"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/12/2021

Jurisprudência 2021 (92)


Processo de trabalho;
factos não alegados*


1. O sumário de RP 19/4/2021 (2907/16.4T8AGD-A.P1) é o seguinte:

I - A consideração de factos não alegados na decisão da matéria de facto, só é possível por via do disposto no art. 72º, nº 1 do CPT, nesse caso, pressupondo que se dê cumprimento ao disposto no nº 2, nomeadamente, possibilitando-se às partes indicarem as respectivas provas, requerendo-as imediatamente ou, em caso de reconhecida impossibilidade, no prazo de cinco dias.

II - A segunda instância não pode fazer uso do disposto no art. 72º do CPT, quando estejam em causa factos essenciais, por não poder ser dado cumprimento ao nº2 do mesmo.

III - As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o “thema decidendum”, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objecto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão.

IV - O uso de presunções não se reconduz a um meio de prova próprio, consistindo antes, atento o disposto no art. 349º do CC, em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos de base) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos).

V - Através da consagração do regime legal, instituído pelo Decreto-Lei nº 218/99 de 15 de Junho, com vista a mais eficazmente permitir a cobrança de dívidas hospitalares, a entidade hospitalar, apenas, tem de invocar o facto gerador da responsabilidade, alegar e provar que prestou cuidados de saúde e indicar o número da apólice caso esteja em causa um contrato de seguro.

VI – Assim, havendo seguro válido, compete à co-ré/seguradora demonstrar factos dos quais decorre o afastamento da sua responsabilidade e, em concreto, os factos que demonstrem a responsabilidade da co-ré/empregadora quanto ao acidente que deu origem à prestação dos cuidados de saúde.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Da impugnação da matéria de facto

A recorrente vem impugnar a decisão sobre a matéria de facto por entender que, “fazendo uma apreciação crítica e conjugada das provas”, deverá acrescentar-se à factualidade provada que, “o telhado do pavilhão era constituído por placas de fibrocimento, com cerca de 30 anos, revelando-se frágeis e não aptas a suportar cargas elevadas”.

Defende que, “sobre as características da cobertura do pavilhão do qual caiu o trabalhador sinistrado, depuseram este e, ainda, as testemunhas J…, I… e K…, conforme se vê da fundamentação de facto da sentença. Estas testemunhas, cujos depoimentos se revelaram sérios, isentos e credíveis referiram que a cobertura do pavilhão era constituída por placas de fibrocimento, com cerca de 30 anos.”.

E, continua que, “por simples presunção judicial, destes factos o Tribunal a quo deveria ter concluído que, tais telhas eram frágeis e não aptas a suportar o elevado peso do trabalhador sinistrado, de cerca de 103 kg. É esta, aliás, a única conclusão a que se chega pelo singelo uso das regras da experiência.”.

Concluindo, ainda, que cabe “referir que a factualidade em apreço resulta apurada da discussão e julgamento da causa.”. [...]

Vejamos, então.

Desde logo, analisando a redacção supra transcrita, proposta pela recorrente para o facto cujo aditamento peticiona ao elenco dos factos provados, é certo que aquele se traduz num novo facto e a recorrente não diz onde foi alegado pelas partes. Verifica-se que a pretensão daquela, atenta a redacção daquele novo, consiste não em que se dê por provado ou não provado, quaisquer dos factos considerados na decisão recorrida, mas sim que se dê por provado e adite àquela, um novo facto, sem que indique quem o alegou e percorridas a p.i. e as contestações, não se encontra onde o mesmo tenha sido alegada, nem a recorrente o diz, apenas, visando que se adite aquele, o que, sem dúvida, se traduz num novo facto que não foi alegado, nem por ela, nem pelas outras partes.

Mas, como é sabido, a consideração de factos não alegados, como é o caso (facto essencial) para serem integrados na decisão da matéria de facto, só é possível por via do disposto no art. 72º, nº 1 do CPT, nesse caso, pressupondo que se dê cumprimento ao disposto no nº 2, nomeadamente, possibilitando-se às partes indicarem as respectivas provas, requerendo-as imediatamente ou, em caso de reconhecida impossibilidade, no prazo de cinco dias.

