"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/12/2021

Jurisprudência 2021 (101)


Penhora;
inscrição matricial; descrição registal


1. O sumário de RL 29/4/2021 (12592/15.5T8ALM-B.L2-2) é o seguinte:

I. A inscrição matricial de prédio urbano não constitui, fora da relação tributária, presunção do direito de propriedade, mas funda presunção da existência do bem inscrito na matriz.

II. O agente de execução tem legitimidade para requerer a descrição, no registo predial, de prédio urbano omisso no registo predial, mas inscrito na matriz, tendo em vista inscrever no registo predial a penhora desse prédio.

III. A efetivação do registo da penhora não carece de prévia inscrição do bem a favor do sujeito passivo.

IV. A alegação de que o bem/edifício penhorado não tem licença de utilização nem loteamento autorizado não obsta à manutenção da respetiva penhora, se, provando-se embora que o executado/opoente é comproprietário de um prédio rústico, improcede a impugnação do registo da descrição e da penhora do prédio urbano efetuada (a impugnação) pelo executado/opoente junto da Conservatória do Registo Predial, e consta na matriz e no registo predial que o prédio penhorado se localiza num indicado lote e confronta com via pública e outros lotes.

V. A alegada, e não demonstrada, inexistência de licença de utilização do prédio urbano penhorado não obsta à venda deste no âmbito da execução.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O art.º 735.º n.º 1 do CPC declara que estão sujeitos à execução todos os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda.

Por sua vez no art.º 601.º do Código Civil estipula-se que “[p]elo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios.”

E o n.º 1 do art.º 743.º do CPC, invocado pelo opoente/apelante, dispõe o seguinte:

“1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 781.º, na execução movida apenas contra algum ou alguns dos contitulares de património autónomo ou bem indiviso, não podem ser penhorados os bens compreendidos no património comum ou uma fração de qualquer deles, nem uma parte especificada do bem indiviso”.

Sobre a oposição à penhora, o art.º 748.º n.º 1 do CPC estipula o seguinte:

“1 - Sendo penhorados bens pertencentes ao executado, pode este opor-se à penhora com algum dos seguintes fundamentos:
a) Inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos ou da extensão com que ela foi realizada;
b) Imediata penhora de bens que só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda;
c) Incidência da penhora sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência”.

Conforme consta no Relatório supra, este procedimento de oposição à penhora já foi alvo da atenção desta Relação, por meio do acórdão que conheceu do indeferimento liminar da oposição. Nesse acórdão, datado de 07.11.2019, se ponderou que, contrariamente ao aparentemente propugnado pelo tribunal a quo (na decisão de indeferimento liminar da oposição à penhora), a oposição à penhora é o meio adequado à reação contra penhora que tenha incidido sobre parte especificada de bens indivisos. Essa seria a situação invocada pelo apelante/opoente/executado: sendo titular, como comproprietário, de uma quota parte (158/75000 avos indivisos) de um prédio rústico, a penhora terá incidido sobre um edifício construído no mencionado prédio rústico, o qual não existiria juridicamente, pois não haveria licença de utilização e o prédio encontrar-se-ia indiviso sem processo de loteamento.

Vejamos.

Resulta dos autos que o opoente/executado/apelante é comproprietário de um prédio rústico, com uma quota de 158/75000 avos indivisos (cfr. n.ºs 10 e 11 da matéria de facto). No que concerne ao aludido prédio rústico, o direito do executado reporta-se à aludida quota ideal, não estando individualizado, no seu objeto, sobre parte especificada da coisa (cfr. artigos 1403.º, 1405.º, 1406.º, 1408.º do CC). Daí que apenas poderá ser penhorado o seu direito à aludida quota ideal. Direito esse, de resto, que veio a ser penhorado na execução (cfr. n.º 9 da matéria de facto).

Porém, o executado/opoente/apelante insurge-se contra a penhora do prédio urbano referida em 1 da matéria de facto, alegando que esse prédio não existe.

