"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/06/2022

Jurisprudência 2021 (228)


Matéria de facto;
"juízos conclusivos"; matéria de direito

1. O sumário de RL 2/12/2021 (96185/19.6YIPRT.L1-2) é o seguinte:

I - Um facto ou uma alegação de facto não poderá deixar de ser uma realidade objetiva passível de ser apreendida por um qualquer meio de prova, distinguindo-se das questões jurídicas, cuja resposta é dada por via da interpretação e aplicação das regras de direito aos factos considerados como provados.II - Assim, discutindo-se nos autos se a Autora tem direito a exigir da Ré o valor peticionado relativo às prestações mensais do contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes por falta de denúncia válida do mesmo, não se pode responder a tal questão na decisão da matéria de facto, fazendo aí constar que os meses de junho a setembro de 2019 foram “corretamente faturados” e que as faturas originadas pela prestação de serviços respeitantes a tais meses, cujo “total em dívida é de 20.284 €”, se encontram por liquidar.

III - Sendo a revogação unilateral do contrato de prestação de serviço consentida pela lei, face ao preceituado no art. 1170.º do CC, aplicável por via do disposto no art. 1156.º do CC, impõe-se concluir que, no seguimento da receção pela Autora (cf. art. 224.º do CC) da declaração pela qual a Ré revogou unilateralmente o contrato, este veio a cessar a sua vigência no dia 1 de junho de 2019, não mais estando as partes obrigadas ao seu cumprimento.

IV - Tendo o contrato findado, procede a exceção perentória deduzida pela Ré e improcede necessariamente a pretensão da Autora, assente num pressuposto fáctico que não se verifica, o de que o contrato de prestação de serviços continuava em vigor e, por isso, a Ré estaria obrigada a cumpri-lo, realizando a prestação pecuniária contratualmente estipulada (cf. art. 762.º do CC).

V - Questão diferente, mas que não cabe aqui apreciar (sendo mesmo questão nova), é a de saber se dada a forma como a Ré veio fazer cessar o contrato, com a sua revogação unilateral, ainda que lícita, incorreu na obrigação de indemnizar a Autora. Com efeito, não constitui o objeto do litígio, conformado pelo pedido formulado e respetiva causa de pedir indicados no requerimento de injunção, saber se a Autora tem direito a uma indemnização (pretensão que, aliás, não podia fazer através de procedimento de injunção), pelo que constituiria uma violação dos princípios do contraditório, do dispositivo e da estabilidade da instância apreciar se a Ré devia ser condenada no pagamento das quantias peticionadas, mas agora a título de indemnização de (supostos) danos pela revogação unilateral/resolução do contrato.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Em primeiro lugar, importa que nos detenhamos nas alíneas e), f) e g) da decisão da matéria de facto, apreciando se, como defende a Ré, devem ser eliminadas/alterada(s).

A resposta deve ser afirmativa, já que o seu conteúdo não corresponde, verdadeiramente, a nenhum facto substantivamente relevante, mas antes a conclusões jurídicas que só em sede de fundamentação de direito poderão ser retiradas dos factos provados.

Com efeito, preceituam os n.ºs 3 e 4 do art. 607.º do CPC que, na sentença, o juiz deve “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final”; e que, “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.

É sabido que nem sempre é fácil destrinçar matéria de facto e matéria de direito, sendo muitas vezes a própria natureza do litígio que funciona como critério orientador. Por exemplo, numa ação de despejo em que não se discuta a existência de uma relação jurídica locatícia é pacífico que a expressão “renda” pode ser utilizada na decisão da matéria de facto; ao invés, já será de evitar numa ação de reivindicação em que exista controvérsia sobre a verificação de certos factos atinentes a um alegado acordo e à sua qualificação como contrato de arrendamento.

