Decisão;
ineficácia; conhecimento*
1. O sumário de RP 8/11/2021 (843/18.9T8PVZ.P1) é o seguinte:
I - A ineficácia da decisão que contraria o caso julgado anterior, constitui fundamento de embargos à execução fundada em sentença, nos termos do art. 729º/f) CPC.
II - O pedido de ineficácia, com fundamento no art. 625º/1 CPC, tem de ser dirigida ao processo onde foi proferida a sentença que violou o caso julgado anterior, no sentido de não ser reconhecida eficácia à decisão e só dessa forma subsiste apenas uma decisão, porque à outra não se reconhece efeito. Mas até assim ser declarado ou decidido, ambas subsistem na ordem jurídica. Tal como o caso julgado deve ser suscitado na ação, também o reconhecimento da ineficácia da decisão deve ser suscitado na ação onde foi proferida a decisão que violou o caso julgado anterior.
III - Não se alegando que a sentença, com trânsito em julgado, que homologou a partilha no processo de inventário por óbito do “de cujus” foi declarada ineficaz, por aplicação do regime previsto no art. 625º/1 CPC, não há fundamento para alterar o ali decidido quanto ao montante das tornas devidas, carecendo os autores de interesse na promoção da ação.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Instaurado processo de inventário para partilha por óbito de Z… foi proferida sentença que homologou a partilha - sentença homologatória de partilha de 18 de setembro de 2015 no Proc. 152/04.0TVPRT (cfr. ponto XXXIV dos factos provados).
Depois de proferido o acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça em 21 de abril de 2009, no Proc. 1684/04.6TVPRT, revista 653/09, com trânsito em julgado e até ser proferida a sentença homologatória de partilha de 18 de setembro de 2015 no Proc. 152/04.0TVPRT, foram suscitados incidentes no processo de inventário que apreciaram a concreta questão de saber se os autores/apelantes estavam obrigados a restituir à herança aberta por óbito de Z… a quantia de € 265.700,00. A integração de tal verba na partilha, que culminou com a sentença homologatória de partilha, que transitou em julgado, respondeu definitivamente à questão (cfr. pontos XX a XXXIV dos factos provados).
Refere-se a este respeito na sentença objeto de recurso, com argumentos que em nada foram refutados pelos apelantes:
“Na verdade, contrariamente ao que defendem, as soluções jurídicas acolhidas nas decisões do processo de inventário nº 152/04.0TVPRT não estão em oposição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Abril de 2009, proferido no processo nº 1684/04.6TVPRT, sendo, pelo contrário, perfeitamente conciliáveis.
O protocolo de 19 de Maio de 2003, assinado pela Mãe, o cunhado K… e sete dos irmãos da Autora, por exigência desta e do Autor, como condição para a concretização da venda dos prédios da “AB…”, previu o recebimento da quantia de € 265.700, por conta da sua quota na herança do falecido Z…, o que foi concretizado com a celebração do contrato promessa; os Autores consideravam-se quitados relativamente aos demais herdeiros no que concerne ao seu quinhão na referida herança, o que incluía despesas por si efetuadas, excluíam do protocolo os demais bens imóveis da herança que estivessem na mesma situação da AB…, bem como todos os bens que constituíam o recheio da mesma quinta, cuja partilha seria feita em momento ulterior e aquando do levantamento dos mesmos.
Não há qualquer dúvida que o Acórdão de 21 de Abril de 2009 arredou a existência do vício de coação que os Autores da referida ação entendiam ferir o protocolo e, consequentemente, absolveu os ali Réus e aqui demandantes do pedido de restituição da quantia de €282.698,70 acrescida de juros de mora calculados à taxa legal desde 12 de Junho de 2003.
Porém, precisamos não esquecer que os negócios de compra e venda celebrados entre os aqui Autores e os pais/sogros por escrituras públicas de 2 de Abril, 16 de Outubro, 5 de Dezembro todas do ano 1984 e de 3 de Janeiro de 1985, foram julgados nulos por simulação no mesmo processo, o que significa a destruição retroativa dos seus efeitos e o regresso dos mesmos à esfera jurídica do património comum do casal entretanto dissolvido do Eng. Z….
Por outro lado, o cumprimento das condições consignadas no protocolo relativamente à quantia de € 265.700 constituía, tão só, um adiantamento por conta do quinhão hereditário da herdeira B…, que não poderia pôr em causa a meação da progenitora nem a legítima desta e dos restantes herdeiros na partilha dos bens da herança aberta por óbito de Z…. Entendimento contrário não poderia ser acolhido, sob pena de violação das normas imperativas contidas nos artigos 2.156º a 2.160º e 2.162ºdo Código Civil.
A necessidade de relacionar no processo de inventário os valores correspondentes ao produto da venda do prédio misto sito em … e da AB…, negócios realizados em momento posterior ao falecimento do autor da herança, decorre da aplicação do artigo 2.069º do Código Civil que prevê que o preço dos bens da herança alienados faz parte desta.
