"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/06/2022

Jurisprudência 2021 (229)


Título executivo;
livrança; aval; embargos de executado


1. O sumário de RC 15/12/2021 (2550/20.3T8SRE-A.C1) é o seguinte:

I- A livrança que contenha os requisitos essenciais referidos nos artºs 75º e 76º da LULL, constitui título cambiário autónomo e abstracto, integrado no elenco dos títulos executivos por via do disposto no artº 703º, nº 1, c) do C.P.C., incorporando no título o direito nele representado, com plena autonomia da relação fundamental subjacente.

II- Prestado aval ao subscritor da livrança, a obrigação do avalista é uma obrigação de garantia do pagamento da obrigação cambiária avalizada, no seu vencimento, e não da obrigação relação subjacente (artº 32º da LULL), mantendo-se esta obrigação de garantia, mesmo no caso de a obrigação garantida ser nula por qualquer razão que não um vício de forma (artºs 75º e 76º da LULL).

III- Dado o carácter autónomo e abstracto do título de crédito e a função de garantia do aval, só podem os avalistas opor-se à execução desta obrigação, se estiverem nas relações imediatas com o portador da livrança (artº 17º da LULL e 731º do C.P.C.), cabendo-lhes, nesse caso, o ónus de alegar e provar os factos referentes ao preenchimento abusivo do pacto de preenchimento e os meios de defesa oponíveis à relação causal, porque constituindo exceções de direito material (artº 342º, nº 2 do C.C.).

IV- Não constando da petição de embargos os factos relativos ao pacto de preenchimento e à relação causal, nem que o avalista se encontre nas relações imediatas com o portador da livrança, não é esta omissão suprível, quer por via de contestação aos embargos, quer por despacho de aperfeiçoamento, impondo-se a rejeição liminar dos embargos, com fundamento na manifesta improcedência das exceções invocadas (artº 732º, nº 2, c) do C.P.C.).


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No que se reporta aos avalistas dispõe o artº 32º do LULL que estes são responsáveis da mesma forma que a pessoa por si avalizada e que a sua obrigação se mantém, mesmo no caso de a obrigação garantida ser nula por qualquer razão que não um vício de forma, ou seja, por vícios respeitantes ao próprio título de crédito, nomeadamente e, reportando-nos às livranças, pela ausência dos requisitos essenciais referidos nos artºs 75º e 76º da LULL.

A obrigação do avalista é, assim, de garantia do pagamento da obrigação cambiária avalizada no seu vencimento [[DELGADO, Abel, Lei Uniforme Sobre Cheques, Anotada], pág. 175] e não da obrigação causal. Como ensina o Prof. Paulo Melero Sendim, “À declaração cambiária do avalista não se põe a questão da sua causa; eventuais relações extracambiárias obrigacionais podem apenas relevar para o direito de reembolso do avalista no eventual regresso, por se ter gorado a garantia que deu.” É que o aval consiste tão só numa declaração pessoal de confiança dada ao portador da livrança de que o subscritor a pagará, sem que necessite de qualquer relação subjacente.

Ou seja, o aval garante o direito de crédito cambiário com o seu valor patrimonial, constituído por uma pessoal confiança do seu dador em que a letra será honrada no seu vencimento pela pessoa avalizada, na imediata medida e razão da obrigação deste, constituindo uma obrigação solidária da obrigação do avalizado, mas independente desta.

Só assim não sucederá, no âmbito das relações imediatas, quando entre o portador e os obrigados cambiários não se interpõe qualquer outro e, quando os sujeitos da relação cambiária são concomitantemente os sujeitos da relação causal. Neste caso, cfr. se refere no Ac. do STJ de 14/09/21[---], não existindo “interesses de terceiros de boa fé a defender, os princípios da literalidade, abstração e autonomia que caracterizam os títulos cambiários deixam de funcionar, podendo fundar-se a defesa nas excepções emergentes da relação causal.”

Daqui decorre que a livrança desde que contenha os requisitos essenciais previstos no artº 76º da LULL, vale como título executivo, sem que do título, ou do requerimento executivo, tenha de constar a obrigação subjacente, ou a menção a eventuais acordos celebrados relativamente ao seu preenchimento, ou qualquer facto relativo ao vencimento da obrigação causal. Não se trata de um título executivo complexo, (não se confundindo com o contrato de mútuo que eventualmente lhe subjaza), não necessitando de se fazer acompanhar de qualquer documento referente à obrigação causal.

O que significa que apresentado título de crédito para pagamento da obrigação cambiária dele constante, contra os subscritores e avalistas, pretendendo os avalistas opor ao portador os meios de defesa baseados na relação causal e em eventual violação de pacto de preenchimento, terão de alegar nos respectivos embargos que apresentem, que a livrança não entrou em circulação e, por essa via, os factos concretos referentes a eventual pacto de preenchimento da livrança, ou as excepções opostas à relação causal.

Não necessitando, conforme refere ABEL DELGADO [Ibidem pág. 73], o pacto de preenchimento de revestir forma escrita, podendo inclusive ser um acordo tácito, porque da sua violação, resultam efeitos extintivos ainda que parciais da obrigação exequenda, já que conforme defende PAULO SENDIM [Letra de Câmbio, vol. I, pág. 217], a obrigação peticionada ficará reduzida aos termos acordados no pacto, segundo o brocardo utile per inutile non vitiatur.

Nesta medida, pretendendo o embargante invocar meios de defesa com base nessa relação causal e nos acordos outorgados com vista ao preenchimento da livrança, deverá, sob pena de indeferimento liminar dos embargos, alegar os factos modificativos, impeditivos ou extintivos do direito que o exequente pretende exercer (artº 342º, nº 1 e 2 do C.C.)[---].

