1- Vejamos se os factos provados do n.º 6 (relativos ao pedido e levantamento de certidões do processo para efeitos de registo predial do prédio) deverão ser qualificados como factos essenciais e se, tendo tal qualificação, estarão fora da causa de pedir alegada, uma vez que não terão sido afirmados na petição e, sendo assim, não poderão ser levados em consideração face ao disposto no artigo 5.º do Código de Processo Civil, sob pena de existir, diz a Ré, excesso de pronuncia e violação do princípio do dispositivo por parte do tribunal a quo.
Cumpre começar por definir o que se entende por factos essenciais, complementares e instrumentais face ao disposto no artigo 5.º do Código de Processo Civil, cuja redação é a seguinte:
«1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
3 - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.»
O facto recebe da lei a designação de essencial quando integra a causa de pedir da ação ou integra a matéria da exceção invocada como facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito invocado, tratando-se de um facto que está pressuposto abstratamente na respetiva regra jurídica cuja aplicação se invoca.
Os factos complementares, a que alude a al. b), do n.º 2, são complementares relativamente aos factos essenciais, isto é, embora não integrem a causa de pedir podem ser necessários para que esta seja operante face às diversas normas jurídicas aplicáveis. Por exemplo, quando a causa de pedir invocada é complexa e os factos essenciais, nucleares, carecem ainda da conjunção de outros factos para desencadearem o efeito jurídico previsto na facti species legal.
Vejamos um exemplo.
Nos termos do artigo 351.º do Código do Trabalho (aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro), «Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.»
No n.º 2 deste artigo enumeram-se diversos tipos de justas causas de despedimento, entre as quais, na al. a), a «Desobediência ilegítima às ordens dadas por responsáveis hierarquicamente superiores.»
Esta causa de despedimento, os factos que integram a «desobediência ilegítima às ordens...» são factos essenciais, mas são insuficientes só por si, pois carecem de ser complementados por outros factos que revelem um grau de gravidade e consequências que tornem imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
Estes últimos são factos complementares.
Os factos instrumentais desempenham essencialmente duas funções:
Uma mais remota, servindo para preencher o contexto ou fundo factual onde se movem os factos essenciais, tornando-os acessíveis à compreensão;
Outra mais chegada aos factos essenciais, constituindo provas ou contraprovas da existência destes últimos.
Ou seja, uma vez provados os factos instrumentais, estes integrarão a premissa menor de um raciocínio por presunção que poderá conduzir à convicção de que o facto essencial agora presumido existiu ou, então, não existiu.
Vejamos então o caso dos autos.
Quanto à causa de pedir, o Autor afirma no requerimento inicial o seguinte: «Contrato de: Fornecimento de bens e serviços»; «Data do contrato: 16-10-2009»; Período a que se refere: 16-10-2009 a 02-10-2017». Depois indica na nota de honorários o rol de diligências que praticou, tempo gasto, preço da hora de trabalho, sendo que o último dos factos alegados na nota de honorários foi praticado, como resulta documentado no processo de inventario, em 3 de maio de 2016, data da notificação do último despacho do juiz e respetiva análise pelo mandatário, ora autor.
Provou-se, no entanto, que além destes atos o autor ainda praticou no processo os atos mencionados no facto provado n.º 6, ou seja, os relativos ao pedido, pagamento e levantamento de certidões para efeitos de registo predial do imóvel, sendo o último dos atos levado a cabo em 08/07/2016 (pagamento da certidão).
Coloca-se, como se disse, a questão de saber se estes últimos atos integram a causa de pedir.
A resposta é negativa, muito embora tais atos tenham integrado o exercício do mandato no referido processo de inventário.
Com efeito, sendo a causa de pedir a factualidade concreta, histórica, valorada pela lei substantiva, de onde emerge o direito alegado pelo Autor, então, no caso dos autos, a causa de pedir é genericamente constituída pelo contrato de mandato e pelo conjunto de atos praticados pelo autor no exercício desse mandato forense no mencionado processo de inventário.
Com efeito, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 44.º do CPC, «O mandato atribui poderes ao mandatário para representar a parte em todos os atos e termos do processo principal e respetivos incidentes, mesmo perante os tribunais superiores, sem prejuízo das disposições que exijam a outorga de poderes especiais por parte do mandante.»
