"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/06/2022

Jurisprudência 2021 (227)


Habilitação-incidente;
herança; repúdio

1. O sumário de RL 2/12/2021 (1872/18.8T8LRS-B.L1-2é o seguinte:

A habilitação incidental, sem oposição pelos habilitados, apenas terá relevância demonstrativa de aceitação da herança se for acompanhada de outras atuações que revelem, com toda a probabilidade, a aceitação da herança.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nos termos do art.º 2024.º do Código Civil, diz-se sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam.

O fenómeno jurídico da sucessão inicia-se com o falecimento do autor da sucessão (art.º 2031.º). Nesse momento “abre-se a sucessão”, sendo “chamados” à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis, desde que tenham a necessária capacidade (art.º 2032.º n.º 1 do CC).

Por força do princípio da liberdade individual, a aquisição da titularidade das relações jurídicas deixadas vagas pelo de cujus depende de um ato voluntário de aceitação, não operando por força da lei. Se os primeiros sucessíveis não quiserem ou não puderem aceitar, serão chamados os subsequentes, e assim sucessivamente; a devolução a favor dos últimos retrotrai-se ao momento da abertura da sucessão (n.º 2 do art.º 2032.º do CC).

A voluntariedade da efetivação da sucessão expressa-se no art.º 2050.º n.º 1 do CC: “O domínio e posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação, independentemente da sua apreensão material”. Acrescentando-se, no n.º 2, que os efeitos da aceitação “retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão”.

A aceitação da herança é irrevogável (art.º 2061.º).

O legislador rodeia-se de cuidados quanto à forma da aceitação.

Sob a epígrafe “Formas de aceitação” o art.º 2056.º do CC dispõe o seguinte:

1. A aceitação pode ser expressa ou tácita.

2. A aceitação é havida como expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir.

3. Os actos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação tácita da herança”.

A aceitação expressa é, pois, um negócio formal, um ato jurídico unilateral que deve assumir a forma escrita.

Quanto à aceitação tácita, é aplicável, à partida, a regra geral prevista no art.º 217.º do CC:

1. A declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação da vontade, e tácitaquando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.

2. O carácter formal da declaração não impede que ela seja emitida tacitamente, desde que a forma tenha sido observada quanto aos factos de que a declaração se deduz”.

Sendo certo que o silêncio só vale como declaração negocial “quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção”.

O n.º 3 do art.º 2056.º arreda que seja considerado ato tácito de aceitação da herança a simples prática de atos de administração da herança pelo sucessível. Esta explicitação harmoniza-se com o disposto no art.º 2047.º do CC, em cujo n.º 1 se estabelece que o sucessível chamado à herança, se ainda não tiver aceitado nem repudiado, não está inibido de providenciar acerca da administração dos bens, se do retardamento das providências puderem resultar prejuízos. A legitimação de tal atuação poderá acarretar a invocação do título de herdeiro (até no confronto com outros herdeiros - n.º 2 do art.º 2047.º) sem que ela seja acompanhada da intenção de aquisição da herança.

A lei prevê no art.º 2049.º n.º 2 do CC um mecanismo de formalização de aceitação tácita da herança:

Notificação dos herdeiros

1. Se o sucessível chamado à herança, sendo conhecido, a não aceitar nem a repudiar dentro dos quinze dias seguintes, pode o tribunal, a requerimento do Ministério Público ou de qualquer interessado, mandá-lo notificar para, no prazo que lhe for fixado, declarar se a aceita ou repudia.

2. Na falta de declaração de aceitação, ou não sendo apresentado documento legal de repúdio dentro do prazo fixado, a herança tem-se por aceite. (…)”.

A lei estabelece a presunção inilidível de que o silêncio do sucessível face à solene interpelação do tribunal para declarar se aceita ou não a herança constitui manifestação de aceitação da herança.

