"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/06/2022

Jurisprudência 2021 (211)


Arrolamento:
acção principal; inventário


I. O sumário de RL 26/10/2021 (632/21.3T8FNC-B.L1-7) é o seguinte:

1– O arrolamento visa especificamente assegurar a permanência de bens que devem ser objecto de especificação no processo principal, não sendo a providência adequada quando os bens estiverem identificados e apenas se discuta a titularidade do direito.

2– Entre a providência cautelar e a acção principal deve existir uma relação que permita afirmar que o direito acautelado será provavelmente reconhecido na acção definitiva, ou seja, entre as duas acções deve existir uma relação de dependência de tal modo que na acção principal se venha a tutelar o mesmo direito, a específica pretensão, que se quis salvaguardar por via cautelar.

3– A relação de instrumentalidade ou de dependência deve ser aferida em função do que consta efectivamente de ambos os processos e não em função do que eventualmente deles poderia ou poderá vir a constar.

4– Deferida a providência de arrolamento relativamente a um prédio urbano alegadamente integrante da herança indivisa dos inventariados, mas cujo direito de propriedade se mostra inscrito a favor de um dos herdeiros, com base em escritura de justificação notarial, o eventual direito dos demais herdeiros sobre tal prédio não poderá ser feito valer no processo de inventário enquanto não for impugnada aquela escritura, beneficiando o titular inscrito da presunção de titularidade do direito de propriedade.

5– Nesta configuração, o processo de inventário não equivale à acção principal onde se produzirá uma decisão autónoma e independente, em que a pretensão visada pela requerente possa ser realizada, daí que o procedimento cautelar não esteja na dependência desse processo, não estando reunidos os pressupostos para a sua apensação, nos termos do artigo 364º, n.º 2 do código de Processo Civil.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A recorrente insurge-se contra a decisão que determinou a desapensação dos autos de procedimento cautelar de arrolamento com a seguinte ordem de argumentos:

– A providência de arrolamento é dependência da acção relativa à titularidade do direito da coisa arrolada, como é o caso do inventário relativamente a coisa de direito não duvidoso;
– A prova do direito de propriedade sobre o imóvel em discussão pode ser feita no inventário, ao contrário do entendido na decisão recorrida, sendo que já resultam fortemente indiciadas as falsas declarações do requerido;
– É ao B, enquanto cabeça-de-casal, que cabe relacionar os bens da herança e apenas perante a sua atitude se avaliará da necessidade de impugnar a escritura: se ele o relacionar estará a reconhecer o direito de propriedade da herança e se o não fizer, ficará sujeito à impugnação dos demais herdeiros e, então, à impugnação do direito de propriedade por ele alegado na escritura de justificação notarial;
– O procedimento cautelar de arrolamento visou salvaguardar um bem da herança para efeitos da sua partilha no inventário.

Sustenta a apelante que ao deduzir o procedimento cautelar de arrolamento pretendeu acautelar o bem imóvel que integra, segundo a sua versão as heranças abertas por óbito dos inventariados C, D e E , e evitar que o ali requerido, através dos actos já praticados e a praticar, possa vender o bem e dissipar o respectivo produto da venda, o que, segundo alega, visará assegurar a permanência do bem ao momento da partilha a ter lugar nestes autos, daí que tal procedimento deva ser apensado ao inventário, nos termos do art.º 364º, n.º 2 do CPC.

Assim não o entendeu a decisão recorrida ao considerar que o direito de propriedade sobre o imóvel está, actualmente, inscrito a favor do requerido, que assim beneficia da presunção de titularidade do direito, argumentando que tal inscrição apenas poderá ser colocada em crise mediante acção de impugnação de escritura de justificação notarial, o que não pode ter lugar no âmbito do processo de inventário.

É sabido que entre a providência cautelar e a acção principal deve existir uma relação que permita afirmar que o direito acautelado será provavelmente reconhecido na acção definitiva. Logo, esta acção principal deve visar a tutela do mesmo direito que se pretendeu preservar por via cautelar.

Assim, a dependência que tem de existir entre o procedimento cautelar e a acção principal implica, necessariamente, que apenas possam ser protegidos, por via cautelar, aqueles direitos susceptíveis de serem tutelados através da acção principal.

O receio de extravio ou dissipação dos bens deixados pelo de cujus pode ser afastado com a providência específica do arrolamento prevista nos art.ºs 403º e seguintes do CPC.

