"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/06/2022

Jurisprudência 2021 (210)


Litisconsórcio voluntário;
recurso; sucumbência*


1. O sumário de RG 21/10/2021 (577/04.1TBVPA-G.G1) é o seguinte:

I - Nos termos do art. 35º do CPC, no litisconsórcio voluntário há uma simples acumulação de ações, conservando cada litigante uma posição de independência em relação aos seus compartes.

O “litisconsórcio voluntário, que tem como alternativa a apreciação separada das situações jurídicas dos vários litisconsortes, leva a que, quando se constitui, por cada um ou contra cada um seja exercido um direito de ação, gerando-se assim um objeto processual múltiplo, o que implica que cada litisconsorte constitua uma parte processual”.

II - Por isso, o valor da sucumbência tem de ser aferido atendendo ao valor que cada um dos litisconsortes foi condenado a pagar, e não à soma das condenações de todos os réus litisconsortes ou à soma das condenações das duas litisconsortes recorrentes.

III - Tendo cada uma das rés litisconsortes voluntárias sido condenada no pagamento da quantia de € 1 689,33, é esse o valor da sucumbência, o qual é inferior a metade da alçada do tribunal de 1ª instância, razão pela qual a decisão não é recorrível.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nas situações de litisconsórcio voluntário a cumulação subjetiva depende exclusivamente da vontade das partes, às quais cabe decidir se a ação é proposta por todos ou contra todos os interessados, ou, diversamente, se apenas é proposta por alguns ou contra alguns dos interessados. Se apenas parte dos interessados estiver em juízo, então o tribunal tem que restringir o conhecimento à respetiva quota-parte do interesse ou da responsabilidade, ainda que o pedido abranja a totalidade.

Dada a existência de unicidade de relação material controvertida, mas com pluralidade de partes, coloca-se a questão de saber qual o posicionamento dos litisconsortes nas suas relações recíprocas, designadamente em que medida é que os atos praticados por um se repercutem e refletem na posição dos demais consortes.

Tal dúvida é solucionada pelo art. 35º do CPC, o qual dispõe que no litisconsórcio voluntário há uma simples acumulação de ações, conservando cada litigante uma posição de independência em relação aos seus compartes, norma esta de onde se pode concluir, como regra geral, que cada um dos consortes atua com independência em relação aos outros, mantendo-se a natureza independente das ações, embora estejam cumuladas no mesmo processo.

Como manifestação ou decorrência desta posição de independência dos litisconsortes voluntários, o art. 288º, nº 1, do CPC, consagra a liberdade de confissão, desistência e transação individual, limitada ao interesse de cada um na causa e o art. 634º, nº 2, als. a) a c), também do CPC, regula os casos em que, fora do litisconsórcio necessário, o recurso aproveita aos compartes não recorrentes, daí resultando, a contrario, que, nos demais casos, o recurso não aproveita aos não recorrentes.

O “litisconsórcio voluntário, que tem como alternativa a apreciação separada das situações jurídicas dos vários litisconsortes, leva a que, quando se constitui, por cada um ou contra cada um seja exercido um direito de ação, gerando-se assim um objeto processual múltiplo, o que implica que cada litisconsorte constitua uma parte processual” (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 104).

Ora, revertendo e aplicando estas considerações ao caso em apreço, os autores demandaram os réus com fundamento numa relação material controvertida consubstanciada na relação de mandato judicial. Os autores não demandaram todos os mandantes, pois três deles já tinham procedido ao pagamento da sua quota-parte de responsabilidade quanto ao valor global da nota de honorários e despesas, só tendo demandado os réus, alegando que os mesmos não efetuaram o pagamento da sua quota-parte.

Por conseguinte, estamos perante uma situação de litisconsórcio voluntário passivo.

Como decorre do citado art. 35º do CPC, nesta situação há uma mera acumulação de ações, conservando cada litigante uma posição de independência em relação aos seus compartes.

Por isso, o valor da sucumbência tem de ser aferido atendendo ao valor que cada um dos litisconsortes foi condenado a pagar, e não à soma das condenações de todos os réus litisconsortes ou à soma das condenações das duas litisconsortes recorrentes.

Uma vez que cada litisconsorte foi condenado no pagamento da quantia € 1 689,33, valor que é inferior a metade da alçada do tribunal de 1ª instância (€ 2 500), falece efetivamente o requisito atinente ao valor da sucumbência, sendo a decisão irrecorrível, nos termos do art. 629º, nº 1, do CPC.

Por outro lado, também não releva aqui o valor do pedido reconvencional julgado improcedente para efeitos de determinação do valor da sucumbência.

Com efeito, esse pedido reconvencional não foi deduzido pelas rés recorrentes e reclamantes T. J. e R. F., mas sim pela ré A. F., a qual não recorreu da decisão e à qual, dada a situação de litisconsórcio voluntário, não aproveita o recurso interposto pelas demais rés por não se verificar nenhuma das hipóteses a que alude o art. 634º, nº 2, do CPC.

Por conseguinte, o valor do pedido reconvencional julgado improcedente não se pode somar ao valor em que as rés T. J. e R. F. foram condenadas para efeitos de determinar o valor das respetivas sucumbências.

Também o valor dos juros de mora não releva para determinação do valor de sucumbência. Mas, mesmo que se entendesse diversamente, somando tal valor, que as rés consideram ser de € 681,47, contabilizados até 14.12.2020, com a quantia de € 1 689,36 em que foram condenadas, ainda assim o valor global seria de € 2 370,83, o qual não excede metade da alçada do tribunal de 1ª instância que é de € 2 500.

Por conseguinte, e em suma, entende-se que a sucumbência das duas rés recorrentes e reclamantes corresponde unicamente ao valor de € 1 689,33 em que cada uma delas foi condenada."


*3. [Comentário] O acórdão decidiu bem a questão sub iudice.

Cabe, no entanto, chamar a atenção para que o disposto no art. 35.º CPC é equivocado sob vários aspectos. Admita-se, por exemplo, que a situação em análise no acórdão se reportava a uma dívida solidária; o litisconsórcio constituído pelos vários devedores solidários demandados é voluntário (art. 32.º, n.º 1 1.ª parte, CPC); no entanto, apesar deste litisconsórcio ser voluntário, já não se pode dizer que "há uma mera acumulação de ações, conservando cada litigante uma posição de independência em relação aos seus compartes".

MTS