"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/12/2022

Jurisprudência 2022 (87)

 
Providência cautelar; 
excepção peremptória; medida da prova


1. O sumário de RP 24/3/2022 (3346/06.0TBVNG-D.P1) é o seguinte:

I - No regime do Código de Processo Civil de 1961, são pressupostos da ação destinada a obter a emenda da partilha na falta de acordo, que o interessado tenha tomado conhecimento da situação justificativa da emenda apenas depois da sentença homologatória da partilha e que a instauração do procedimento ocorra dentro de um ano, a contar desse conhecimento.

II - Se, no procedimento cautelar preliminar (de arresto), é invocada pelo Requerido, na oposição que deduziu, após a decisão, a caducidade do direito de ação para emenda da partilha, de que aquele é dependência, e a prova sumária realizada aponta, com segurança, para a verificação dessa exceção perentória, a providência cautelar ordenada perde a sua justificação e deve ser levantada.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:


"I. [1] AA, divorciada, residente na Rua ..., ..., ..., Vila Nova de Gaia, instaurou providência cautelar de arresto, como preliminar da ação principal para emenda da partilha a propor contra BB, divorciado e seu ex-cônjuge, residente na Rua ..., ..., em ..., Gondomar [...].

Produzida e analisada a prova indicada, foi proferida a seguinte decisão cautelar, ipsis verbis:

«Nesta conformidade, julga-se a presente providência parcialmente procedente, e, consequentemente, determina-se o arresto, até ao valor de 164.603,31€, [de] todos os saldos e/ou valores de qualquer conta de depósito, à ordem ou a prazo, poupança, fundos de investimento mobiliário, ações ou quaisquer outros títulos valores depositados, que o requerido BB possua em qualquer instituição bancária [...].»

Realizada a providência e notificado o Requerido, este deduziu oposição com os fundamentos que expôs no seu requerimento de 29.11.2021, onde invocou, além do mais, as exceções do caso julgado e da caducidade de propor ação de emenda à partilha. [...]

III. [...] Depois do trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha, a opção da Requerente não foi a emenda da partilha, mas a instauração de uma ação comum que correu termos sob o nº 1519/19.5T8VNG, onde, mais uma vez, abordou as questões da utilização de bens próprios na aquisição e um bem comum e da sonegação, pelo Requerido, de dinheiro das contas do casal, com o seguinte pedido:

«a) Reconhecer que o produto da venda da moradia sita na Rua ..., ..., em ..., Vila Nova de Gaia, no montante de €169 000,00, é bem próprio da autora e como tal activo/crédito a seu favor, por o pagamento do valor do lote de terreno onde se encontra implantada e a construção da mesma ter sido efectuado no estado de solteira da autora, por meios exclusivamente próprios, tais como remunerações, donativos dos pais, familiares e herdados por óbito da sua mãe;

b) Reconhecer que a quantia de 25.000,00€ resultante do resgate de certificados de aforro que foram adjudicados à autora por herança por óbito de sua mãe, aplicada na construção da identificada moradia da Rua ... em ..., Vila Nova de Gaia, é bem próprio da autora;

c) Reconhecer que o valor que se encontrava depositado nas contas bancárias identificadas no art. 23º da P.I., entretanto levantado pelo réu, no valor de 128.259,57 é bem comum do casal, e, como tal, reconhecer que metade desse valor (64.129,78€) constitui activo/crédito da autora;

d) Compensar os créditos da autora cujo reconhecimento se requer com o crédito do réu resultante de tornas por adjudicação em sede de inventário do bem imóvel, identificado no art. 37º da P.I., no montante de 89.905,25€.

e) Pagar à autora, após prolação de decisão transitada em julgado, o valor liquido que venha a resultar da diferença entre o montante dos créditos cujo reconhecimento se peticiona e o da compensação do crédito, a que se alude no pedido antecedente.»

Nessa ação, foi, pela 1ª instância, julgada procedente a exceção do caso julgado, invocada pelo Requerido, sendo que a sentença foi confirmada nesta Relação do Porto por acórdão de 9.2.2021.