Arrolar significa “inscrever em rol”, daí que subjacente ao conceito de arrolamento está a existência de uma pluralidade de bens que se pretenda acautelar, para o que terão de ser descritos, avaliados e depositados, ficando sujeitos a regime semelhante ao dos bens penhorados – cf. art.ºs 406º, n.º s 1 e 6 do CPC; cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª Edição, pág. 183.

O arrolamento é uma medida de carácter conservatório que pode surgir como medida destinada a assegurar a manutenção de certos bens litigiosos, enquanto a titularidade do direito sobre eles estiver em discussão na acção principal; ou como medida que visa garantir a persistência de documentos necessários para provar a titularidade do direito sobre as coisas arroladas.

A situação vertida nos autos do procedimento cautelar cuja apensação a recorrente pretende que tenha lugar por referência ao presente processo de inventário encontra-se claramente abrangida pela primeira dessas situações e configura uma situação similar à do arresto divergindo apenas quanto ao risco que se pretende prevenir, ou seja, com o arrolamento pretende-se eliminar o risco de extravio, de ocultação ou de dissipação de bens litigiosos enquanto no arresto é a perda da garantia patrimonial que está em causa; assim, o primeiro, em regra, tem por objecto bens que pertencem (em comum com outrem ou não) ao próprio requerente ou sobre os quais o requerente se arroga um qualquer direito – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-04-2010, relator Jorge Leal, processo n.º 5258/08.4TBALM-D.L1-2 [...].

Apesar de no procedimento cautelar comum serem admissíveis providências gerais de apreensão de bens ou de entrega a um fiel depositário, o arrolamento visa especificamente assegurar a permanência de bens que devem ser objecto de especificação no processo principal, não sendo, pelo contrário, a providência adequada quando os bens estiverem identificados e apenas se discuta a titularidade do direito - cf. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV volume – Procedimentos Cautelares Especificados, 2001, pág. 251.

No mesmo sentido se pronunciam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 184:

“Mas nem sempre o arrolamento é a providência cautelar adequada à finalidade de conservação dos bens que estão em causa na acção. Se estes estiverem identificados e apenas se discutir a titularidade do direito (real ou de propriedade intelectual) sobre eles, ou se são ou não devidos (como objecto de obrigação de dareou de facere), a providência adequada é inominada, cabendo ao caso o procedimento cautelar comum. Não importa já descrever ou especificar os bens, mas apenas apreendê-los e depositá-los ou entregá-los, a título provisório, ao autor.”

O art. 404º, n.º 1 do CPC estatui que o arrolamento pode ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens ou dos documentos, pelo que dessa norma decorre um critério geral determinativo da legitimidade processual: esta competirá a quem se afirme titular de um interesse na conservação dos bens. [...] [...]

Na situação sub judice, há que ter presente, por um lado, que a questão que se discute contende apenas com um único bem imóvel, o que, por si só, não carece propriamente de especificação/descrição no âmbito do processo de inventário [...].

Por outro lado, no requerimento inicial do procedimento cautelar a requerente, para justificar o seu interesse na conservação do bem, invocou a sua qualidade de herdeira de D (razão porque se tornou necessária toda a enunciação dos óbitos verificados e relações familiares descritas), mas, em rigor, o justo receio invocado consistiu não tanto na necessidade de conservação do bem com vista ao seu relacionamento nos autos de inventário (o risco de dissipação de bem da herança apenas foi mencionado no artigo 38º do requerimento inicial), mas numa invocada perda da sua própria posse sobre tal bem (cf. artigos 10º, 13º, 14º, 17º, 23º a 26º do requerimento inicial) [...] [...] e na falsidade das declarações prestadas pelo requerido no contexto da escritura de justificação notarial, o que lhe permitiu inscrever no registo o direito de propriedade a seu favor (cf. artigos 27º, 28º, 31º, 34º, 35º e 36º do requerimento inicial) [...]

Assim, ainda que esteja em causa um bem que, à data do óbito de D integraria, segundo a versão da requerente, a herança desta e sendo evidente o litígio entre os dois herdeiros [...], não se trata, porém e em rigor, de conservar o bem com vista à sua relacionação a ter lugar na acção principal, pois que, mais do que isso, a requerente no procedimento cautelar invocou a perda da sua posse por um acto de violência do requerido e, face aos factos por ela alegados, surge afastada, por ora, a integração do bem na herança dos falecidos.

