"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/12/2022

Jurisprudência 2022 (78)


Procedimento de injunção;
execução; oposição; boa fé*


1. O sumário de RC 17/3/2022 (1925/21.5T8VIS-A.C1) é o seguinte:

A falta de oposição ao requerimento de injunção não preclude, em sede de oposição à execução, a alegação de que a dívida exequenda é inexistente e que as facturas respectivas são falsas, por nenhum fornecimento ter sido realizado, tudo não passando de uma situação de conluio entre um dos sócios gerentes da sociedade executada e um seu filho (exequente), no intuito de prejudicarem tal sociedade, tendo até ocultado a carta de notificação para oposição à injunção, com o fim de obterem um título executivo fácil e rápido, visto os factos em questão configurarem matéria de excepção peremptória de conhecimento oficioso do tribunal, na medida em que atentam gravemente contra o princípio da boa fé.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2. - Se ocorre (ou não) preclusão, por falta de oposição à injunção, quanto aos invocados meios de defesa em sede de oposição por embargos

Esgrime ainda a Apelante que, no caso, não se verifica «a exequibilidade da pretensão nem a validade ou eficácia do ato ou negócio nele titulado» (conclusão 17.ª), devendo considerar-se «que os fundamentos da oposição, no que tange à inexequibilidade do título e à inexequibilidade da pretensão do exequente, deveriam ter sido aceites, na esteira do que dispõe o artº 729º al. a) do CPC.» (conclusão 18.ª).

Outro caminho seguiu, como visto, o Tribunal recorrido, ao considerar que ocorre preclusão quanto a estes meios de defesa no âmbito dos embargos, uma vez que deveriam ter sido deduzidos – e não o foram – em sede de oposição no procedimento de injunção, pelo que ficou perdida a possibilidade de os fazer valer mais tarde.

Ora, cabe dizer, quanto às formas de processo executivo, que o processo comum para pagamento de quantia certa é ordinário ou sumário (cfr. art.º 550.º, n.º 1, do NCPCiv.), empregando-se o processo sumário nas execuções baseadas em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória [vide n.º 2, al.ª b), do mesmo dispositivo legal], o que nos remete para os art.ºs 855.º e segs. do NCPCiv., os respeitantes ao dito processo sumário.

Assim, quanto aos atuais fundamentos de oposição à execução baseada em requerimento/título de injunção, rege o art.º 857.º do NCPCiv. – na redação dada pela Lei n.º 117/2019, de 13-09, com entrada em vigor em 01/01/2020 (---), a aplicável ao caso, visto o requerimento de injunção em discussão ter data de entrega posterior (apresentação em 09/12/2020) – e não diretamente os art.ºs 729.º a 731.º do mesmo Cód., por referentes ao processo ordinário.

E é seguro que aquela Lei n.º 117/2019, no seu art.º 6.º, veio alterar o art.º 13.º do «regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª Instância, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, na sua redação atual», passando a contemplar, quanto ao conteúdo e efeito das notificações em procedimento de injunção [art.º 13.º, n.º 1, al.ª b)]:

«b) A indicação do prazo para a oposição e a respetiva forma de contagem, bem como da preclusão resultante da falta de tempestiva dedução de oposição, nos termos previstos no artigo 14.º-A;» (---).

E o aditado art.º 14.º-A (aditamento pelo art.º 7.º da mesma Lei n.º 117/2019) veio dispor assim:

«Artigo 14.º-A

Efeito cominatório da falta de dedução da oposição

1 - Se o requerido, pessoalmente notificado por alguma das formas previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 225.º do Código de Processo Civil e devidamente advertido do efeito cominatório estabelecido no presente artigo, não deduzir oposição, ficam precludidos os meios de defesa que nela poderiam ter sido invocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

2 - A preclusão prevista no número anterior não abrange:

a) A alegação do uso indevido do procedimento de injunção ou da ocorrência de outras exceções dilatórias de conhecimento oficioso;

b) A alegação dos fundamentos de embargos de executado enumerados no artigo 729.º do Código de Processo Civil, que sejam compatíveis com o procedimento de injunção;

c) A invocação da existência de cláusulas contratuais gerais ilegais ou abusivas;

d) Qualquer exceção perentória que teria sido possível invocar na oposição e de que o tribunal possa conhecer oficiosamente

Assim, à luz deste dispositivo legal – e do art.º 857.º, n.º 1, do NCPCiv., que para este regime normativo remete –, não ocorre preclusão quanto à alegação/meio de defesa do uso indevido do procedimento de injunção ou, do mesmo modo, quanto a alguma exceção perentória que fosse invocável na oposição e de que o tribunal possa conhecer oficiosamente.

Ora, a sociedade Embargante veio alegar matéria fáctica que visa consubstanciar, de algum modo, um uso abusivo/censurável do procedimento de injunção.

Com efeito, ao invocar que o Requerente do procedimento de injunção, conluiado com o seu pai, um dos sócios gerentes da Executada/Opoente – este que (alegadamente) recebeu a notificação e a ocultou à sociedade –, engendrou um esquema de faturas falsas, para titular uma dívida inexistente, que visou cobrar de quem nada lhe devia (a sociedade) através do procedimento de injunção, a que a visada não pôde opor-se por, assim conluiado, o sócio gerente referido a tal ter obstado (escondendo a carta de notificação), no sentido da obtenção fácil e rápida de título executivo referente a montante pecuniário consideravelmente elevado, tal pode configurar um uso abusivo, claramente ilícito e, assim, censurável/reprovável do procedimento de injunção.

