"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/06/2022

Jurisprudência 2021 (218)


Citação pessoal;
pessoa diversa do citando; presunção


1. O sumário de RC 23/11/2021 (269/08.2TBPBL-C.C1) é o seguinte:

I - Os artigos 233.º, n.º 4, e 238.º, n.º 1, do anterior Código de Processo Civil (com equivalentes nos atuais 225.º, n.º 4, e 230.º, nº 1) estabelecem uma presunção ilidível, cumprindo ao citando demonstrar que a morada para onde foi enviada a carta não é a sua residência e que o seu não conhecimento se ficou a dever a facto que não lhe é imputável.

II - A presunção é por natureza falível. A sua força persuasiva pode, por isso mesmo, ser afastada por simples contra prova.

III - No caso, pelo conjunto de circunstâncias apuradas, o citando demonstra que a morada para onde foi enviada a carta não era a sua residência e que o seu não conhecimento se ficou a dever à conduta de terceiro, pessoa que não assegura, podendo fazê-lo, que lhe tenha entregue a carta de citação.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Para a análise deste ato processual, considerando o tempo da sua alegada realização (2008), é aplicável a lei processual anterior, conforme se retira da leitura dos arts.5º, nº3 e 6º, nº3, da Lei 41/2013 que aprovou o novo Código de Processo Civil.

A citação, conforme dispõe o artigo 228º, nº 1, do Código aplicável, é o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender.

A lei preocupa-se em assegurar, pelos meios possíveis, o efetivo conhecimento por parte do réu da existência de um processo contra si interposto.

A sua falta acarreta a anulação do processado posterior à petição (art.194º, a), da lei processual anterior), por estar em causa o direito de defesa e do contraditório, princípios basilares do processo civil. (Neste caso, a anulação é apenas relativa ao identificado Executado.)

O legislador rodeia a citação de inúmeras cautelas, a fim de lhe conferir a necessária fiabilidade.

No caso, está em causa a citação postal.

Dispõe o nº 1 do artigo 236º do C.P.C. que “a citação por via postal faz-se por meio de carta registada com aviso de recepção, de modelo oficialmente aprovado, dirigida ao citando e endereçada para a sua residência ou local de trabalho …(…), incluindo todos os elementos a que se refere o artigo 235º, e ainda a advertência, dirigida ao terceiro que a receba, de que a não entrega ao citando, logo que possível, o fará incorrer em responsabilidade, em termos equiparados aos da litigância de má fé”.

O valor da citação postal está previsto no artigo 238º, nº 1, do C.P.C., na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8.03: “a citação postal efectuada ao abrigo do artigo 236.º considera-se feita no dia em que se mostre assinado o aviso de recepção e tem-se por efectuada na própria pessoa do citando, mesmo quando o aviso de recepção haja sido assinado por terceiro, presumindo-se, salvo demonstração em contrário, que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário”.

Ora, no caso, a carta endereçada para citação do Executado, entregue a pessoa diversa, foi para morada que não era (ou já não era) a morada daquele.

Nos termos do referido art.238º, nº1, a lei presume, “salvo demonstração em contrário, que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário.”

Esta presunção decorre de a citação ter sido realizada ao abrigo do art.236º, no qual estão previstas cautelas postais de identificação e advertência.

Como resulta da expressa salvaguarda, a presunção é ilidível ou passível de prova em contrário.

Como alertam P. Lima e A. Varela (C.C. Anotado, vol. I, 3ª edição, página 310), “as presunções são meios de prova por sua natureza falíveis, precários, cuja força persuasiva pode, por isso mesmo, ser afastada por simples contra prova.”

Poderia entender-se que a “demonstração em contrário” seria a prova (segura) de que a carta não foi entregue.

Porém, esta prova, de facto negativo, não pode desconsiderar a natureza da presunção e aquela doutrina de que bastará uma “simples contraprova”.

Entendemos, na salvaguarda da citação, para a referida demonstração, bastará abalar seriamente o facto presumido da entrega da carta, colocando o julgador numa dúvida séria de que esta tenha ocorrido.

No caso, o conjunto de factos apurados permitem concluir que aquela presunção foi ilidida.

No contexto, se o terceiro responsável pela entrega não assegura em julgamento que entregou a carta, que é quem o pode fazer, outra prova, além daquela que foi feita, não é exigível ao citando. O terceiro está em melhores condições de certificar a entrega do que o citando de assegurar a não entrega.

A declaração do terceiro que não assegura a entrega é suficiente, na defesa da certeza e segurança jurídicas, para declarar que a mesma não ocorreu.

O abalo sobre a verificação do facto presumido é muito sério.

Se a lei se preocupa em assegurar um efetivo conhecimento, não é nestas condições que ficamos tranquilos a respeito do mesmo.

Assim, ilidida a presunção da entrega, ocorre a decidida falta de citação.

Não é a circunstância do envio de nova carta, agora no âmbito do art.241º da lei em análise, que afasta aquela conclusão. Esta 2ª carta simples é enviada para a residência que está certificada como não sendo do interessado e depois da carta principal não ter sido recebida. O seu valor confirmativo é então inexistente. (Neste sentido, o acórdão desta secção, em coletivo diferente, de 10.2.2015, proc.391/10.5TBMMV-C.C1, não publicado; no sentido de afastar logo à partida o funcionamento da presunção, por se tratar de morada que não é a do interessado, o acórdão do STJ, de 6.6.2019, no proc.1202/15, em www.dgsi.pt.).

[MTS]