"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/06/2022

Jurisprudência 2021 (215)


Direito de retenção;
usufruto; tornas


1. O sumário de RP 21/10/2021 (891/21.1T8AVR.P1) é o seguinte:

Não goza de direito de retenção a recorrente, obrigada a entregar o imóvel de que era usufrutuária, por crédito (pagamento de tornas) que não tem origem em despesas efetuadas por causa do imóvel ou por danos causados pelo mesmo.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3). Da apreciação de direito.

A recorrente formulou dois pedidos:

. que fosse prorrogado o seu direito de usufruto até transito em julgado do processo principal (ação de impugnação pauliana, a intentar) e, caso assim não se entendesse,

. o mesmo bem ser retido na posse da recorrente até trânsito em julgado da referida ação de impugnação pauliana.

Ambos foram julgados improcedentes, sendo que no recurso está em causa a apreciação do segundo, pedido subsidiário.

Vejamos então.

O sustento da recorrente para a presente ação consiste em que:

. era titular de direito de usufruto sobre um imóvel;

. é credora do 1.º recorrido (seu ex-marido) no valor de 75 000 EUR;

. antes de findar o prazo do indicado usufruto, o seu ex-marido deu em pagamento a nua propriedade do imóvel à 2.ª requerida;

. além de ser estranho que exista esta dívida entre o seu ex-marido e a irmã, a recorrente foi enganada no sentido de não poder ter toda a proteção legal (hipoteca) caso se tivesse declarado em sede de partilhas que havia uma dívida de tornas;

. a dação visou evitar o pagamento da dívida à recorrente pois o seu ex-marido não tem outro acervo patrimonial.

Os presentes autos foram instaurados em 18/03/2021, ou seja, um dia depois do fim do prazo pelo qual foi constituído o direito de usufruto a favor da recorrente, estando assim caducado, como também resulta do disposto no artigo 1476.º, n.º 1, a), parte final, do C. C.: o direito de usufruto extingue-se quando se atinge o termo do prazo por que o direito foi constituído, quando não seja vitalício.

Ora, tendo por base o recurso, a recorrente pretende evitar a entrega do imóvel à proprietária da totalidade do mesmo (caducado o direito de usufruto, o imóvel readquire a sua integralidade de nua propriedade e usufruição), obrigação essa que resulta do artigo 1483.º, do C. C..

Este dispõe que «findo o usufruto, deve o usufrutuário restituir a coisa ao proprietário, sem prejuízo do disposto para as coisas consumíveis e salvo o direito de retenção nos casos em que possa ser invocado.».

Não estando em causa coisas consumíveis (artigo 208.º, do C. C.), só se o usufrutuário tiver algum direito de crédito que possa opor ao proprietário e se se preencher os requisitos necessários para se concluir que goza de direito de retenção, é que pode o mesmo usufrutuário negar a entrega.

Na realidade, o artigo 754.º, do C. C. exige que o devedor goze de um crédito contra o seu credor para poder ter direito de retenção, ou seja, no caso, a recorrente (devedora da obrigação de entrega) teria de gozar de um crédito oponível ao seu credor da mesma obrigação de entrega.

E, na nossa opinião, não goza a requerente desse direito.

O crédito de que a mesma é titular sobre o 1.º requerido não resulta de despesas feitas por causa da coisa nem de danos causados pela mesma coisa. Do que sabemos, o imóvel foi entregue à requerente e esta tem de entregá-lo, atenta a caducidade do direito de usufruto, sem ter tido despesas em relação ao mesmo bem.

O crédito que a recorrente tem sobre o 1.º recorrido é independente da detenção do imóvel; nasceu antes da constituição do usufruto e eventuais alterações (pagamentos parciais, por exemplo) não estão relacionados com o gozo e fruição do imóvel.

Se a recorrente tivesse realizado benfeitorias no bem, então o crédito que teria sobre o 1.º recorrido teria por base a coisa podendo servir de base a um direito de retenção.

E, nesse caso, este direito de retenção, como direito real de garantia, seria oponível não só ao devedor como a qualquer adquirente posterior do imóvel, atenta a característica erga omnes e o direito de sequela de que está imbuído o direito real – Ac. do S. T. J. de 14/12/2016, processo n.º 662/09.3TVPRT.P1.S1, www. dgsi.pt; Ana Taveira da Fonseca, A oponibilidade do direito de retenção, página 10, in https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2017/05/int_oponibilidadedireitoretencaoo_anataveiradafonseca.pdf -.

Se a recorrente gozasse do direito de retenção, mesmo que o seu devedor fosse o anterior proprietário do bem, poderia opô-lo à atual proprietária, agora a 2.ª requerida/recorrente.

Mas, como vimos, a recorrente não beneficia desse direito de retenção tal como definido em termos gerais nem há norma que lhe confira essa garantia em termos especiais – n.º 1, do artigo 755.º, do C. C. -.

A recorrente também não goza da possibilidade de evitar a entrega do imóvel temporariamente nos termos da exceção de não cumprimento (artigo 428.º, do C. C.) pois (aqui sim) não há relação contratual (sinalagma) entre a obrigação de entrega e o crédito de que a recorrente é titular em relação a terceiro que não a credora dessa obrigação de entrega. Recorrente e 2.ª recorrida não celebraram qualquer contrato entre si pelo que a recorrente não pode exigir que a contraparte cumpra a sua obrigação para consigo pois essa obrigação não existe.

Assim, o sustento do procedimento cautelar não resulta provado, ou seja, a requerente não tem um direito sobre os requeridos que lhe permita reter o imóvel enquanto não for paga do seu crédito, pelo que se tem de concluir pela improcedência quer do procedimento quer do presente recurso por falta de preenchimento de um dos requisitos do artigo 362.º, n.º 1, do C. P. C. - lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito -.

Pode eventualmente a recorrente alegar que é credora do 1.º recorrido e que a dação em pagamento do imóvel daquele à 2.ª recorrida visou unicamente evitar o pagamento coercivo do seu crédito, até sendo a ação principal a impugnação pauliana, mas, nos presentes autos e tendo por base o objeto do recurso, este procedimento cautelar, independentemente da ação principal a propor, não pode obter procedência.

[MTS]