"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/12/2022

Jurisprudência 2022 (79)


Litigância de má fé;
apreciação*


I. O sumário de RG 24/3/2022 (2924/20.0T8BRG.G1) é o seguinte:
 
1 - Na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que não a empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito.2 - A simples privação do uso constitui, por si só, um dano indemnizável já que representa, para o seu proprietário, a perda de uma utilidade que é a de usar a coisa quando e como lhe aprouver.

3 - A perda da possibilidade de utilização do bem quando e como lhe aprouver tem valor económico devendo recorrer-se para o cálculo da correspondente indemnização à equidade, por não ser possível avaliar o valor exato dos danos.

4 - O instituto da litigância de má-fé constitui sanção civil para o inadimplemento gravemente culposo ou doloso dos deveres de cooperação e de boa-fé (ou probidade) processual.

5 - A afirmação da litigância de má-fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para por ela se concluir, exigindo-se no juízo a realizar uma particular prudência, necessária não só perante o natural conflito de interesses, contrário, normalmente, a uma ponderação objectiva, e por vezes serena, da respectiva intervenção processual, mas também face ao desvalor ético-jurídico em que se traduz a condenação por litigância de má-fé.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A sentença recorrida considera que o autor agiu dolosamente, ou pelo menos, com negligência grave, por não ter curado de identificar o agente responsável pela prática do facto que lhe vedou o acesso à garagem, “arrastando” para a ação os seus filhos e o administrador do condomínio, “sem um mínimo de fundamento, de facto ou de direito que o justificasse”, atribuindo culpas ao facto de beneficiar de apoio judiciário (!).

Vejamos.

O instituto da litigância de má-fé, previsto nos arts. 542º e segs. do C.P.C., constitui sanção civil para o inadimplemento gravemente culposo ou doloso dos deveres de cooperação e de boa fé (ou probidade) processual (arts. 266º e 266º-A do C.P.C., atuais artigos 7.º e 8.º do CPC) – cfr Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil Vol. I (2ª edição revista e ampliada), pag. 97.

A condenação de uma parte como litigante de má-fé consubstancia um verdadeiro juízo de censura sobre a sua atitude processual, com o marcado intuito de moralizar a actividade judiciária.

O instituto em causa acautela um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça, destinando-se a assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça – destina-se a combater a específica virtualidade da má-fé processual, que transforma a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial – cfr. Pedro de Albuquerque, Responsabilidade Processual Por Litigância de Má-fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados No Processo, Almedina, pp. 55 e 56.

A condenação como litigante de má-fé há-de afirmar a reprovação e censura dos comportamentos da parte que, de forma dolosa ou, pelo menos, gravemente negligente (situações resultantes da inobservância das mais elementares regras de prudência, diligência e sensatez, aconselhadas pelas mais elementares regras do proceder corrente e normal da vida), pretendeu convencer o tribunal de pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, alterou a versão dos factos relativos ao litígio ou que fez do processo ou meios processuais uso manifestamente reprovável.

A simples proposição de uma acção, que venha a ser julgada sem fundamento, não constitui, de per si, actuação dolosa ou gravemente negligente da parte. O mesmo acontece com a contestação deduzida a pedido que venha a ser julgado procedente.

A afirmação da litigância de má-fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para por ela se concluir, exigindo-se no juízo a realizar uma particular prudência, necessária não só perante o natural conflito de interesses, contrário, normalmente, a uma ponderação objectiva, e por vezes serena, da respectiva intervenção processual, mas também face ao desvalor ético-jurídico em que se traduz a condenação por litigância de má-fé - cfr., entre outros, os Ac. do STJ de 14/03/2002 e 15/10/2002, in www.dgsi.pt.

No acórdão do S.T.J de 11/12/2003, in www.dgsi.pt, argumentou-se dever entender-se que “a garantia de um amplo acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do Estado de Direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do art. 456º do CPC, nomeadamente no que respeita às regras das alíneas a) e b) do nº 2”, pelo que não é por “se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira como litigante de má-fé”, pois a verdade revelada no processo não é mais que a verdade do convencimento do juiz, uma verdade judicial e relativa, “não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico”.

Exige-se, pois, particular prudência e fundada segurança para se afirmar a litigância de má-fé, a qual depende sempre de uma apreciação casuística onde deverá caber a natureza dos factos e a forma como a negação ou omissão são feitas – Ac. STJ de 15/10/2002, já citado.
Exige-se para a condenação como litigante de má-fé que se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte

Ora, da análise do comportamento processual do autor não pode concluir-se pela sua litigância de má-fé.

O autor intentou a ação contra quatro réus, convencido do bem fundado da interpretação que fez dos normativos legais aplicáveis, conforme decorre, aliás, das suas alegações de recurso, onde continua a sustentar a sua versão. Não decorre da falta de prova de alguns dos factos alegados, designadamente quanto aos bens existentes na garagem e à atuação dos réus (e veja-se o seu inconformismo, interpondo recurso também da matéria de facto), que o autor tenha litigado de má-fé.

Já vimos que tal não basta para que se possa concluir pela litigância de má-fé, no sentido de uma conduta desrespeitosa perante o tribunal ou perante a parte contrária, não derivando do seu comportamento uma vontade consciente e reprovável com vista a impedir ou entorpecer a ação da justiça.

Do que fica dito resulta a procedência do recurso do apelante, com a necessária revogação da sentença recorrida, no que toca à condenação deste como litigante de má-fé."


III. [Comentário] Para melhor se perceber a revogação da condenação do autor como litigante de má fé pela RG importa ter presente esta divergência entre a 1.ª e a 2.ª instância:

"Ora, o que é certo é que a 1.ª ré, ao substituir, em março de 2020, a chave de acesso à garagem impediu o autor de a usar, privou o outro consorte do uso a que igualmente tem direito, nos termos daquele artigo 1406.º, n.º 1 do CC, sendo correta a condenação da mesma a entregar ao autor uma chave que lhe permita o acesso à garagem.

A sentença sob recurso ficou-se por esta condenação, entendendo que não havia lugar a qualquer indemnização.

Mas aqui teremos que dar razão ao apelante, ainda que parcialmente.

Reportamo-nos à indemnização pela privação do uso.

Na sentença sob recurso considerou-se não estar preenchido um dos requisitos da responsabilidade civil extracontratual: o requisito da ilicitude da atuação da 1.ª ré, por o comproprietário não ter manifestado um interesse concreto em fazer também uso da coisa. Sustentou-se, para o efeito, num Acórdão da Relação de Lisboa de 12/04/2016, de onde decorreria que a ilicitude da conduta de um comproprietário que utilize em exclusivo a coisa co-titulada apenas se afirmará quando o outro comproprietário tenha manifestado um interesse concreto em fazer também uso da coisa e aquele que faz uso da coisa se negue, depois de intimado para tal, a, nos termos da lei, facultar aos outros consortes a possibilidade de igualmente se servirem dela.

Ora, o que se verifica é que o autor, com data de 18 de maio de 2020, por carta registada com aviso de receção, assinada por sua irmã, interpelou a 1.ª ré para que esta, no prazo de 10 dias, lhe entregasse uma cópia da nova chave da fração autónoma acima identificada – facto provado n.º 5-A – manifestando, assim, um interesse concreto em também fazer uso da coisa.

Daí que, mesmo aceitando a tese da sentença recorrida quanto à ilicitude do comportamento da 1.ª ré, não há dúvida que a mesma se verifica.

E o mesmo se diga do dano sofrido."


MTS