"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/06/2022

Jurisprudência 2021 (225)


Execução;
juros compulsórios; liquidação*


I. O sumário de RL 23/11/2021 (808/09.1T2SNT-A.L1-7) é o seguinte:

1.– A sanção pecuniária compulsória legal prevista no nº 4 do art. 829-A do CC é automática e é devida desde o trânsito em julgado da sentença de condenação;

2.– Não necessita de qualquer determinação judicial de condenação para ser atendida, estando o respectivo montante fixado pelo legislador (5% ao ano sobre a obrigação pecuniária em dívida);

3.– Mesmo sem ser liquidada e requerida no requerimento executivo, esta sanção deve ser liquidada pelo agente de execução nos termos do art. 716º, nº3 do CPC.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O instituto da sanção pecuniária compulsória tem consagração legal no art. 829º-A do CC, preceito este que dispõe o seguinte:

1-Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.
2-A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar.
3-O montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em partes iguais, ao credor e ao Estado.
4-Quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver lugar”.

Como se pode ler no Ac. STJ de 12-09-2019, proc. 8052/11.1TBVNG-B.P1.S1, relator Tomé Gomes, disponível em www.dgsi.pt, “Deste quadro normativo resulta a configuração de duas espécies de sanção pecuniária compulsória: uma prevista no n.º 1 do artigo 829.º-A, de natureza subsidiária, destinada a compelir o devedor à execução específica da generalidade das obrigações de prestação de facto infungível; outra prevista no n.º 4 do mesmo artigo, tendente a incentivar e pressionar o devedor ao cumprimento célere de obrigações pecuniárias de quantia certa, decorrentes de fonte seja negocial seja extranegocial com determinação judicial, que tenham sido, em qualquer dos casos, objeto de sentença condenatória transitada em julgado.

A primeira espécie traduz-se na fixação judicial de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso ou por cada infração no cumprimento da generalidade das prestações de facto infungível, à luz de critérios de razoabilidade, e que tem vindo a ser, por isso, designada por sanção pecuniária compulsória judicial. A segunda consiste num adicional automático (ope legis) de juros à taxa de 5% ao ano, independentemente dos juros de mora ou de outra indemnização a que haja lugar, tomando a designação de sanção pecuniária compulsória legal ou de juros legais compulsórios.

Assim, enquanto que a sanção pecuniária compulsória prevista no n.º 1 do artigo 829.º-A tem de ser determinada e concretizada nos seus termos, de forma casuística e equitativa, mediante decisão judicial, já a sanção pecuniária compulsória prescrita no n.º 4 do mesmo artigo emerge da própria lei, de modo taxativo e automático, em virtude do trânsito em julgado de sentença que condene o devedor no cumprimento de obrigação pecuniária, sem necessidade de intermediação judicial”. Em igual sentido, na Doutrina, veja-se Pinto Monteiro, in Cláusula Penal e Indemnização, págs. 126 e ss. e Calvão da Silva, in Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1987, Coimbra, págs. 452 e ss..

Estas duas espécies têm campos de aplicação e funcionamento distintos, referindo-se o caso dos autos à sanção pecuniária compulsória legal prevista no nº 4 do art. 829-A do CC.

Esta sanção pecuniária compulsória legal é automática, não necessitando de qualquer determinação judicial de condenação para ser atendida. Mais, o respectivo montante está fixado pelo legislador (5% ao ano sobre a obrigação pecuniária em dívida) e é devida desde o trânsito em julgado da sentença de condenação.

Estatui o nº 3 do art. 716º do CPC que “Além do disposto no número anterior, o agente de execução liquida, ainda, mensalmente e no momento da cessação da aplicação da sanção pecuniária compulsória, as importâncias devidas em consequência da imposição de sanção pecuniária compulsória, notificando o executado da liquidação”.

Vem este preceito na decorrência do anterior art. 805º do CPC, que previa igual liquidação.

Com efeito, às acções executivas intentadas a partir de 31 de Março de 2009 é aplicável a redacção dos nºs 2 e 3 do art. 805º do CPC, introduzida pelo DL 226/2008, de 20 de Novembro, preceito este que determina a desnecessidade de pedido de liquidação de tal sanção no requerimento executivo.

Anteriormente a esta redacção do art. 805º, vigorava o CPC na versão dada pelo DL 38/2003, de 8 de Março, sendo que o nº 3 deste preceito referia que “A secretaria liquida ainda, a final, a sanção pecuniária compulsória que seja devida”.

É nesta diferença de redacção que a apelante se baseia para defender a necessidade de requerimento dos juros compulsórios, face à data de entrada da execução.

Parece-nos que sem razão.

Com efeito, há que recordar que a sanção pecuniária compulsória prevista no nº 4 do art. 829º-A do CC não necessita de qualquer determinação judicial em sede declarativa, pelo que “o adicional de juros de 5% devido a partir do trânsito em julgado da sentença que condene o devedor em prestação pecuniária, nos termos do n.º 4 do citado artigo 829.º-A, passa a estar necessariamente compreendido, como tal, no âmbito de exequibilidade do título executivo em que essa sentença se traduz” (Ac. STJ de 12-09-2019 supra citado).

Quer isto dizer que, quando o credor apresenta à execução uma sentença condenatória, esta, enquanto título executivo, contém já o montante devido como sanção pecuniária compulsória.