Acresce que, realizadas as operações de partilha, concluiu-se que o valor do património que integrava a herança ascendia a € 1.290.757,93, que a meação de D. D… correspondia a € 645.378,96, a sua legítima a € 161.344,74, sendo a legítima de cada filho de € 53.781,58.
Não havia, assim, fundamento para que a Autora fizesse seu o montante de € 265.700 que superava, em muito, o seu quinhão hereditário de € 53.781,58.
Nessa medida e apurado, também, por decisão transitada em julgado proferida no incidente de liquidação suscitado no processo nº 1684/04.6TVPRT-A, que o valor a restituir aos restantes herdeiros por via do negócio do prédio misto de AC… ascendia a € 26.589,67 acrescido de juros às sucessivas taxas legais, desde 12 de Julho de 1991 (data da celebração da escritura) e sobre € 33.266,07 até 6 de Agosto de 2002, que perfazia o montante global de € 128.008,53 em 17 de Outubro de 2013, não é de estranhar que a Autora ficasse devedora de tornas no montante de € 329.520,33 à sua progenitora, € 5.755,36 a cada um dos sete irmãos e € 1.151,11 a cada uma das cinco sobrinhas, filhas da sua irmã Q…, tanto mais que lhe foram adjudicadas as verbas nºs 1, 220 (créditos da herança), 46, 77, 110, 120, 121, 123, 134, 136, 138, 140, 142, 143, 149, 151, 153, 175, 199 (móveis licitados), 39 (móvel não licitado), 3/72 das verbas 218 e 219 (imóveis), que somaram € 429.372,94.
Neste contexto, dúvida alguma poderão ter os Autores que os montantes pagos no âmbito do processo de execução nº 942/13.0YIPRT não tornam os Réus credores apenas do montante de € € 92.704,87. […]
A questão foi repetidamente suscitada no processo de inventário e a pretensão reiteradamente rejeitada nos despachos proferidos em 14 de Março e 8 de Maio de 2014 e em 14 de Janeiro de 2015, tendo o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25 de Janeiro de 2016, proferido no recurso interposto da sentença homologatória da partilha, deixado claro que não havia contradição por conterem decisões distintas, decisões essas, interlocutórias e transitadas em julgado por não terem sido devidamente impugnadas.
De resto, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Maio de 2017, transitando em julgado a 26 de Junho de 2017, rejeitou a tese da ofensa do caso julgado, designadamente por estar em causa a partilha de todos os bens que constituíam o acervo hereditário, que incluíam o produto da venda dos prédios que haviam sido objeto dos negócios simulados em função das decisões proferidas no processo nº 1684/04.6TVPRT, com destaque para a sentença da primeira instância e a para o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Abril de 2009.
Temos, assim, que as várias decisões tiveram em consideração distintos aspetos do enquadramento jurídico do montante de € 265.700 e do mobiliário conhecido como “quarto AQ…” dando aos litígios soluções perfeitamente compatíveis. Não existe, assim, qualquer situação objetiva de incerteza que justifique a propositura da presente ação”.
A sentença homologatória de partilha foi objeto de recurso, no qual se suscitou mais uma vez a questão de saber se tal valor devia ser considerado na partilha, sendo certo que apreciada a questão, manteve-se a sentença que homologou a partilha (cfr. pontos XXXV a XL dos factos provados).
Os fundamentos do douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça em 21 de abril de 2009, no Proc. 1684/04.6TVPRT, revista 653/09, a que se alude no ponto 19 das conclusões de recurso, em nada contrariam os fundamentos da decisão sob recurso, na medida em que tais fundamentos se esgotam na própria decisão e a questão que se coloca envolve um conjunto de outras decisões sucessivas, proferidas em diferentes processos como resulta dos factos apurados.
Apenas a análise conjunta de tais decisões permite aferir da utilidade do presente processo, como condição ou necessidade para a tutela do direito dos autores-apelantes.
As decisões transitadas em julgado (acórdão do Supremo tribunal de Justiça em 21 de abril de 2009, no Proc. 1684/04.6TVPRT, revista 653/09 e a sentença homologatória de partilha de 18 de setembro de 2015 no Proc. 152/04.0TVPRT) resolvem definitivamente as questões colocadas: uma quanto à validade de um protocolo, e outra, quanto à homologação de uma partilha por óbito, sendo certo que no âmbito deste último processo, os apelantes não reagiram contra as decisões proferidas que ponderaram a aplicação do decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça em 21 de abril de 2009, no Proc. 1684/04.6TVPRT, revista 653/09.
Este aliás foi já o sentido decisório do Ac. Rel. Porto de 25 de janeiro de 2016, a que se reportam os pontos XXXVI e XXXVII dos factos provados.
Os autores-apelantes não alegaram novos factos que justifiquem a sua pretensão, a qual já mereceu a devida tutela por parte dos tribunais e por isso, a presente ação não se revela necessária como forma de repor a tutela do direito.