Como se lê naquele art. 72º do CPT:

“1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 5.º do Código de Processo Civil, se no decurso da produção da prova surgirem factos essenciais que, embora não articulados, o tribunal considere relevantes para a boa decisão da causa, deve o juiz, na medida do necessário para o apuramento da verdade material, ampliar os temas da prova enunciados no despacho mencionado no artigo 596.º do Código de Processo Civil ou, não o havendo, tomá-los em consideração na decisão, desde que sobre eles tenha incidido discussão.

2 - Se os temas da prova forem ampliados nos termos do número anterior, podem as partes indicar as respetivas provas, respeitando os limites estabelecidos para a prova testemunhal; as provas são requeridas imediatamente ou, em caso de reconhecida impossibilidade, no prazo de cinco dias. (...)”.

Precisamente por isso, como é entendimento pacífico da jurisprudência, desta secção social, entre muitos outros, os (Ac.s de 11.06.2012, proc. nº 2/10.9TTMTS.P1. e de 05.10.2015, proc. nº 2673/15.0T8MAI-A.P19, ambos relatados pela Exma. Desembargadora M. Fernanda Soares, ao que supomos, inéditos e bem recentes, deste colectivo, os Ac.s de 22.03.2021, proferidos nos Proc.s nº.s 46/19.5T8VLG.P1, 3478/19.5T8VFR.P1 e 10830/17.9T8PRT.P1, oportunamente, em www.dgsi.pt), a segunda instância não pode, fazer uso do disposto no art. 72º do CPT, visto que não pode ser dado cumprimento ao nº 2 do mesmo - (nº 2, cuja redacção, quando em situações como é o caso, não sofreu alteração, com a entrada em vigor da Lei nº 107/2019, de 9 de Setembro), ou seja, quando estejamos, perante factos essenciais como, já dissemos, já que o facto cujo aditamento se pretende está directamente relacionado com a pretensão da recorrente em que se declare que o acidente ocorreu por culpa grave da co-ré/empregadora.

Assim, é óbvia, a improcedência da impugnação da decisão de facto provada.

Porque não compete a este Tribunal, aqui e agora, em sede de recurso, tomar qualquer novo facto em consideração e, deste modo, dar o mesmo, eventualmente, como provado, com a redacção pretendida pela recorrente, sob pena de violação do princípio do contraditório (nº 2 do citado artigo), ou seja, só ao Tribunal “a quo”, no uso do poder/dever conferido por aquele art. 72º, tendo ocorrido discussão sobre a mesma, se fosse esse o caso, competia considerar provada tal factualidade.

Assim, sendo certo, que a pretensão da recorrente pressuporia que este Tribunal “ad quem” interviesse nos termos previstos no nº 1, daquele artigo, na medida em que pressuporia dar por provado, um novo facto, considerando factos não alegados para se considerarem como provados, não sendo tal permitido sucumbe, assim, por esta via, como dissemos, a impugnação deduzida quanto à decisão da matéria de facto.

Mas, independentemente, desta razão, outra importa referir, também, suscitada pela co-ré/recorrida que, inevitavelmente, determinaria que tivesse de se julgar improcedente a impugnação deduzida quanto à factualidade provada.

Pois, como bem refere aquela co-ré, atento o que se discute na acção, em concreto, à pretensão deduzida pela recorrente, referente à alegada violação das regras de segurança, sempre a redacção proposta para aquele “novo facto”, não poderia fazer parte do elenco dos factos provados. Porque, sem dúvida, a segunda parte do mesmo, nada mais é do que uma conclusão, configurando um juízo valorativo e jurídico.