Decorre de tudo quanto ficou exposto, e desde logo das próprias alegações da recorrente, que já em 2016, na pendência do inventário, esta tinha conhecimento da situação de erro que agora invoca; ou seja, já naquela altura suscitou no processo a existência de erro relativo à falta de relacionação do seu crédito sobre os bens comuns relativo à afetação de bens próprios na aquisição da habitação que constituiu a casa de morada da família, e a sonegação de valores integrantes do património conjugal por parte do Requerido.

Essas questões foram decididas no inventário, por despacho que formou caso julgado, exceção esta mais do que uma vez invocada e confirmada quer na 1ª instância, quer pela Relação nos acórdãos confirmativos que proferiu em sede de recurso.

Por conseguinte, a recorrente estava perfeitamente ciente, na pendência do processo de inventário, da situação que agora invoca a título de erro. E se assim aconteceu, só no inventário poderia ter solucionado a questão; nunca depois dele pela via de emenda da partilha, já que são pressupostos desta ação que o interessado tenha tomado conhecimento da situação justificativa da emenda apenas depois da sentença homologatória da partilha, e a instauração do procedimento dentro de um ano, a contar desse conhecimento.

De entre as afirmações algo contraditórias efetuadas pela apelante nas suas alegações de recurso, a que não corresponde à realidade é a de que tenha tomado conhecimento do erro de facto na descrição dos bens apenas com o trânsito em julgado da sentença proferida na ação comum nº 1519/19.5T8VNG, em 7 de junho de 2021, onde a exceção do caso julgado foi mais uma vez a causa do não conhecimento do mérito das questões ali suscitadas na petição inicial, onde novamente se revelaram conhecidas da recorrente (ali autora).

Poderia mesmo discutir-se se a omissão de bens, de créditos ou de dívidas na sua relação/descrição pode ser fundamentar um pedido de emenda da partilha. Os exemplos normalmente apontados pela doutrina respeitam a uma identificação incorreta de bens, e não à sua omissão. Lopes Cardoso [Partilhas Judiciais, Volume II, Almedina, 1990, pág.s 548 e 553.] explica assim: “Como erro de facto na descrição considera-se toda a descrição que não corresponda à verdade, designadamente a descrição dum prédio urbano por rústico, um móvel por um imóvel ou, dentro de cada uma destas categorias, quando tenha sido descrito como de três andares um prédio de um andar único ou uma quinta por um terreno centeeiro, ou vícios ocultos da coisa ou falta de conteúdo ou extensão”. E, depois de citar Delfim Maia como defensor de que o erro de partilha por omissão de bens pode constituir fundamento da emenda da partilha no âmbito da aplicação da lei civil e do Código de 1876, acrescenta a sua divergência no sentido de que na legislação atual (Código de Processo Civil então em vigor e a que estamos a aplicar em sede de processo de inventário) não é defensável tal entendimento, mesmo que haja aquiescência de todos os interessados: a emenda à partilha não tem lugar nos casos de omissão ou indevida inclusão de bens.

A ação de emenda à partilha (na falta de acordo dos interessados) não se destina a uma reapreciação crítica de atos processuais praticados no decurso do inventário, mas a averiguar se a partilha, em si mesma, padece ou não de alguma das deficiências ou irregularidades enquadráveis nos art.ºs 1386º e 1387º do Código de Processo Civil de 1961.

Não há, no entanto, necessidade de desenvolver esta argumentação, face à comprovada verificação dos pressupostos da caducidade [---] do direito de ação de que é preliminar o presente procedimento cautelar de arresto.

E se, à luz dos elementos fornecidos neste procedimento, a ação principal a que a Requerente se propõe --- emenda da partilha --- não pode ter lugar, por caducidade do direito da Requerente, também esta providência de arresto, com ela conexa, perde a sua justificação, já que é dependência da instauração daquela ação e da sua previsível viabilidade, como se deduz dos art.ºs 373º, nº 1, al.s a) e c), 374º, nº 1 e 376º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Nesta decorrência, sem necessidade de mais delongas, há que confirmar a decisão recorrida, que julgou verificada a exceção perentória da caducidade invocada pelo Requerido na sua oposição e, em consequência, ordenou o levantamento do arresto anteriormente decretado."


3. [Comentário] A RP decidiu bem.

O principal interesse do acórdão reside na circunstância de utilizar, de forma totalmente correcta, a "prova sumária" referida nos art. 365.º, n.º 1, e 368.º, n.º 1, CPC à prova de uma excepção perempória invocada no procedimento de arresto.

MTS