Mas um facto ou uma alegação de facto não poderá deixar de ser uma realidade objetiva passível de ser apreendida por um qualquer meio de prova, distinguindo-se das questões jurídicas, cuja resposta é dada por via da interpretação e aplicação das regras de direito aos factos considerados como provados. Daí que, quanto a estas, independentemente de impugnação da decisão da matéria de facto no recurso (que no caso até existiu), o Tribunal superior não fique vinculado ao que foi decidido na sentença – cf. art. 5.º, n.º 3, do CPC.

A jurisprudência tem vindo a entender que tudo se passa como se a resposta a tais questões (supostamente) de “facto” fosse de considerar não escrita. Nesta linha, veja-se o acórdão da Relação do Porto de 07-10-2013, no proc. n.º 488/08.1TBVPA.P1, disponível em www.dgsi.pt, conforme se alcança do respetivo sumário: “Na vigência do Código de Processo Civil anterior, mas igualmente após 1.09.2013, ocasião em que passou a vigorar a Lei 41/2003, de 26 de junho (NCPC) a matéria de facto à qual há que aplicar o direito tem de cingir-se a verdadeiros factos e não a questões de direito ou a meros juízos conclusivos. Neste sentido, a revogação do artigo 646, n.º 4 do anterior CPC, não significa que o princípio nele estabelecido haja sido alterado.” E o acórdão do STJ de 07-05-2014, no proc. n.º 39/12.3T4AGD.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, citando-se parte do respetivo sumário: “I - Compete ao Supremo Tribunal de Justiça, por tal constituir matéria jurídica, apreciar se determinada asserção – tida como “facto” provado – consubstancia na realidade uma questão de direito ou um juízo de natureza conclusiva/valorativa, caso em que, sendo objeto de disputa das partes, deverá ser julgada não escrita.”

Sobre esta problemática, também se reveste de interesse o artigo de Paulo Ramos de Faria, “Escrito ou não escrito, eis a questão! (A inclusão de proposições de direito na pronúncia de facto)”, publicado na Revista JulgarOnline, novembro de 2017, em que o autor explica a razão de ser do preceito constante do art. 646.º, n.º 4, do anterior Código de Processo Civil, concluindo que “é manifestamente errada a inclusão de proposições de direito na pronúncia de facto. Sinalizado o erro, tais proposições devem ser tidas por imprestáveis, inúteis ou irrelevantes – vale qualquer predicação que evidencie a sua inidoneidade para, no lugar de um facto, servir de premissa ao silogismo judiciário –, mas nunca por inexistentes ou não escritas.”

No caso dos autos, face ao objeto do litígio e ao objeto do recurso, é manifesto que as referidas alíneas da decisão da matéria de facto, mais do que contendo um inócuo juízo puramente conclusivo, entram de forma ostensiva no domínio da questão de direito a decidir, cuja resposta apenas poderá ser dada partindo dos factos concretos atinentes à vigência e conteúdo do contrato celebrado entre as partes, aos quais há que aplicar as regras de direito com a liberdade que promana do art. 5.º, n.º 3, do CPC. Verifica-se inclusivamente ter sido dado como provado um valor errado da fatura n.º 170, o que, só por ostensivo lapso de escrita ou confusão entre facto e direito, se pode explicar e cuja retificação já se fez.

Pelo exposto, determina-se a alteração da decisão da matéria de facto:

- eliminando a alínea g);

- agrupando as alíneas e) e f) numa única alínea [designada pela letra e)] e retificando o seu conteúdo, que passa a ser:

“e) - A Ré não pagou as quantias referentes aos meses de junho a setembro de 2019, que a Autora faturou, com a emissão das seguintes faturas:

- N.º 132, datada de 04-07-2019, com vencimento a 04-08-219, no valor de 6.642 €;

- N.º 155, datada de 01-08-2019, com vencimento a 01-09-2019, no valor de 6.642 €;

- N.º 170, datada de 30-08-2019, com vencimento a 30-09-2019, no valor de 6.642 €”.