Ora, que o prédio existe, resulta da matéria dada como provada (n.ºs 3 a 7 da matéria de facto).

É certo que, conforme se estipula no art.º 12.º n.º 5 do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), “As inscrições matriciais só para efeitos tributários constituem presunção de propriedade.”

Mas a inscrição matricial, se não forma presunção da titularidade do direito de propriedade sobre o bem inscrito, baseia presunção sobre a existência do prédio inscrito.

Tal presunção está implícita em normas como as previstas nos artigos 28.º a 31.º do Código do Registo Predial (CRP), que impõem a inscrição na matriz dos prédios a que respeitam as inscrições do registo predial, e exigem a harmonização quanto à localização, à área e ao artigo da matriz, entre a descrição e a inscrição matricial.

Tal presunção da existência do prédio inscrito na matriz está também implícita no disposto no art.º 92.º n.º 1 do Código do Registo do Notariado, que impõe, relativamente às justificações notariais para estabelecimento ou reatamento do trato sucessivo no registo predial, que os direitos que, nos termos da lei fiscal, devam constar da matriz, aqui estejam inscritos.

Veja-se, nesse sentido, o Parecer do Conselho Técnico do Instituto dos Registos e do Notariado, n.º 110/2011 (consultável no portal na internet do referido Instituto): “De acordo com a norma do art. 92.º, n.º 1, do Cód. do Notariado, a inscrição matricial, na medida em que constitui presunção da existência do prédio, é pressuposto essencial da admissibilidade de justificação notarial de direitos que, nos termos da lei fiscal, devam constar da matriz, implicando a violação daquela norma a nulidade do acto jurídico (cfr. art.s 294º e 295º, do Cód. Civil).”

Acerca da razão de ser da relevância da referida prévia inscrição matricial, veja-se o Parecer do Conselho Consultivo do IRN, n.º 112/2010 (nota 6):

“A ratio da exigência de que a escritura de justificação apenas se possa celebrar quando exista inscrição matricial do prédio objecto do direito alegadamente usucapido releva com efeito da necessidade sentida pelo legislador de se assegurar da real existência do bem, e de que portanto o ingresso e definição da identidade dele no registo, designadamente na sua mais elementar e radical configuração, enquanto porção delimitada de solo (com a área que tiver), não fica inteiramente confiada à declaração “interessada” do justificante, e isto pese embora a intervenção no acto de três outros sujeitos unissonamente confirmando a veracidade de tal declaração. Se não foi desconfiado, o legislador quis pelo menos ser cauteloso, e, jogando pelo seguro, determinou que a escritura só estará à mão contanto que o prédio se encontre inscrito na matriz, já que, estando-o, daí será lícito presumir que o prédio materialmente existe, e que existe com a fisionomia com que nessa sede se oferece. É pois primacialmente a preocupação com a acreditação da existência e identidade do prédio o que segundo cremos estará na base da prescrição constante do normativo em apreço – a sua teleologia reconduz-nos preponderantemente aos fins próprios da instituição registal (designadamente ao seu escopo fundamental, o da promoção da segurança do comércio jurídico imobiliário), e só lateralmente a uma qualquer racionalidade de natureza fiscal (como uma eventual cobrança de tributo).

A segurança propiciada pela prévia inscrição matricial advém naturalmente da possibilidade que os serviços fiscais têm de, no terreno, e designadamente para efeitos de avaliação, procederem às inspecções e vistorias que se justifiquem. E se é certo que nem sempre (e porventura nem sequer maioritariamente) a inscrição na matriz será precedida duma tal verificação in loco, a simples possibilidade de que ela se tenha realizado ou venha a realizar, através dos meios técnicos e humanos de que para isso os serviços de finanças estão dotados, garante aos olhos da lei aquele mínimo de certeza acerca da existência e identidade do prédio de que se não quis prescindir e que a mera declaração verbal por parte do justificante se tem por incapaz de produzir.