Este ónus de alegação dos factos essenciais e constitutivos dos fundamentos de embargos, não pode ser suprido nem por despacho de aperfeiçoamento, nem por eventual contestação que venha a ser oposta pelo exequente (à semelhança da possibilidade prevista para as petições iniciais, no artº 186º, nº 3 do C.P.C.), uma vez que a sua existência é condição prévia de admissão dos embargos.

Acresce que, prevendo a lei, em casos especiais, a inversão do ónus de prova, não prevê a inversão do ónus de alegação, de indicação concreta dos factos que integram as excepções de direito material, opostas à obrigação causal.

Quer isto dizer que a total ausência de factos concretos que integrem os meios de defesa invocados pelos embargantes, não é, à semelhança do disposto para a acção declarativa, objecto de despacho de aperfeiçoamento, pois que só a deficiência e não a total ausência de causa de pedir, pode ser objecto de aperfeiçoamento.

Recorde-se que os embargos de executado constituem uma contra-acção, de natureza declarativa a correr por apenso ao processo de execução, mediante o qual o executado/embargante visa “visa a extinção da execução, mediante o reconhecimento da actual inexistência do crédito exequendo ou da falta de um pressuposto, específico ou geral, da execução.” [LEBRE DE FREITAS, José, A Ação Executiva, à luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª ed., Almedina, pág 193] podendo os executados suscitar não só questões jurídicas de conhecimento oficioso, como alegar factos novos e invocar questões que, não sendo de conhecimento oficioso estão na sua libre disponibilidade (é o caso do benefício da excussão prévia de bens, de prévia interpelação do devedor e da prévia resolução do contrato, da perda do benefício do prazo, etc).

Nesta oposição, podem os executados, porque em sede de título de crédito, deduzir todos os fundamentos de oposição que lhes seria lícito invocar, como meio de defesa, em sede de ação declarativa (artº 731º do C.P.C.). Por essa razão, quando invocadas exceções de direito material, o opoente está onerado com o dever de alegação e prova, dentro dos limites impostos pelos fundamentos admissíveis de oposição à execução, face ao título em causa, dos factos concretos que integram as aludidas exceções. O embargante está onerado, caso queira ver a sua pretensão recebida, de invocar a causa de pedir das exceções de direito material em causa (artº 576º, nº 3 do C.P.C.), idóneas ao fim visado, ou seja, a extinção total ou parcial da execução. Neste campo, conforme já referido, têm plena aplicação as regras respeitantes ao ónus de alegação e prova constantes do artº 342º, nº 1 e 2 do C.P.C., que determina que o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do direito e extintivos, modificativos e impeditivos do direito contra si invocado, cabe ao que alega o direito ou a excepção.

Ora, conforme afirmado na decisão a quo, o ónus de alegação e prova da existência e conteúdo do pacto de preenchimento, cabe ao executado/embargante, como lhe caberá face à autonomia, abstração e literalidade do título, o ónus de alegação e prova dos factos relativos à relação causal. Não basta assim, ao embargante, alegar de fora genérica e vaga a existência de exceções de direito material, opostas ao título, impondo-se-lhe a alegação de factos jurídicos concretos, que então se enquadrarão na respectiva norma jurídica, permitindo ao tribunal que se pronuncie sobre o mérito da causa, quer em sentido positivo, quer em sentido negativo. [Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, II, pág. 381 (citando como exemplo factos constitutivos de nulidade de um contrato e pedido de cumprimento do mesmo)]

Incumprindo este ónus de alegação de factos concretos, impõe-se o seu indeferimento liminar, não com fundamento na nulidade decorrente de ineptidão, mas de improcedência da aludida exceção, uma vez que a petição de embargos, embora no plano formal constitua uma verdadeira petição de ação declarativa, a que são aplicáveis as exigências de forma referidas nos artºs 552º e 147º do C.P.C. “no plano material a oposição consubstancie uma reacção à pretensão executiva” (ac. do TRC de 03/03/21 citado), equiparada assim a uma contestação. Esta equiparação da petição de embargos à contestação decorre da circunstância de se excluir o disposto no artº 669º, nº 2 do C.P.C. (cfr. previsto no artº 728º, nº 3 do C.P.C.), da natureza processual do prazo para dedução de embargos (artº 728º, nº 1 e 138º, nº 1 do C.P.C.) e do princípio da concentração da defesa, previsto no artº 573º, nº 1 do C.P.C. [Sobre a equiparação da petição de embargos à contestação vide PINTO, Rui, A Ação Executiva, Reimpressão, AAFDL, 2020, págs. 408/409.1]

Quer isto dizer que não são aplicáveis à petição de embargos as causas que conduziriam a nulidade, por ineptidão, da petição inicial de ação declarativa, previstas no artº 186º do C.P.C.

O que não significa que esteja o embargante desonerado de alegar os factos referentes às exceções de direito material que opõe ao título, mas antes que, não o fazendo, a falta de alegação destes factos conduz ao indeferimento liminar dos embargos, por manifesta improcedência.

Nessa medida, analisando o teor da petição de embargos, verifica-se que os embargantes não indicam quaisquer factos relativos ao pacto de preenchimento da referida livrança, nem os factos referentes à obrigação causal, mesmo após proferido despacho de aperfeiçoamento pelo juiz a quo (embora a considerar esta uma verdadeira petição inicial, a que seria aplicável o regime da ineptidão por falta de causa de pedir, como o considerou o juiz a quo, não fosse esta ineptidão passível de despacho de aperfeiçoamento).

Impõe-se assim, conforme decidiu o tribunal a quo, indeferir os embargos liminarmente, por manifesta improcedência das exceções invocadas (artº 732º, nº 1, c) do C.P.C.)"

[MTS]