Note-se que tal presunção só poderá verdadeiramente assentar num manifesto sentido normal da atitude do interpelado se ele tiver sido notificado com a indicação da cominação legal do seu silêncio.

Que assim é indicia-o a solução contrária (à solução prevista no n.º 2 do art.º 2049.º do Código Civil português) prevista no Codice Civile italiano: Segundo o respetivo art.º 481.º, quem nisso tiver interesse pode fazer notificar judicialmente o chamado para este declarar, num determinado prazo, se aceita ou renuncia à herança. Se, decorrido o prazo, nada disser, “il chiamato perde il diritto di accettare”.

Exposto este quadro, haverá que verificar se o apelante adotou algum comportamento do qual se deva deduzir a aceitação da herança.

Tendo o executado Augusto (…) falecido na pendência da execução, a execução foi suspensa. A fim de que esta pudesse prosseguir, o exequente deduziu incidente de habilitação, identificando os herdeiros da parte falecida. Nestes termos os requeridos foram citados “para contestarem a habilitação” (n.º 1 do art.º 352.º do CPC). A falta de contestação não tem efeito cominatório: a lei estipula que se a habilitação tiver por base certidão de sentença ou escritura de habilitação, “verifica-se se o documento prova a qualidade de que depende a habilitação, decidindo-se em conformidade” (n.º 3 do art.º 353.º do CPC); se a habilitação não assentar em nenhum dos ditos documentos, o juiz decidirá o incidente após se produzir a “prova que no caso couber” (n.º 1 do art.º 354.º do CPC).

In casu, o ora apelante nada disse no âmbito do incidente de habilitação. E, tendo sido proferida sentença de habilitação, na qual foi julgado habilitado a prosseguir os termos da execução, juntamente com outros, no lugar do executado falecido, o ora apelante não interpôs recurso da decisão.

Significará isto que o habilitado aceitou a herança?

Afigura-se-nos que não.

Em parte alguma do processo o ora apelante foi interpelado para tomar posição acerca da aceitação da herança. Mais, não se vislumbra que o apelante tenha praticado qualquer ato no âmbito da execução, ou fora dela, do qual se possa inferir essa aceitação. O apelante não interveio na escritura de habilitação referida no n.º 6 da matéria de facto supra. O apelante não interveio na execução. A única atuação processual do apelante, após a decretação da sua habilitação, consistiu na junção aos autos, volvidos alguns meses, da escritura de repúdio da herança, acompanhada do pedido da sua absolvição da instância, por falta de legitimidade.

Conforme o STJ ajuizou no acórdão de 08.7.1975, processo 065465 (consultável, tal como os adiante citados, em www.dgsi.pt), “[a] habilitação, tomada isoladamente, não é índice, só por si, seguro da aceitação tácita da herança, isto porque, tendo a aceitação tácita de traduzir-se por actos inequívocos, a habilitação significa apenas que o indivíduo é investido na qualidade de herdeiro, não definindo a sua posição relativamente à herança”. Tal entendimento foi reiterado pelo STJ no acórdão de 19.3.2019, processo 384/17.1T8GMR-A.G1.S1, no qual se ponderou que “… a não oposição por parte das Recorrentes com a consequente procedência da habilitação judicial apensa à acção (…) não assume, por si só, relevância para inferir uma aceitação da herança por parte das mesmas (uma vez que o incidente visa tão só assegurar a legitimidade processual das partes)”.

A habilitação incidental, sem oposição pelos habilitados, apenas terá relevância demonstrativa de aceitação da herança se for acompanhada de outras atuações que revelem, com toda a probabilidade, a aceitação da herança. Foi o que ocorreu em alguns dos acórdãos citados na decisão recorrida e pela apelada: cfr. acórdão da Relação de Lisboa, de 13.3.2007, processo 993/2007-1 e acórdão da Relação do Porto, de 26.5.2009, processo 4593/03.2TBSTS-C.P1. - no primeiro caso o herdeiro habilitado interveio nessa qualidade na audiência de discussão e julgamento; no segundo caso o herdeiro habilitado interveio na execução como herdeiro e executado durante mais de três anos, até repudiar a herança.