E, como é entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, nomeadamente do Supremo Tribunal de Justiça, (vejam-se entre outros, os Acórdãos deste de 23.09.2009, Proc. nº 238/06.7TTBGR.S1, de 19.04.2012, Proc. nº 30/08.4TTLSB.L1.S1, de 23.05.2012, Proc. nº 240/10.4TTLMG.P1.S1, de 14.01.2015, Proc. nº 488/11.4TTVFR.P1.S1 e Proc. nº 497/12.6TTVRL.P1.S1 e de 29.04.2015, Proc. nº 306/12.6TTCVL.C1.S1, disponíveis in www.dgsi.pt (sítio da internet onde se encontrarão todos os arestos a seguir citados, sem outra indicação)) as conclusões, apenas, podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado a jusante, na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada.

Ou seja, só os factos materiais são susceptíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objecto de prova.

Seguindo idêntico entendimento, (no Acórdão, do mesmo STJ, de 12.03.2014, Proc. nº 590/12.5TTLRA.C1.S1), decidiu-se que “Só acontecimentos ou factos concretos podem integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão, sendo, embora, de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objeto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objeto de disputa das partes”.

Ainda, mais recentemente, sobre esta questão da delimitação entre factos, juízos de valor sobre factos, e valorações jurídicas de factos, que é essencial à ponderação da intervenção levada a cabo por este Tribunal “ad quem”, relativamente à decisão recorrida, pronunciou-se (o Ac. do STJ de 28.01.2016, Proc. nº 1715/12.6TTPRT.P1.S1), nele se fazendo constar o seguinte: “Conforme se considerou no acórdão desta Secção de 24 de novembro de 2011, proferido na revista n.º 740/07.3TTALM.L1.S2, «o n.º 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil, dispõe que “têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”» e «atento a que só os factos podem ser objeto de prova, tem-se considerado que o n.º 4 do artigo 646.º citado estende o seu campo de aplicação às asserções de natureza conclusiva, “não porque tal preceito, expressamente, contemple a situação de sancionar como não escrito um facto conclusivo, mas, como tem sido sustentado pela jurisprudência, porque, analogicamente, aquela disposição é de aplicar a situações em que em causa esteja um facto conclusivo, as quais, em retas contas, se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objeto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum» — acórdão deste Supremo Tribunal, de 23 de setembro de 2009, Processo n.º 238/06.7TTBGR.S1, da 4.ª Secção, disponível in www.dgsi.pt.”»”.

E continua: “Por thema decidendum deve entender-se o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão. Daí que sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado,…”.

Concluindo com a formulação do seguinte: “Sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de facto que se insira de forma relevante na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta ou componente relevante da resposta àquelas questões, ou cuja determinação de sentido exija o recurso a critérios jurídicos, deve o mesmo ser eliminado.”.

Decorre do que se deixa exposto que, quando tal não tenha sido observado pelo tribunal “a quo”, ou não o tenha sido na totalidade, e o mesmo se tenha pronunciado sobre afirmações conclusivas, que essa pronúncia deve ter-se por não escrita. E, significa, também, atentos os mesmos argumentos enunciados, que o tribunal “ad quem” não pode considerar provadas alegações conclusivas que se reconduzam ao thema decidendum. Precisamente, o que acontece no caso.

Assim, sendo uma expressão genérica e conclusiva, a redacção pretendida para o referido ponto, na sua totalidade, não poderia ser levado ao elenco dos factos provados. Pois, comporta uma conclusão relevante para a análise da questão jurídica a decidir que, sem dúvida, há-de retirar-se ou não a jusante, na sentença, onde deverá ser feita a apreciação crítica de toda a matéria de facto provada.

Razão porque, se não fosse, pelo motivo já referido, também, por esta sucumbiria a impugnação deduzida quanto à matéria de facto, nos termos pretendidos pela recorrente.

Por último diga-se, sempre com o devido respeito, que não se alcança o sentido das conclusões que formula de que, “Por simples presunção judicial, destes factos o Tribunal a quo deveria ter concluído que, tais telhas eram frágeis e não aptas a suportar o elevado peso do trabalhador sinistrado, de cerca de 103 kg. É esta, aliás, a única conclusão a que se chega pelo singelo uso das regras da experiência”.

Sem qualquer dúvida, não assiste qualquer razão à recorrente.

