"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/12/2022

Jurisprudência 2022 (82)


Recurso de revisão;
documento*


1. O sumário de RP 14/3/2022 (6940/19.6T8PRT-A.P1) é o seguinte:

Na noção de documento, definida no artigo 362.º do Código Civil, não cabe o acto judicial “sentença” para efeitos do disposto no artigo 696.º, alínea c) do Código de Processo Civil.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1. - O artigo 696.º - Fundamentos do recurso – do CPC dispõe:

“A decisão transitada em julgado só pode ser objeto de revisão quando:
a) (…);
b) (…);
c) Se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida;”.
 
2. - Como escrevemos no acórdão de 20 de Setembro de 2021, proc. n.º 611/17.5T8MTS-B.P1, in www.dgsi.pt, “O recurso extraordinário de revisão é, como o nome indica, um expediente extraordinário de reacção contra uma decisão já transitada em julgado, visando nova apreciação da decisão a rever.

Tal recurso comporta duas fases: a fase rescindente e a fase rescisória.

A primeira visa apreciar o fundamento do recurso, mantendo-se ou revogando-se a decisão contestada – juízo rescindente; a segunda propõe-se conseguir a decisão que deve substituir-se à recorrida – juízo rescisório.

No entanto, nos termos do artigo 699.º - Admissão do recurso – n.º 1 do CPC, o tribunal a que for dirigido o requerimento indefere-o quando não tenha sido instruído nos termos do artigo 698.º - Instrução do requerimento - ou quando reconheça de imediato que não há motivo para revisão.” – fim de citação.

A ré recorrente apresentou o recurso extraordinário de revisão da decisão proferida no processo principal, com o fundamento previsto na citada alínea c) do artigo 696.º do CPC: “documento que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida”.

Ora, o “documento” apresentado pela ré mais não é do que a “sentença proferida a 16 de Setembro de 2020 nos autos de processo comum com o nº 1567/18.2PBBRG pelo Juiz 1 do Juízo Local Criminal de Braga do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães por acórdão proferido aos 8 de Março de 2021, autos nos quais o aqui Autor foi Arguido e AA Assistente”, transitada em julgado em 15 de Abril de 2021.

3. – No acórdão ora recorrido, proferido em 22.02.2021, escrevemos:

“Nos termos do artigo 362.º - Noção -, do Código Civil (CC) “Prova documental é a que resulta de documento; diz-se documento qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto.”.

Ora, a requerente não juntou documento definido nos termos do citado artigo 362.º do CC, mas “cópia da sentença proferida aos 16.09.2020 nos autos de processo Comum Singular com o nº de processo 1567/18.2PBBRG do Juiz 1 do Juízo Local Criminal de Braga do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no qual foi decidido condenar o arguido BB, A. e Recorrido nos presentes autos”, como elemento de prova para a alteração da decisão sobre a matéria de facto impugnada no âmbito do recurso de apelação apresentado nos presentes autos.

Atento o disposto no artigo 152.º, n.º 2, do CPC. “Diz-se «sentença» o acto pelo qual o juiz decide a causa principal ou algum incidente que apresente a estrutura de uma causa” – fim de citação.

Com a entrada em vigor do NCPC, o artigo 152.º, n.º 2, deve ser conjugado com o artigo 607.º que materializou alterações respeitantes à “sentença”, como acto que, após a audiência final, congrega tanto a decisão da matéria de facto, como a respectiva integração jurídica, por comparação com o que anteriormente emergia dos artigos 653º (decisão da matéria de facto) e 659º (sentença).

Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume I, pág. 319, em anotação ao artigo 362.º do CC, escrevem:

A noção de documento do artigo 2420.º do Código de 1867 é consideravelmente ampliada. Além dos escritos a que esse preceito se refere, são ainda documentos uma fotografia, um disco gramofónico, uma fita cinematográfica, um desenho, uma planta, um simples sinal convencional, um marco divisório, etc. (cfr. art. 368.º).
 
Essencial à noção de documento é a função representativa ou reconstitutiva do objecto. Uma pedra, um ramo de árvore ou quaisquer outras coisas naturais, não trabalhadas pelo homem, não são documentos na acepção legal. Podem ter interesse para a instrução do processo, mas constituirão objecto de um outro tipo de prova (a prova por apresentação de coisas móveis ou imóveis, por inspecção judicial, etc.).”.

Assim sendo, na noção de documento, definida no citado artigo 362.º do CC, não cabe o acto judicial “sentença”, para efeitos do disposto no artigo 696.º, alínea c) do CPC.

Este tem sido o entendimento unânime na jurisprudência, desde a versão do artigo 771.º do anterior CPC até à redacção do artigo 696.º do NCPC – cuja redacção da alínea c) é similar -, como se pode ler nos Acórdãos do STJ de:
(i) 18.04.1975, BMJ, 246.º-103;
(ii) 22.05.79 - BMJ 287º/244;
(iii) 22.01.98 - BMJ 473º/427;
(iv) 15.05.01 - CJ/STJ - 2º/80);
(v) 17.01.06 – CJ/STJ – 1º/35; e
(iv) Acórdão do TRPorto, de 31 de Outubro de 2006, in www.dgsi.pt.

Aliás, no acórdão recorrido, a propósito da requerida junção da “cópia da sentença” para a alteração da decisão sobre a matéria de facto, escrevemos:

“(…), no exercício do seu múnus judicial, o juiz é independente [“Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.” – cf. Artigo 203.º (Independência) da CRP] e, em particular na apreciação da prova, é livre na formação da sua convicção.
 
Assim, como o Tribunal de recurso pode formar convicção diferente da do Tribunal recorrido em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, atento o disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, por maioria de razão é livre na sua convicção em relação a decisão da 1.ª instância proferida em Tribunal de diferente jurisdição, como é o caso em apreço.
 
Na verdade, a “cópia da sentença”, cuja junção a recorrente pretende, como “meio probatório”, respeita à jurisdição penal, ao passo que o recurso interposto nos autos reporta à jurisdição laboral, cujas regras processuais e substantivas na apreciação do comportamento disciplinar do trabalhador são diferentes do que as previstas na jurisdição penal.
 
Além disso, no caso em apreço, não só as partes não são as mesmas nos dois processos – no processo penal, o aqui autor, é arguido e queixoso a testemunha AA -, como a recorrente não alegou, nem provou, que a sentença ora apresentada já tenha transitado em julgado.
 
Por todo o exposto, não se admite a junção aos autos da “cópia da sentença” em causa, a qual deve ser desentranhada e devolvida à recorrente.” - Fim de citação

Ora, não foi o simples trânsito em julgado da sentença em causa que a transformou no “documento” exigido na alínea c) do artigo 696.º do CPC.

Deste modo, dado que a ré recorrente não apresentou o “documento” idóneo nos termos exigidos pela alínea c) do artigo 696.º do CPC, outra solução não resta do que indeferir o recurso extraordinário de revisão apresentado."


*3. [Comentário] A RP decidiu bem.

Que no regime legal do recurso de revisão esteja tudo bem, isso é outra coisa completamente diferente.

MTS