No sentido do ora aqui propugnado cfr. também o acórdão da Relação de Coimbra, de 24.02.2015, processo 176/07.6TBVLF.C1; acórdão da Relação do Porto, de 05.7.2006, processo 0633036; acórdão da Relação de Guimarães, de 01.3.2018, processo 384/17.1T8GMR-A.G1; acórdão da Relação de Coimbra, de 11.5.2010, processo 2431/07.6TBVLS-B.C1; acórdão da Relação do Porto, de 19.12.2012, processo 9386/07.5TBMAI-C.P1; acórdão da Relação do Porto, de 15.12.2020, processo 3286/17.8T8MTS.P1.

Na doutrina, o Professor Castro Mendes entende que o sucessor habilitado em incidente de habilitação pode, posteriormente, repudiar a herança (cfr. Direito Processual Civil, II volume, Edição da Associação Académica da FDUL, 1978/79, pp. 252-253).

Esta posição é maioritária, mas não unânime.

Na doutrina, o Conselheiro Salvador da Costa considera que a sentença proferida no incidente de habilitação, declarativa de que certas pessoas são herdeiras da parte falecida, pressupõe que aceitaram a herança, apesar de não terem sido citadas com a cominação prevista nos artigos 2049.º n.º 1 do CC e 1039.º, n.º 1 (Os Incidentes da Instância, 2017, 9.ª edição, 2017, Almedina, p. 212).

Na mesma senda se seguiu no acórdão da Relação de Guimarães, de 04.10.2017, processo 1336/15.1T8VRL.G1 e no acórdão da Relação de Lisboa de 06.12.2005, processo 9068/2005, assim como na sentença recorrida.

Quanto a nós, adotamos a posição que se afigura ser maioritária.

Conforme fazem notar Antunes Varela e Pires de Lima (Código Civil Anotado, volume VI, 1998, Coimbra Editora, pp. 78 e 79) a regra da voluntariedade da sucessão traduz a máxima romana de que a aquisição do domínio sobre os bens da herança dá-se ex voluntate accipientis et non ex vi legis (ou ipso iure) aut ope iudicis.

Ao dar o apelante como habilitado nestes autos o juiz não se lhe substituiu na aceitação da herança – não tinha poderes para tal.

O apelante não manifestou, no processo ou fora dele, a intenção de aceitar a herança do primitivo executado Augusto (…). Pelo contrário, outorgou escritura de repúdio da herança, nos termos previstos no art.º 2063.º do CC e com os efeitos previstos no art.º 2062.º do CC.

Conforme afirma o Professor Castro Mendes (ob. e local citados) “[o] repúdio da herança representa o desaparecimento – embora não físico, mas jurídico – dos sucessores habilitados”.

O apelante foi declarado processualmente legitimado para prosseguir na execução (ao lado de outros) no lugar do executado falecido. Porém, ocorreu ato superveniente, extintivo, com efeitos retroativos, da qualidade do apelante enquanto sucessível da parte falecida. Conforme se realçou no acórdão da Relação do Porto, de 19.12.2012, acima citado, “…tendo sido repudiado pelos oponentes o direito à herança, os bens que eventualmente pudessem constituir o seu acervo jamais serão transmitidos àqueles, frustrando-se desse modo, em relação aos bens que viessem a receber do autor da herança, o cumprimento dos encargos com a obrigação exequenda – artigos 2071º do CC e 827º, n.º 1, do CPC [art.º 744.º n.º 1 do CPC de 2013].”

Tal implica a extinção da instância quanto ao repudiante, por impossibilidade superveniente da lide (art.º 277.º / e) do CPC – cfr. acórdão da Relação do Porto, de 23.3.2020, processo 4307/16.7T8LOU-B.P1)."

[MTS]