No âmbito da versão originária do CPC resultante da revisão introduzida pelo DL 329-A/95, de 12 de Setembro, não existia qualquer norma geral sobre os trâmites do requerimento executivo relativamente à sanção pecuniária compulsória, prevendo-se, todavia, no art. 933º, nº 1 a necessidade de o exequente peticionar as quantias eventualmente em dívida a esse título no caso da prestação de facto infungível.

Era, pois, com base neste quadro legal que alguma jurisprudência entendia que a sanção pecuniária compulsória legal prevista no art. 829º-A, nº 4 do CC tinha de ser liquidada no requerimento executivo e aí peticionada. Nesse sentido, veja-se Ac. STJ de 23-01-2003, proc. 02B4173, relator Araújo Barros.

Ora, no momento em que a presente execução foi instaurada, vigorava já o art. 805º, nº 3 do CPC na versão dada pelo DL 38/2003, de 8 de Março e supra referida, bem como uma nova versão do art. 933º, nº 1. Isto é, o CPC passou a conter uma norma expressamente dedicada à liquidação da sanção pecuniária compulsória por parte da secretaria, o que levou a que passasse a ser defendido na doutrina e por alguma jurisprudência que, na execução para pagamento de quantia certa a sanção pecuniária compulsória não necessita de ser pedida nem de ser fixada pelo juiz, devendo ser liquidada oficiosamente pela secretaria.

Parece-nos ser este o entendimento correcto, face ao carácter automático da sanção prevista no art. 829º-A, nº 4 do CC, que determina a desnecessidade de ser requerida, seja na acção principal em que se condena ao pagamento de certa quantia em dinheiro, seja no requerimento executivo relativo ao seu pagamento coercivo.

Não se desconhece jurisprudência em sentido diverso, nomeadamente o ac. TRL de 22-03-2018, proc. 10202/15.0T8LSB-B.L1-8, relator Carla Mendes, onde se refere que “na esteira do princípio do dispositivo e da estabilização da instância (arts. 3/1 e 268 CPC (LV), era necessário formular o pedido, sob pena de violação do princípio do contraditório, bem como o da igualdade das partes (arts. 3/3 e 3-A CPC (LV)”.

Ora, sendo de aplicação automática, não se verifica qualquer violação do princípio do contraditório, porquanto o devedor sabe, desde o momento da condenação na acção declarativa, que são também devidos juros compulsórios, cuja taxa é fixada na lei. Ou seja, o tribunal não tem qualquer intervenção nem na sua fixação, nem no momento a partir do qual é devida, razão pela qual não existe qualquer violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes.

Como se pode ler no Ac. TRG de 04-02-2021, proc. 3196/14.0T8VNF-B.G1, relator Eduardo Azevedo, “nos termos do artº 6º, nº 1 da Lei 41/2013, de 26.06, preambular do atual código, este aplica-se a todas as execuções pendentes à data da sua entrada em vigor, sendo certo que o que nos traz aqui a decidir não se inclui em qualquer das circunstâncias mencionada no respetivo nº 3.

O artº 716º, nº 3 do CPC é expresso ao determinar que “Além do disposto no número anterior, o agente de execução liquida, ainda, mensalmente e no momento da cessação da aplicação da sanção pecuniária compulsória, as importâncias devidas em consequência da imposição de sanção pecuniária compulsória, notificando o executado da liquidação.”.

Trata-se de uma liquidação que decorre num momento de tramitação processual em que inclusivamente já existe estabilidade de instância e o apuramento ou liquidação a cargo do agente de execução é um dever a ser cumprido ao longo do processo e no momento da cessação da aplicação da sanção, apurando-se ainda as responsabilidades dos executados, nomeadamente devido a custas e a outros encargos processuais, tendente, eventualmente, à sua extinção.

Acontece ainda que já no domínio do anterior código, atento ao disposto no seu artº 805º, nº 3, na redação conferida pelo DL 38/2003, de 08.03, que entrou em vigor, nos termos do seu artº 23º, em 15.09.2003, antes, portanto, da propositura desta ação, se regulava: “A secretaria liquida ainda, a final, a sanção pecuniária compulsória que seja devida.”.

Norma que já perfilhava solução de idêntica finalidade da que veio a ser consagrada na redação desse preceito através do DL 226/2008, de 20.11, aplicável segundo os seus artºs 22º e 23º aos processos iniciados após a sua entrada em vigor (31.03.2009), e que de forma mais concisa prevê, tal como a redação do artº 716º, nº 3 do atual código, a respetiva obrigação de liquidação”.

Tem, pois, de se concluir que a liquidação da sanção pecuniária compulsória prevista no nº 4 do art. 829º-A do CC deve ser oficiosamente liquidada, não sendo necessário que o exequente o requeira no requerimento executivo, resultando este regime do quadro legal actual e também do art. 805º, nº 3 do CPC vigor à data da propositura da presente execução.

Donde, não merece censura a decisão recorrida, uma vez que, mesmo sem ter sido requerida no requerimento executivo a sanção pecuniária compulsória prevista no art. 829º-A, nº 4 do CC deve ser liquidada pelo agente de execução nos termos do art. 716º, nº3 do CPC, como sucedeu no caso vertente."


*III. [Comentário] A RL decidiu bem.

Remete-se para o comentário publicado em Jurisprudência 2019 (172).

MTS