"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/12/2022

Jurisprudência 2022 (88)


Prestação de contas; habilitação;
inutilidade superveniente da lide*


1. O sumário de RL 5/4/2022 (1198/05.7TJLSB-J.L1-7) é o seguinte:

– No âmbito de processo de prestação de contas que corre termos por apenso a um processo de inventário por óbito, intentado por interessados na partilha da herança contra a cabeça-de-casal, a ocorrência do falecimento da requerida e subsequente habilitação de três das então requerentes como sucessoras da falecida não gera a impossibilidade superveniente da lide (art. 277º, al. e) do CPC) se para além das habilitadas há mais um requerente que não é sucessor da primitiva requerida e o decesso desta ocorreu depois de a mesma ter apresentado contas, que foram impugnadas por dois dos primitivos requerentes.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Os presentes autos tramitam uma ação de prestação de contas na qual foi peticionado que a falecida C prestasse contas do seu exercício das funções de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do seu falecido marido, tendo o âmbito temporal das contas a prestar sido fixado entre os anos de 2005 a 2014.

A doutrina e a jurisprudência têm assinalado, de modo uniforme e pacífico, que na ação de prestação de contas em que a obrigação de prestar contas decorre do exercício das funções de cabeça-de-casal (art. 2079º a 2093º do Código Civil), são partes legítimas todos os interessados na partilha da herança. [...]

Como já fizemos referência, logo no início da tramitação da presente causa foi determinada a intervenção principal das filhas do de cuius, Sras. Graça ..... e Teresa .....[---].

Em consequência de tal decisão, as mesmas passaram a assumir a posição processual de co-requerentes, a par dos iniciais requerentes, A e Ana Rita .....(arts. 316º e 319º, e 320º do CPC).

Posteriormente, em consequência do falecimento da requerida, no âmbito do processo de inventário foram habilitadas, como suas herdeiras, as interessadas Ana Rita ....., Graça ..... e Teresa ..... (que à data já tinham nestes autos a qualidade de requerentes).

Assim, à data da prolação da decisão apelada eram partes principais nos presentes autos as seguintes pessoas:

a)–Requerentes:
i.- A
ii.- Ana Rita .....
iii.- Graça .....
iv.- Teresa .....

b)– Requeridas:
i.-Ana Rita .....
ii.-Graça .....
iii.-Teresa .....

Como referiu o Tribunal a quo na decisão recorrida, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que, muito embora as funções de cabeça-de-casal não se transmitam por via sucessória, as obrigações emergentes do exercício de tais funções podem ser objeto de sucessão mortis causa.

Ora, uma das obrigações que pode transmitir-se nos termos supra expostos é a obrigação de distribuir rendimentos da herança por todos os herdeiros e pelo cônjuge meeiro, nos termos previstos no art. 2092º do CC.

No caso vertente, a falecida cabeça de casal chegou a prestar contas, tal como requerido pelos iniciais requerentes, embora estes não tenham aceite tais contas, razão pela qual o processo prosseguiu para instrução e julgamento, tendo sido levada a cabo uma perícia.

Assim, à data do falecimento da inicial requerida, e com vista à conclusão do presente processo, faltava realizar a audiência final, à qual se seguiria a natural prolação da sentença, apreciando as contas prestadas, e decidindo.

Na sequência das alterações subjetivas da instância acima referidas, as interessadas Graça ....., Teresa ....., e Ana Rita ..... passaram a ter, simultaneamente, as posições de requerentes e requeridas, ou seja, de credoras de 50% dos eventuais saldos positivos emergentes da administração dos bens da herança do falecido José, a repartir na proporção dos respetivos quinhões, e devedoras da obrigação de pagar tais saldos.

Neste contexto, entendeu o Tribunal a quo que tais créditos e obrigações se extinguiram por confusão, nos termos previstos no art. 868º do CPC.

E como apontou o Tribunal a quo, a jurisprudência tem entendido que a confluência das posições de sucessor do autor da herança e do cabeça-de-casal falecido na pendência de ação de prestação de contas pode levar à extinção das posições de credor e devedor inerentes às apontadas qualidades, conduzindo à extinção da instância por inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide – cfr. acs. RG (António Beça Pereira), p. 524/11.4TBAMR-C.G1; STJ 29-11-2005 (Custódio Montes), p. 05B3342; STJ 16-06-2011 (Tavares da Silva), p. 3717/05.0TVLSB.L1; e STJ 22-03-2018 (Roque Nogueira), p. 861/08.5TBBCL-E.G1.S1; .

