"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/06/2022

Jurisprudência 2021 (214)


Arrendamento;
venda executiva; caducidade*


1. O sumário de STJ 3/11/2021 (1069/15.9T8AMT-P.P1.S1) é o seguinte

I - A venda, em processo executivo, de imóvel arrendado para fim não habitacional (em concreto, indústria de confeção de vestuário), quando o contrato de arrendamento tenha sido celebrado depois da constituição de hipoteca sobre esse imóvel, não faz caducar o arrendamento, como decorre do art. 1057.º do CC, não sendo aplicável o art. 824.º, n.º 2, do CC.

II - O facto de a venda executiva (do imóvel arrendado) ser sido, posteriormente, dada sem efeito não afeta a subsistência do contrato de arrendamento, o qual se mantém como se a modificação subjetiva temporária (do locador) não tivesse ocorrido.


2. O acórdão tem a seguinte declaração de voto:

"Entendo que a venda judicial de imóvel hipotecado faz caducar o arrendamento celebrado após o registo da hipoteca, solução esta que, a meu ver, está de acordo com a teleologia do art. 824.º/2 do C. Civil, cuja ratio é os bens vendidos judicialmente serem transmitidos livres de quaisquer ónus.

Trata-se de questão que há muito divide a nossa doutrina e jurisprudência (tendo dado azo, bem recentemente, ao referido AUJ nº 2/2021), o que só por si significa que há bons e ponderosos argumentos quer a favor da tese da caducidade do contrato de arrendamento quer a favor da tese (contrária) da transmissão (não caducidade) da posição do locador.

Tendo isto presente, “alinho” na posição que defende – em hipóteses como a dos autos, do arrendamento ser posterior ao registo da hipoteca – a caducidade do contrato de arrendamento pelo seguinte:

Não considero, como é evidente, o arrendamento um direito real (não cabendo assim a tese da caducidade numa interpretação literal do art. 824.º/2 do C. Civil) e não ignoro o disposto no art. 1057.º do C. Civil (segundo o qual “o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo”), porém, também não posso ignorar que o 824.º/2 do C. Civil estabelece e dele irradia o “princípio” dos bens vendidos judicialmente serem transmitidos livres dos encargos que não tenham registo ou constituição temporalmente anterior à garantia executada.

Ademais, para o fim da hipoteca – garantia de um crédito – o valor do imóvel dado em hipoteca é fundamental (na atribuição do empréstimo/crédito e na determinação do respetivo quantitativo) e, depois, na sua venda em execução, o respetivo valor/avaliação será menor se o imóvel tiver (e se mantiver) arrendado, importando assim ponderar que, caso no momento da constituição da hipoteca o prédio já estiver arrendado, o credor hipotecário não pode desconhecer esse facto, ou seja, não pode desconhecer que sobre a garantia incidia um tal “ónus”, porém, caso no momento da hipoteca o prédio estiver livre, o arrendamento posterior confronta o credor com um “facto novo”, causador da desvalorização do imóvel.

E embora a hipoteca não impeça o poder de disposição dos bens, mediante alienação ou oneração (faculdades que decorrem da respetiva inoponibilidade ao credor hipotecário, na medida em que este goza da preferência que lhe é concedida pela prioridade do registo), não deixa de produzir limitações de vária ordem ao direito de propriedade do hipotecador, a quem fica vedado praticar livremente atos que ponham em causa o valor da coisa hipotecada, estando limitado aos atos que caibam nos poderes de administração ordinária (arts. 695º, 700º e 701º C. Civil), pelo que, manter oponível ao adquirente (em venda judicial em que se executa a garantia anterior) o contrato de arrendamento, é consentir (ao arrepio de tais poderes) que possam ser praticados atos que coloquem em causa o valor da coisa hipotecada.

Sendo justamente aqui, neste ponto do raciocínio, que o apelo à “ratio” que emana do art. 824.º/2 do C. Civil – serem os bens vendidos judicialmente transmitidos livres dos encargos que não tenham registo ou constituição temporalmente anterior à garantia executada – faz sentido: ou por interpretação teleológica ou porventura até por analogia – face à “semelhança” entre o arrendamento e os direitos reais menores de gozo – entendo que o art. 824º/2 do C. Civil se aplica a todos os direitos de gozo, quer de natureza real quer pessoal, de que a coisa vendida seja objeto e que produzam efeitos em relação a terceiros.

Sairá, assim, objetivamente penalizado o arrendatário, mas não pode esquecer-se que, no jogo de interesses em confronto, fará menos sentido protegê-lo, em detrimento do credor hipotecário, tendo em consideração que o arrendatário não ignorava ou não devia ignorar que tomou de arrendamento um bem que já estava dado em garantia/hipoteca.

Em conclusão, a tese da caducidade é a que, a meu ver, dirime com mais justiça os interesses em confronto e a que melhor respeita a teleologia ínsita no art. 824.º/2 do C. Civil, inciso em cujo espírito está presente a ideia da alienação judicial ser livre de qualquer encargo, inciso cuja ratio, repete-se, é os bens vendidos judicialmente serem transmitidos livres dos encargos que não tenham registo ou constituição temporalmente anterior à garantia executada.

E, sendo este o meu entendimento – sendo o arrendamento posterior ao registo da hipoteca, consideraria que o arrendamento caducou, automaticamente, por aplicação do art. 824º/2 do C. Civil, com a venda executiva do imóvel – negaria a revista.

António Barateiro Martins"


*3. [Comentário] O acórdão segue a orientação do muito pouco conseguido Ac. STJ 2/2021, de 5/8.

A declaração de voto contém alguns dos argumentos que podem ser invocados contra a tese que fez vencimento naquele acórdão de uniformização. Alguns outros podem ser encontrados nas várias declarações de voto que foram emitidas no próprio acórdão uniformizador.

MTS