que poderão invocar a responsabilidade do comitente prevista no artigo 500º do Código Civil e exigir que a Requerente os indemnize, tendo de exercer posteriormente, caso tenha de o fazer, direito de regresso contra o Requerido.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado, conforme decorre do preceituado no artigo 362º do Código de Processo Civil (pertencem ao Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, as disposições legais que serão citadas sem indicação da respetiva fonte); exceto se for decretada a inversão do contencioso o procedimento cautelar é sempre dependência da ação que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa (artigo 364º n.º 1) e reveste sempre caráter urgente (artigo 363º).

Ao lado dos procedimentos cautelares genericamente previstos nos artigos 362º e seguintes, o legislador consagrou ainda os procedimentos cautelares especificados ou nominados, entre os quais se enquadra o arresto. [...]

Como é consabido, o arresto, providência cautelar especificada, constitui uma providência conservatória e de garantia, a qual consiste na apreensão judicial de bens do devedor, tendo em vista a garantia de um direito de crédito, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora (cfr. artigo 619º do Código Civil e n.º 2 do artigo 391º; vide Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, página 608 e António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, página 464 a 465).

Por isso, o arresto dos bens do devedor “constitui a garantia patrimonial que assegura que os bens ou direitos de conteúdo patrimonial do devedor se irão manter na sua esfera jurídica, numa situação de congelamento, o que implica a sua indisponibilidade, mas sem afetar o respectivo poder de disposição, com vista a prevenir a perda de garantia patrimonial, até que, no âmbito do processo executivo seja realizada a penhora, tida como antecedente do pagamento do crédito” (Paulo Silva Campos, “O arresto como meio de garantia patrimonial – Uma perspetiva substantiva e processual”, RDS VIII (2016), 3, páginas 743-776, http://www.revistadedireitodassociedades.pt).

O artigo 619º n.º 1 do Código Civil dispõe que “o credor que tenha receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor, nos termos da lei do processo”.

No mesmo sentido, preceitua o artigo 391º n.º 1 que “o credor que tenha receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor”.

Conforme refere António Santos Abrantes Geraldes (Temas de Reforma do Processo Civil, ob. cit., página 189 a 191) só é possível deduzir esta providência em relação a direitos de crédito, pois que ela visa precisamente a garantia do seu cumprimento, ainda que ao seu deferimento seja alheia a origem do crédito e que nada impeça que se solicite o arresto para garantia de obrigações pecuniárias que surjam cumuladas com obrigações de outra natureza ainda que assumindo natureza acessória (como ocorre com a clausula penal e a sanção pecuniária compulsória).

Por isso, elenca este Autor as diversas situações em que o arresto pode ser deduzido para assegurar o cumprimento de obrigações:

a) Directamente geradas por uma relação contratual ou negocial;
b) Indirectamente derivadas dessas relações, como ocorre com a indemnização pelo incumprimento, com a obrigação de restituir decorrente da nulidade ou da resolução ou com a obrigação do pagamento de benfeitorias no âmbito de contrato de arrendamento;
c) Decorrentes do enriquecimento sem causa;
d) Correspondentes à indemnização com origem em facto ilícito, ou em facto lícito;
e) Derivadas directamente da própria lei.

O que releva para que o arresto possa ser decretado, é que o julgador dê como preenchidos dois requisitos cumulativos:

a) a probabilidade séria de existência do direito de crédito de que o requerente se arroga titular (fumus boni iuris);
b) a existência de um justificado receio de o credor poder vir a perder a garantia patrimonial do seu crédito (periculum in mora).

Conforme resulta desde logo do disposto no n.º 1 do artigo 392º cabe ao requerente da providência cautelar de arresto o ónus de alegação dos factos destinados ao preenchimento destes requisitos, bem como o ónus de prova dos mesmos, sendo certo que os requisitos devem verificar-se no momento em que o arresto é pedido e decretado.

Iremos aqui analisar o primeiro requisito por ser o que vem colocado em causa no presente recurso.

No que concerne à sua apreciação importa começar por referir que o legislador considerou ser suficiente a formulação, por parte do julgador, de um juízo de verosimilhança quanto ao facto de o requerente ser efetivamente credor do requerido; de facto, considerando que está em causa uma prova sumária (cfr. artigo 365º n.º 1) não se exige a formação de uma convicção segura quanto à existência desse direito de crédito, mas tão só que seja provável a existência desse direito.

Por isso, é de considerar ainda que “para que o arresto seja decretado, não é necessária a prova de que o crédito é certo, líquido e exigível, nem tão-pouco constitui impedimento o facto de o crédito revestir natureza condicional, sendo antes suficiente a formulação de um juízo de probabilidade quanto à existência de um direito de crédito” (Marco Carvalho Gonçalves, “Providências Cautelares Conservatórias: Questões Práticas Atuais, https://core.ac.uk/download/pdf/154276842.pdf e ob. cit. página 228; vide também António Santos Abrantes Geraldes, Temas de Reforma do Processo Civil, ob. cit., página 194 a 196).