Resta referir que os fundamentos jurídicos apresentados, por referência ao art. 625º/1 CPC, não sustentam a pretensão dos autores-apelantes.
O art. 625º CPC sob a epígrafe “Casos Julgados Contraditórios” prevê:
“1. Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.2. É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual”.
A razão de ser do preceito decorre da “imperatividade ou força obrigatória do caso julgado. Formado o caso julgado, a situação jurídica que ele declarou e definiu torna-se imutável; portanto não pode tal situação ser alterada por caso julgado posterior. O novo caso julgado, destruindo o benefício que o caso julgado anterior assegurara à parte vencedora, é contrário à ordem jurídica, é, por assim dizer, um facto processual ilícito, e não deve, por isso, subsistir” [ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, (Reimpressão), Coimbra Editora, Lim, Coimbra, 1984, pag. 193].
A exceção do caso julgado obsta à repetição da causa ( art. 581º CPC).
Contudo, não sendo invocada pela parte, nem oficiosamente conhecida pode ter lugar a decisão de mérito. Porém, apenas se pode cumprir a sentença que passou em julgado em primeiro lugar.
A outra sentença é uma sentença ineficaz, por circunstâncias extrínsecas ao ato [Cfr. JOSÉ LEBRE de FREITAS Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3ª edição, Almedina, julho 2017, pag. 730-731]. Formalmente reveste as caraterísticas de uma sentença, mas não produz efeitos.
Referia o Professor ALBERTO DOS REIS:”[…] a sua eficácia jurídica está prejudicada, ou melhor, paralisada, pela força e autoridade do julgado anterior” [ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, ob. cit., pag. 196-197].
O reconhecimento da situação ou a declaração de ineficácia, pode constituir fundamento de embargos à execução (art. 729º/f) CPC), ou, como refere o Professor LEBRE DE FREITAS, ser declarada no próprio processo em que a sentença foi proferida [Cfr. JOSÉ LEBRE de FREITAS Código de Processo Civil Anotado, vol. II, ob. cit., pag. 766].
Daqui decorre que o regime do art. 625º/1 CPC não permite estabelecer, nem reconhecer qualquer ordem de preferência entre as decisões, porque sem que seja declarada a ineficácia de uma das decisões, persistem as duas na ordem jurídica.
Apenas o reconhecimento da ineficácia da decisão impede que a mesma possa produzir os seus efeitos. A lei não estabelece qualquer ordem de prevalência, pois apenas uma sentença é eficaz, a outra, não produz efeitos, por contrariar o caso julgado anterior e por isso, como determina o art. 625º/1 CPC cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.
Contudo, os autores-apelantes não pretendem obter com o presente processo essa declaração de ineficácia, mas apenas uma ordem de prevalência entre as duas decisões, o que não tem tutela legal no art. 625º/1 CPC e impede que o presente processo constitua o meio próprio e adequado de obter tal finalidade. Essa pretensão tem de ser dirigida ao processo onde foi proferida a sentença que violou o caso julgado anterior, no sentido de não ser reconhecida eficácia à decisão e só dessa forma subsiste apenas uma decisão, porque à outra não se reconhece efeito. Mas até assim ser declarado ou decidido, ambas subsistem na ordem jurídica. Tal como o caso julgado deve ser suscitado na ação, também o reconhecimento da ineficácia da decisão deve ser suscitado na ação onde foi proferida a decisão que violou o caso julgado anterior.
Os apelantes não alegaram que a sentença que homologou a partilha foi declarada ineficaz, quanto à concreta questão suscitada a respeito da quantia de € 265.700,00 e desta forma, não há como alterar o ali decidido quanto ao montante das tornas devidas pelos apelantes aos demais interessados. Também por este motivo a presente ação não tem qualquer utilidade, por já estar determinado o montante devido a título de tornas.
Conclui-se que a decisão recorrida não merece censura, improcedendo as conclusões de recurso sob os pontos 4 a 35."
*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, discorda-se da solução adoptada no acórdão.
A ineficácia da decisão que é proferida em segundo lugar não tem de ser declarada no processo em que foi proferida. Para que tal fosse possível, teria de ser admissível um recurso de revisão da segunda sentença ou algo de semelhante. Como é patente, essa possibilidade não existe na ordem processual civil portuguesa.
A única coisa que se exige é que a ineficácia da segunda sentença seja reconhecida no processo em que a mesma seja invocada. É neste processo que o tribunal tem de reconhecer que a decisão que é invocada perante ele não produz nenhuns efeitos. É, aliás, isso que é lógico: uma das partes invoca uma decisão que lhe é favorável; a única coisa que faz sentido é possibilitar que a outra parte alegue, no próprio processo, que a decisão invocada é ineficaz (e não obrigar a parte a obter no processo de origem da decisão a declaração da sua ineficácia).
MTS