Não obstante também tem sido afirmado que só ocorre inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, nos termos acima gizados, quando a extinção, por confusão, dos direitos e obrigações das partes atinja todos os litigantes – vd. ac. STJ 17-11-2021 (Nuno Pinto de Oliveira), p. 391/17.4T8GMR.G1.S1.

Subscrevemos convictamente este último entendimento.

Aliás, cremos que o último aresto citado não se distancia dos fundamentos dos demais, dado que em todos estes se apreciaram situações em que a confusão operava relativamente a todas as partes da causa.

Deve, pois, entender-se que a extinção das referidas posições jurídicas, por confusão, só poderá suceder quando atinja todos os requerentes no processo de prestação de contas, sob pena de um tal entendimento conduzir a uma injustificada supressão do direito previsto no art. 2092º do CC relativamente ao interessado que não é sucessor do cabeça-de-casal.

No caso vertente o requerente e interessado A não é herdeiro do de cuiús, mas é herdeiro de uma filha do falecido José ....., que concorria à herança deste, por ter falecido em data posterior.

Nessa medida, mesmo não sendo herdeiro do de cuius, o interessado A tem direito a exigir a distribuição dos rendimentos da herança do falecido José ....., na proporção do seu quinhão na herança da também falecida Isabel ....., não podendo ser privado do exercício de tal direito.

Acresce que o direito à distribuição de rendimentos da herança e o dever de os entregar na medida do quinhão de cada herdeiro têm âmbitos e medidas diversas. Com efeito, o cabeça-de-casal tem o dever de distribuir tais rendimentos, nos termos e com os limites previstos na lei, mas não tem o dever de suportar tal despesa, que é obviamente suportada pela herança, na medida dos rendimentos produzidos.

Daí que em nosso entender, a confluência do direito a rendimentos, decorrente da qualidade de herdeiro, e do dever de os pagar, emergente da qualidade de cabeça-de-casal não conduzam à extinção recíproca de tais posições.

Aliás, basta pensar que o cabeça-de-casal também pode ser herdeiro (art. 2080º do CC), não se descortinando razões para crer que por efeito do exercício de tal cargo deixe de ter direito a receber rendimentos da herança, tal como os demais herdeiros.

A afirmação de que a confluência das duas posições extingue os direitos e obrigações em confronto nas ações de prestação e contas intentadas contra o cabeça-de-casal não tem por objeto o direito a receber rendimentos da herança, mas apenas a faculdade de exigir judicialmente tal distribuição [---].

Simplesmente, tal não sucede com o interessado A.

Por isso, relativamente a este, não pode a lide cessar.

Finalmente, diremos que o facto de não ter sido confessada a existência de qualquer saldo é para nós absolutamente irrelevante. Relevante é a circunstância de a falecida cabeça-de-casal ter chegado a prestar contas, e estas terem sido impugnadas pelos primitivos requerentes, competindo, por isso, ao Tribunal apreciar tais contas e decidir (art. 945º, nºs 4 e 5 do CPC).

Não podendo a lide extinguir-se relativamente ao interessado Francisco ....., não poderá produzir-se tal efeito relativamente às demais interessadas, visto que, como já mencionámos, se verifica uma situação de litisconsórcio necessário ativo.

Daí que concluamos que no caso vertente inexiste fundamento bastante para decretar a extinção da instância."


*3. [Comentário] A RL decidiu bem.

Cabe, ainda assim, deixar uma observação. Como se referiu em Jurisprudência 2021 (139), não é correcto, salvo melhor opinião, entender que a obrigação de prestação de contas se transmite mortis causa:

"Seria estranho que, com base numa posição que não se transmite -- que é a de cabeça-de-casal --, alguém pudesse adquirir, por sucessão, uma obrigação que é própria de uma posição intransmissível. Como é que se pode justificar que quem não é cabeça-de-casal suceda numa obrigação que é inerente a essa qualidade?
 
No entanto, apesar da não transmissibilidade da obrigação de prestação de contas pelo cabeça-de-casal, é claro que uma acção de prestação pode ser continuada pelos herdeiros daquela parte. Mas isso sucede, não porque os habilitados sejam herdeiros da obrigação dessa prestação, mas antes porque são herdeiros de quem tinha essa obrigação. Isto é: o título de herdeiro atribui a alguém legitimidade para se substituir à parte falecida (título legitimante), sem que esteja em causa a sucessão na obrigação que é apreciada na acção (título sucessório)".

MTS