Assim, e quanto aos requisitos da obrigação para que possa ser decretado o arresto importa reter que, na data em que é requerida a providência, o crédito não tem de ser certo, exigível e nem líquido.

Contudo, o crédito tem de ser actual e não um crédito futuro; enquanto o primeiro, ainda que não seja exigível ou liquido, já faz parte da esfera jurídica do credor e a “correspectiva obrigação já onera o património do devedor”, nos créditos futuros “a sua constituição está ainda dependente de eventos vindouros, podendo existir porventura uma expectativa quanto à sua concretização, mas que não encontra nas regras do arresto qualquer espécie de tutela” (vide António Santos Abrantes Geraldes, Temas de Reforma do Processo Civil, ob. cit., página 195).

Para que possa ser decretado o arresto e considerado verificado o primeiro dos requisitos supra referidos não basta um juízo de probabilidade quanto a uma expectativa de um crédito cuja constituição está ainda dependente de acontecimentos futuros e incertos, ainda que essa probabilidade possa ser efectivamente séria; é necessário que o crédito exista no momento da instauração do procedimento, ou melhor, que seja demonstrada a provável existência desse crédito.

O juízo de probabilidade ou verosimilhança ínsito na providência cautelar terá de se reportar a um crédito já constituído, actual, e não a um crédito futuro, hipotético ou eventual; ainda que em sede de providência cautelar de arresto seja suficiente concluir pela probabilidade séria da existência do crédito que o requerente se arroga, esse crédito tem de ser actual, reportado ao momento em que é instaurada a providência, e não um crédito futuro, ainda que de séria probabilidade (neste sentido v. os Acórdãos: da Relação de Évora de 20/08/2010, Processo n.º 918/09.5TBLGS-A.E1, Relatora Desembargadora Isoleta Costa; da Relação de Guimarães de 27/10/2014, Processo n.º 543/09.0TBPTL-G.G1, Relatora Desembargadora Manuela Fialho, e de 18/06/2020, Processo n.º 464/19.9T8VRL.G1, Relator Desembargador José Alberto Moreira Dias; da Relação de Coimbra de 22/10/2019, Processo n.º 743/18.2T8CNT-A.C1, Relatora Desembargadora Maria Teresa Albuquerque e da Relação de Lisboa de 08/01/2019, Processo n.º 12428/18.5T8LSB.L1-7, Relator Desembargador José Capacete; todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Temos, por isso, como certo, que o arresto se destina a garantir créditos atuais, existentes na data em que a providência é requerida, e não créditos futuros, e que para ser decretado o arresto, a lei exige que o requerente deduza os factos que tornam provável a existência do crédito, e não que tornem provável uma mera expetativa da sua existência.

Um crédito futuro, ainda que de séria e provável expectativa se trate, mas que no momento ainda não existe na esfera jurídica do requerente da providência, não pode encontrar tutela na disciplina jurídica do arresto e não pode servir de fundamento ao decretamento desta providência, tanto mais que, tratando-se apenas de uma expectativa de crédito e dada sua natureza, poderá nunca vir a constituir-se na esfera jurídica do requerente, porquanto a sua constituição está dependente de elementos incertos e futuros.

Admitir que o arresto possa ser decretado com base apenas num crédito futuro, ou numa expectativa de crédito, seria conceder a possibilidade de proceder no presente à apreensão judicial de bens de quem ainda se não constituiu como devedor perante o requerente da providência, ainda que seja provável que no futuro se possa vir a constituir.

Ora, o caso concreto aproxima-se desta situação: existe efectivamente uma séria probabilidade de a Requerente vir a ser credora dos Requeridos, por força do direito de regresso que alude, mas, trata-se de mera expectativa e não de um crédito existente, já constituído.

Na verdade, mesmo admitindo-se como muito séria a possibilidade, como alega a Requerente, de “vir a ser chamada a responder perante os clientes lesados que poderão alegar a responsabilidade do comitente prevista no art.º 500º do Código Civil e exigir que a Requerente os indemnize” não ter “outro remédio senão pagar” através de acordos ou pela via judicial face à intenção já demonstrada por alguns clientes, e que “caso lhe seja exigido terá que devolver e posteriormente exercer direito de regresso contra o Requerido” (cfr. artigos 30º, 32º e 34º da petição inicial) a verdade é que neste momento, tal como a própria reconhece, o crédito ainda não existe. É apenas uma hipótese, uma possibilidade que o crédito venha a existir.

Entendeu o Tribunal a quo, quanto à existência do direito de crédito, que “Da matéria dada como assente resulta, efetivamente, que a requerente é credora do requerido isto porque os clientes lesados obviamente vão demandar a requerente para os indemnizar devidamente dos prejuízos que o requerido lhes causou. Temos, pois, observado o primeiro dos requisitos exigidos pela lei para o decretamento do arresto”.