Por conseguinte, o mandato forense é constituído por todos os atos praticados no processo ao abrigo desse contrato, tenham ou não sido quantificados todos eles para efeitos da nota de honorários.
Como se vem referindo, coloca-se a questão de saber se essa causa de pedir é constituída apenas pelos atos identificados na nota de honorários ou se a causa de pedir abrange antes todos os atos, constantes ou não dessa nota de honorários.
Dir-se-á que só podem integrar a causa de pedir os atos referidos na nota de honorários porque só esses relevam para efeitos de remuneração do mandato.
Contrapor-se-á que não, que poderão existir outros atos com relevância jurídica e que não contam para efeitos de determinação da remuneração do mandato, como é o caso, por exemplo, de atos praticados que possam contar para determinação do termo final do mandato, mas não contam para efeitos de remuneração, como ocorre no caso dos autos com o pedido de emissão de certidões do processo para efeitos de registo predial.
Porém, concluindo-se que tais atos (pedido de certidões) ainda integram o mandato, tal não significa que sejam factos essenciais integrantes da causa de pedir.
Com efeito, tais factos só se tornaram relevantes no processo porque a Ré invocou a prescrição presuntiva consagrada na alínea c) do artigo 317.º do Código Civil.
Se a Ré não tivesse invocado a prescrição presuntiva tais factos eram processualmente desnecessários, inúteis, e permaneceriam desconhecidos.
Por conseguinte, tendo tais factos sido alegados apenas e só para neutralizar a invocação da prescrição presuntiva por parte da Ré, então isso mostra que não fazem parte da causa de pedir e não podem ser qualificados como essenciais.
Não podendo tais factos ser qualificados como essenciais têm de caber no conceito de factos complementares, pois seguramente não são factos instrumentais, como resulta da destrinça a que se procedeu supra.
Como se disse, os factos complementares, a que alude a al. b), do n.º 2, são complementares relativamente aos factos essenciais. Relevam quando estes últimos carecem ainda da conjunção de outros factos para desencadearem o efeito jurídico previsto na facti species legal.
É o que ocorre no caso dos autos, pois a Ré ao invocar aos factos atinentes ao funcionamento da prescrição presuntiva fez surgir a necessidade, para o Autor, de invocar factos adjuvantes dos invocados como causa de pedir, de modo a evitar que estes perdessem a sua eficácia constitutiva do direito invocado.
Por conseguinte, os factos invocados como sendo os últimos praticados no exercício do mandato que serve de causa de pedir à ação, embora não integram a nota de honorários, complementam os que aí constam, os que constituem a causa de pedir.
Como factos complementares, podiam ser tomados em consideração pelo tribunal, como foram, face ao disposto no artigo 5.º do Código de Processo Civil, acima transcrito.
Aliás, é esta visão que equilibra os interesses do credor e do devedor.
Com efeito, o mandato forense só se extingue no final do processo, que coincidirá com o último ato praticado pelo advogado (por exemplo: receção e leitura de uma notificação) e podem existir atos no final do processo que o advogado entenda não quantificar para efeitos de remuneração, dada a sua simplicidade, como, por exemplo, a leitura de um despacho cujo teor já era esperado.
No entanto, a simplicidade do ato e a existência de atos que não justificam remuneração só fica estabelecida no final do processo, isto é, só no final, depois de se saber o que de facto aconteceu, é que o advogado sabe o que deve ser contabilizado e o que não deve ser.
Por isso, poderia ser desproporcionado e injusto que o termo inicial da prescrição presuntiva se contasse do último ato contabilizado para efeitos de remuneração do mandato, pois poderia dar-se o caso de ter decorrido largo tempo entre esse ato e o final do processo e nada de relevante se tivesse passado nesse espaço de tempo, sendo certo que só no final o advogado ficou a saber que nada de relevante tinha ocorrido que justificasse ser integrado na conta final.
Concluindo.
Os factos do ponto 6 dos factos provados são factos complementares daqueles que constituem a causa de pedir e podiam ser levados em consideração, como foram, pelo tribunal, apesar de não alegados na petição.