Tudo o que vem de dizer-se a propósito do valor das matrizes enquanto instrumento de acreditação da existência e identidade dos prédios objecto de justificação – e que aliás neste contexto se vem dizendo pelo menos desde o primeiro dos citados pareceres – mantém toda a pertinência no quadro do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, aprovado no âmbito da reforma da tributação do património operada pelo DL n. 287/2003, de 12-11. Basta observar que, nos termos do art. 14.º/2, a avaliação do prédio, sempre que necessário, é precedida de vistoria. De resto, como acentuam J. SILVÉRIO MATEUS e L. CORVELO DE FREITAS, in “Os Impostos sobre o Património Imobiliário – O imposto do Selo”, 2005, p. 191, “embora o CIMI imponha determinados deveres declarativos aos sujeitos passivos do imposto, a verdade é que, face ao princípio da avaliação directa, o procedimento de avaliação caracteriza-se por uma decisiva intervenção oficiosa, prevista no n.º 1 do artigo 37.º e no artigo 67.º, subordinada ao princípio do inquisitório previsto no artigo 58.º da Lei Geral Tributária, donde decorre a obrigatoriedade de confirmar e, se for o caso, de corrigir os elementos declarados.””

O Sr. agente de execução tinha legitimidade para requerer a descrição do prédio no registo predial, tendo em vista a respetiva penhora (cfr. artigos 719.º n.º 1 do CPC, artigos 36.º, 2.º n.º 1 al. n), 8.º-B, n.º 3, al. c) e 80.º n.º 1 do CRP).

E para tal não carecia de diligenciar pela demonstração da legitimação do direito do executado, para além do que já constava na matriz, face à norma excecional prevista no art.º 9.º. n.º 2, alínea a) do CRP:

“Artigo 9.º
Legitimação de direitos sobre imóveis
1– Os factos de que resulte transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis não podem ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo.
2– Exceptuam-se do disposto no número anterior:
a) A partilha, a expropriação, a venda executiva, a penhora, o arresto, a apreensão em processo penal, a declaração de insolvência e outras providências ou atos que afetem a livre disposição dos imóveis; (…).”
 
Contrariamente ao alegado pelo apelante na conclusão s) da apelação, o Sr. agente de execução diligenciou pela aludida penhora após ter procedido à consulta nas bases de dados mencionadas no art.º 749.º n.º 1 do CPC (cfr. n.ºs 12 e 13 da matéria de facto). [...]

Alegou também o executado que o edifício penhorado carece de licença de utilização (o que constituiria obstáculo à sua autonomização jurídica e à sua penhorabilidade). Ora, independentemente de ser discutível que a falta de licença de utilização do edifício constitua o obstáculo apontado pelo executado, a verdade é que nos autos não só não ficou demonstrada essa falta de licença como, em sede de execução, a este respeito o legislador adotou uma solução de defesa dos interesses do credor, conforme decorre do disposto no art.º 833.º n.º 6 do CPC:

“A venda de imóvel em que tenha sido, ou esteja sendo, feita construção urbana, ou de fração dele, pode efetuar-se no estado em que se encontre, com dispensa da licença de utilização ou de construção, cuja falta de apresentação a entidade com competência para a formalização do ato faz consignar no documento, constituindo ónus do adquirente a respetiva legalização”. 

Trata-se, como ponderam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, em Código de Processo Civil Anotado, vol II, Almedina, 2020, p. 253, de “uma solução pragmática que se traduz em transferir para o adquirente o ónus de legalização da construção urbana, mas aproveitando para os fins da execução o respetivo valor que seja pago.” Tal facilitação da transmissão do prédio penhorado, no âmbito da execução, prevista no seio do regime da venda por negociação particular, será extensível, por igualdade de razão, à venda operada mediante propostas em carta fechada (neste sentido, cfr. acórdão da Relação do Porto, de 01.02.2010, processo 2360-D/2002.P1, citado pela apelada).

Também por aqui não há, pois, obstáculo à penhora impugnada."

[MTS]