Não entendemos, contudo, que assim seja, pois se da matéria dada como provada ressalta uma séria probabilidade dos clientes lesados demandarem a Requerente para os indemnizar pelos prejuízos que o Requerido A. J. lhes tenha causado, tal não permite concluir estar verificada a existência nesta data de um crédito da Requerente sobre o Requerido, mas apenas a expectativa de vir a constituir-se tal crédito; inexiste, por isso, um crédito actual constituído na esfera jurídica da Requerente, mas apenas um crédito eventual, futuro.

É certo que não é necessário que o direito esteja plenamente comprovado, mas apenas que dele exista um mero fumus boni juris, ou seja, que o direito se apresente como verosímil, e nem que o direito seja certo, exigível ou líquido, mas já é necessário que os factos alegados pelo requerente do arresto, e por este demonstrados, se reportem a um crédito já constituído, actual, e não a um crédito futuro, hipotético ou eventual, ainda que de séria probabilidade.

Existirá, no caso em apreço, esse direito de crédito já constituído e atual?

Julgamos que não.

Aliás, da própria perspectiva da Requerente, e segundo o próprio entendimento do tribunal a quo, o que está em causa é um crédito futuro e não um crédito actual, já constituído.

E, como já referimos, um crédito futuro, ainda que de séria e provável expectativa se trate, não pode servir de fundamento ao decretamento desta providência.

Podemos ainda acrescentar que, mesmo que assim se não entendesse, o arresto acabaria por não ter qualquer utilidade pois que se trata de providência sujeita a caducidade [cfr. artigo 373º n.º 1 alínea a)], caducando se o requerente não propuser a acção no prazo de 30 dias contados da data em que lhe tiver sido notificado o trânsito em julgado da decisão que a haja ordenado.

O arresto, não sendo providência adequada por natureza a realizar a composição definitiva do litígio, e não permitindo dispensar o requerente do ónus de propositura da acção principal (cfr. artigos 364º n.º 1e 369º n.º 1), impõe que seja instaurada a acção no referido prazo de 30 dias.

Será então legítimo questionar qual a acção que a Requerente iria instaurar para evitar a caducidade da providência.

Não tendo ainda direito de regresso sobre os Requeridos não poderia instaurar acção com esse fundamento, não podendo invocar a mera probabilidade, ainda que séria, de vir a ter direito de regresso; e, não sendo ainda credora (detentora de um crédito actual, já constituído na sua esfera jurídica) também não poderia instaurar ação de impugnação pauliana ou com fundamento em simulação.

De referir também que, mesmo relativamente aos créditos ainda não exigíveis, e ainda que se entenda que tanta protecção merece o credor cujo crédito pecuniário já se encontra vencido como o que aguarda pela data de vencimento para exigir do devedor o seu cumprimento, é necessário que as circunstâncias autorizem a instauração da acção de forma a poder respeitar-se a exigência do referido n.º 1 do artigo 373º [vide António Santos Abrantes Geraldes, Temas de Reforma do Processo Civil, ob. cit., página 194, ainda que referindo-se ao anterior artigo 389º n.º 1 alínea a), mas que aqui mantém atualidade], para o credor poder avançar para o arresto, se verificada a situação de periculum in mora.

E mesmo que se admitisse, conforme parece ser o entendimento perfilhado pela Recorrida nas suas contra-alegações, que a acção principal seria a que poderá vir a ser instaurada por algum(s) cliente(s), a verdade é que não há conhecimento que alguma acção tenha sido já instaurada, não podendo o requerente da providência ficar na dependência que um terceiro venha a instaurar (não se sabendo quando ou até se efetivamente o fará) uma ação.

Veja-se, de qualquer forma, e como já referido, que a Requerente se limita a alegar na petição inicial mera possibilidade e probabilidade; de facto, não obstante alegar ter identificado alguns clientes que já demonstraram intenção de lhe exigir indemnizações e de alegar também que não terá outro remédio senão pagar, através de acordos ou pela via judicial, a verdade é que nem sequer alegou ter já assumido expressamente a responsabilidade desse pagamento, ou ser sua efectiva intenção fazê-lo, perante os referidos clientes e ter já celebrado qualquer acordo onde assuma o pagamento.

Entendemos, por isso, que em face da matéria de facto provada (e da própria alegação da Requerente) o que está em causa é um crédito futuro, ainda que de séria probabilidade, e não um crédito actual, já constituído.

É pois de concluir não estar preenchido um dos requisitos essenciais ao decretamento da providência de arresto – a probabilidade séria de existência de um direito de crédito da Requerente sobre os Requeridos - o que terá de determinar a sua improcedência.

Em face do exposto há que julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida, ordenando-se, em consequência, o levantamento do arresto.

Estando em causa a falta de um dos requisitos para decretamento da providência cautelar de arresto e sendo caso de litisconsórcio necessário, o presente recurso interposto pelo Requerido A. J. aproveita às compartes conforme dispõe o artigo 634º n.º 1."

[MTS]