*3. [Comentário] a) A 1.ª instância tinha dado como provado, além do mais, o seguinte (mantém-se os rasurados constantes do relatório do acórdão):

"e) - A Ré não pagou as quantias referentes aos meses de junho a setembro de 2019, apesar de terem sido corretamente faturados.
 
f) - Tal prestação de serviços originou a emissão das seguintes faturas, que se encontram por liquidar: Faturas:

 - [N.º] 132 [datada de] 04-07-2019 [com vencimento a] 04-08-219 [no valor de] 6.642 €;

 - [N.º] 155 [datada de] 01-08-2019 [com vencimento a] 01-09-2019 [no valor de] 6.642 €;

 - [N.º] 170 [datada de] 30-08-2019 [com vencimento a] 30-09-2019 [no valor de] 6.000 € [face ao acordo das partes nos articulados e ao documento 1 junto aos autos pela Autora, o valor correto é 6.642 €].

 g) - O total em dívida é de 20.284 €; [...]"


A RL alterou esta matéria dada como provada nestes termos:

"Pelo exposto, determina-se a alteração da decisão da matéria de facto:

- eliminando a alínea g);

- agrupando as alíneas e) e f) numa única alínea [designada pela letra e)] e retificando o seu conteúdo, que passa a ser:

“e) - A Ré não pagou as quantias referentes aos meses de junho a setembro de 2019, que a Autora faturou, com a emissão das seguintes faturas:

- N.º 132, datada de 04-07-2019, com vencimento a 04-08-219, no valor de 6.642 €;

- N.º 155, datada de 01-08-2019, com vencimento a 01-09-2019, no valor de 6.642 €;

- N.º 170, datada de 30-08-2019, com vencimento a 30-09-2019, no valor de 6.642 €”.

b) A RL fundamentou a alteração na circunstância de os factos considerados provados pela 1.ª instância serem "juízos conclusivos". Não cabe agora discutir o que sejam "juízos conclusivos" e, portanto, juízos proibidos em matéria de facto (juízos que, a existirem, proscrevem, por exemplo, a afirmação de que "o acidente ocorreu num dia chuvoso" ou de que "o trabalhador sofreu ferimentos graves"). Devidamente analisado, o acórdão mostra um outro iter decisório.

A RL entendeu que o contrato de prestação de serviços entre as partes tinha sido resolvido e, por isso, o réu nada tinha a prestar ao autor. Nesta óptica, é claro que determinados meses nunca podiam "ter[...] sido corretamente facturados". 

Então, o que fez verdadeiramente a RL? O que a RL fez foi entender que, em função do julgamento de direito (resolução do contrato), não era possível dizer que determinados meses tinham sido "corretamente faturados". Supõe-se que, evitando, naturalmente, um preciosismo inconsequente, a RL jamais teria feito a mesma censura se tivesse concluído que, em função da matéria de direito, os meses que não se podia dizer que tinham sido "corretamente faturados" afinal tinham sido mesmo correctamente facturados.

Permite-se sublinhar este aspecto. Por muita aversão que exista em relação aos "juízos" ou aos "factos conclusivos", duvida-se que alguma vez seja feita alguma censura a esses "juízos" ou "factos" se, afinal, eles forem compatíveis com o julgamento da matéria de direito. Dificilmente se aceita que alguma Relação se disponha a eliminar, numa parte do seu acórdão, um alegado "juízo conclusivo" para, depois, o admitir, numa outra parte do mesmo acórdão, como "juízo de direito". A ser assim, o controlo dos "juízos conclusivos" fica limitado às situações em que os mesmos sejam incompatíveis com a decisão em matéria de direito

c) Em suma: em vez de confirmar a impossibilidade de dar como provados "juízos conclusivos" (seja isso o que for), o acórdão é antes um bom exemplo da relação mútua que tem de haver entre a matéria de facto e a matéria de direito e da necessidade de considerar cada uma delas em função da outra.

MTS