Na verdade, para além do litígio quanto ao direito de propriedade incidente sobre o prédio, seguro é que, como se assinalou na decisão recorrida, o requerido B goza da presunção da titularidade do direito decorrente do estatuído no art. 7º do Código do Registo Predial, presunção que apenas deixará de funcionar uma vez intentada acção de impugnação da escritura de justificação notarial – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-06-2017, relator Salazar Casanova, processo n.º 5043/16.0T8STB.S1 – “[…] o reconhecimento da justificação notarial determina, no caso da propriedade, inscrição em nome do justificante que, a partir daí, passa a beneficiar da presunção de propriedade (artigo 7.º do CRPredial)”.

Será apenas através da impugnação desse instrumento notarial em acção de simples apreciação negativa, que a requerente poderá ver destruído o facto gerador da aquisição contra o qual se insurge, caso logre alcançar a declaração da inexistência do direito afirmado na escritura. [...]

Daqui se retira que, enquanto não for impugnada a escritura, o requerido B continuará a beneficiar da presunção de titularidade do direito de propriedade incidente sobre tal prédio, para o que será irrelevante que venha ou não, enquanto cabeça-de-casal, a relacioná-lo, nos termos do art. 1102º, n.º 1, b) do CPC, sendo evidente que a junção das cadernetas prediais e certidões de registo predial respeitantes a bens imobiliários, enquanto elementos essenciais para a partilha que será efectuada, interferirão na aferição da situação jurídica dos bens imóveis – cf. art.ºs 1097º, n.º 3, c) e 1098º, n.º 4 do CPC -, revelando, no caso, a não integração do bem na herança.

Ora, não será pela circunstância de vir a ser relacionado o bem imóvel pelo cabeça-de-casal que se terá por resolvida a questão da titularidade do bem, porquanto subsistirá, mesmo nessa hipótese, a inscrição da aquisição por usucapião a favor de B, não podendo o silêncio dos demais interessados perante tal realidade ter a virtualidade de modificar a situação jurídica do prédio que os documentos juntos revelem. [...]

Em face disto, importa determinar se, tendo sido deferida a solicitada providência de arrolamento incidente sobre o prédio urbano acima identificado, os presentes autos se apresentam como a acção principal de que aquele procedimento cautelar é dependência e, por via disso, se deve ser retomada a apensação inicialmente ordenada. [...]

[...] tendo o arrolamento sido decretado em vista do risco de dissipação (venda) do bem imóvel relativamente ao qual o requerido se terá declarado falsamente proprietário por via de uma aquisição por usucapião, o diferimento da providência mostra-se justificado em função de uma eventual impugnação da escritura de justificação notarial que, a proceder, determinará então a restituição do bem à herança dos inventariados.

Ora, tomando como referência a afirmação de que “a acção principal é qualquer acção em que se realize a própria afectação do bem jurídico em termos subjectivos” e considerando que a providência visa assegurar o concreto direito cuja efectividade se pretende por via da acção principal, tendo presente os termos em que a decisão cautelar foi proferida e, mais do que isso, a causa de pedir invocada no requerimento inicial e atendida na decisão, não se pode deixar de reconhecer que o direito que a recorrente pretende fazer valer enquanto herdeira e interessada no presente inventário passa, é certo, pela impugnação das declarações, que apoda de falsas, prestadas pelo requerido na escritura de justificação, mas esse direito apenas poderá ser feito valer na competente acção de impugnação daquela escritura. A efectivação do seu direito no inventário não se basta com a relacionação do bem ou conservação dos bens existentes no espólio dos inventariados, já que o prédio urbano em concreto se tem de ter como integrante do património do requerido, enquanto não for afastada a presunção de titularidade do direito de propriedade de que este goza.

E se, como é evidente, é ainda esse direito o que a recorrente pretende fazer valer no processo de inventário e não obstante neste se possa também discutir a titularidade dos bens relacionados e a omissão de relacionação de outros que o devessem ter sido (cf. art.ºs 1104º, n.º 1, d) e 1105º do CPC), não se pode deixar de ter presente que, neste caso, o arrolamento, enquanto medida de carácter conservatório, foi determinado tendo em vista assegurar a permanência do bem enquanto a recorrente e o recorrido discutem o respectivo direito de propriedade, o que, face aos contornos da situação jurídica do prédio, não poderão fazer no âmbito do inventário. [...] [...]

Ora, em face do acima explanado, o objectivo prosseguido no arrolamento – assegurar a manutenção do bem na esfera do requerido enquanto não é resolvida a questão do direito de propriedade - não pode ser prosseguido no inventário, onde, sem que aquele direito seja judicialmente impugnado e afastado, nem haverá lugar ao relacionamento do bem."

[MTS]