Não se vislumbra como o “singelo uso das regras da experiência” nos permite concluir aquela factualidade.

Pois, apesar de ser lícito à 2ª instância, com base na prova produzida constante dos autos, reequacionar a avaliação probatória feita pela 1ª instância, nomeadamente no domínio das presunções judiciais, nos termos do nº 4 do art. 607º, aplicável por via do art. 663º, nº 2, cremos não ser possível, como alega a recorrente, dar-se aquele facto impugnado (e sempre, só a primeira parte, pelas razões já expostas) nos termos que pretende, provado, apenas, através do uso de presunções judiciais.

Explicando.

Pois, como decorre, desde logo, do Título “presunções”, da Secção II do Código Civil, o uso de presunções não se reconduz a um meio de prova próprio, consistindo antes, atento o disposto no art. 349º daquele CC, em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos de base) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos).

Ou seja, a presunção traduz-se e concretiza-se num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência, sendo admitida nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (cfr. art. 351º do CC). Revelando-se, sempre, necessário que a ilação a tirar dos factos base da presunção para chegar ao facto presumido tenha uma ''lógica necessária''. Pois, as presunções não são um meio de prova, mas um processo indirecto que induz racionalmente determinado facto desconhecido que se pretende provar.

Como referia (Vaz Serra, in “Provas”, BMJ nºs 110 a 112 , nota 242), as presunções “Não são propriamente meios de prova, mas somente meios lógicos ou mentais da descoberta de factos, e firmam-se mediante regras de experiência (apreciadas pela lei ou pelo julgador)”.

Ora, sendo deste modo e atento, o teor do facto, que a recorrente considera deve ser dado por provado, (sem indicação de quais os factos base da presunção), com base na factualidade provada, em concreto, no que decorre dos factos provados 3 e 11, cremos não ser, o mesmo, possível.

Em nosso entender, aquela 1ª parte do facto, que a recorrente pretende seja aditado à matéria de facto provada, sempre com o devido respeito, não é uma consequência lógica e necessária que o Tribunal deva extrair de qualquer facto, em concreto os, por nós referidos, factos provados 3 e 11 donde, atentas as regras da experiência nada mais é possível, concluir que não seja, o material de uma placa da cobertura do pavilhão e o peso do sinistrado.

Improcede, assim, nesta parte o recurso da apelante e considera-se assente a factualidade supra indicada no presente acórdão."

*3. [Comentário] a) Não se discorda da solução adoptada no acórdão, fundamentalmente porque, segundo se informa no próprio acórdão, consta dos factos não provados o seguinte: "e). E… caiu por ter pisado uma placa de fibrocimento da cobertura do pavilhão.”. Neste contexto, não é realmente relevante saber se "o telhado do pavilhão era constituído por placas de fibrocimento, com cerca de 30 anos, revelando-se frágeis e não aptas a suportar cargas elevadas".

Onde não se acompanha o acórdão é na qualificação desta afirmação como reportando-se, na sua segunda parte, a um facto conclusivo. Basta atentar que o facto a que se reporta aquela afirmação pode perfeitamente constituir um facto probando (e poderia sê-lo na própria acção na qual foi proferido o acórdão), para cuja prova pode (ou poderia) ser utilizada a prova pericial.

b) Também não se discorda da interpretação do disposto no art. 72.º CPT realizada no acórdão.

A clareza deste preceito deixa algo a desejar. Ao ressalvar o estabelecido no art. 5.º, n.º 2, CPC, o art. 72.º CPT coloca os "factos essenciais" nele referidos ao nível dos factos probatórios, complementares e concretizadores a que se refere aquele artigo do CPC. De outra forma não se compreende a ressalva, pois que só se ressalva um regime quando se está a regular de forma diferente algo de semelhante.

Pode imaginar-se, no entanto, que o legislador, através da redacção do art. 72.º CPT, teria procurado acrescentar algo ao disposto no art. 5.º, n.º 2, CPC. Para isso, teria sido necessário que tivesse sido ressalvado o n.º 1 (e não o n.º 2) do art. 5.º CPC.

MTS