Porém, é de admitir e acolher uma interpretação – menos ampla – no sentido de o «uso indevido do procedimento de injunção» ser reservado a outra tipologia de casos, as situações de “ausência das condições de natureza substantiva que a lei impõe para a decretar” (Cfr. Ac. TRL de 23/11/2021, Proc. 88236/19.0YIPRT.L1-7 (Rel. Edgar Taborda Lopes), em www.dgsi.pt.), quando, pois, não estão verificados os pressupostos de que a lei faz depender o acesso/recurso à injunção (atendendo, designadamente, ao tipo de contrato/transações comerciais e de obrigação cujo cumprimento se pretende).

Isto é, o «uso indevido do procedimento de injunção» não se reporta a um uso abusivo/censurável do procedimento, mas a uma utilização processualmente inadequada, por não estarem verificados os pressupostos legais de adoção do procedimento injuntivo () (---), como, por exemplo, no caso de se pretender a cobrança de uma obrigação decorrente de responsabilidade civil (logo, indemnizatória), em vez de uma dívida (“obrigação pecuniária”) diretamente emergente de um contrato (Cfr., entre outros, o Ac. TRL de 25/05/2021, Proc. 113862/19.2YIPRT.L1-7 (Rel. Cristina Coelho), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «Só pode ser objeto do pedido de injunção o cumprimento de obrigações pecuniárias diretamente emergentes do contrato, mas já não pode ser peticionado naquela forma processual obrigações com outra fonte, nomeadamente, derivada de responsabilidade civil». Neste âmbito, ali se considerou que a situação era de erro na forma de processo.).

Pode até defender-se que neste sentido interpretativo milita a circunstância, em termos literais, de na mesma alínea da lei se contemplar, para além daquele «uso indevido do procedimento de injunção», a «ocorrência de outras exceções dilatórias de conhecimento oficioso» (itálico aditado), o que parece reconduzir o conjunto para o campo dos pressupostos legais/processuais, aqueles que dão causa à absolvição da instância, em vez de questões substantivas, que já se prendem com o mérito da causa.

Ora, a questão aludida que a Recorrente levanta é, inegavelmente, uma questão com dimensão substantiva, que se prende, desde logo, com a (in)existência do direito de crédito invocado.

Resta, então, a previsão normativa do aludido art.º 14.º-A, n.º 2, al.ª d), que se reporta, como dito, a qualquer exceção perentória que fosse invocável na oposição e de que o tribunal possa conhecer oficiosamente.

Ora, é patente que a materialidade fáctica alegada – aquela a que se vem fazendo referência – é suscetível de configurar exceção perentória (de direito material) que poderia ter sido invocada em sede de oposição à injunção.

E também se trata de matéria que o tribunal pode conhecer oficiosamente, uma vez que a conduta descrita do aludido sócio gerente, conluiado com o seu filho (Exequente), é claramente, a provar-se, lesiva para a sociedade e atentatória das mais elementares exigências da boa-fé objetiva, que postula um padrão de conduta, nas relações contratuais e interpessoais – maxime, no exercício de posições jurídicas –, marcado pela lealdade, correção e honestidade, bem como pela transparência e proporcionalidade, vedando comportamentos de deliberado e desnecessário sacrifício dos interesses legítimos de outrem (Como dito no Ac. TRC de 20/06/2017, Proc. 96/14.8TBSRE.C1 (Rel. Vítor Amaral), em www.dgsi.pt (subscrito por este mesmo coletivo), «o princípio da boa-fé revela determinadas exigências objetivas de comportamento impostas pela ordem jurídica, exigências essas de razoabilidade, probidade e equilíbrio de conduta, em campos normativos onde podem operar subprincípios, regras e ditames ou limites objetivos, indicando um certo modo de atuação dos sujeitos, considerado conforme à boa-fé, a qual deve estar presente no âmbito das tarefas valorativas e aplicativas aos casos concretos, tendo em conta a natureza e função económico-social do contrato a que se visa aplicar e da relação jurídica estabelecida entre as partes».).

Obviamente, a imputada conduta do Exequente e de seu pai, este último um dos sócios gerentes da Executada/Embargante, configurará, a resultar provada, um uso claramente reprovável do procedimento de injunção, manifestamente lesivo e, como tal, censurável e violador do princípio da boa-fé, matéria esta de conhecimento oficioso do tribunal, sabido ainda que este é livre na indagação, interpretação e aplicação do direito (art.º 5.º, n.º 3, do NCPCiv.).

Assim, salvo o devido respeito, está preenchido, in casu, o requisito «qualquer exceção perentória que teria sido possível invocar na oposição e de que o tribunal possa conhecer oficiosamente», ficando vedada, pois, a preclusão deste fundamento de oposição à execução.

Assim sendo, por não ocorrer, nesta parte, salvo o devido respeito, a dita preclusão, deveriam os autos ter prosseguido para que a Embargante pudesse exercer, neste alegado âmbito, o seu direito de defesa.

Em suma, os autos, em vez do aludido indeferimento liminar total, deverão prosseguir, se a tal nada mais obstar, para apuramento desta matéria alegada, que não é objeto de preclusão.

Donde que tenha de conferir-se razão, nesta perspetiva, à aqui Recorrente, devendo revogar-se, em consonância, a decisão recorrida, para que os autos de embargos prossigam em conformidade, neste âmbito alegado."


3. [Comentário] Talvez a RL pudesse ter explorado o regime da litigância de má fé, em especial o disposto no art. 542.º, n.º 2, al. d), CPC. É preciso não esquecer não só que apenas a indemnização à parte contrária depende do pedido desta parte, mas também que a verificação de uma situação de litigância de má fé implica, em geral, a improcedência do pedido formulado pela parte.

MTS