"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/12/2022

Jurisprudência 2022 (85)


Recurso de revista;
matéria de facto


1. O sumário de STJ 5/4/2022 (1916/18.3T8STS.P1.S1) é o seguinte:

I - As questões relacionadas com o incorrecto uso dos poderes de facto conferidos por lei ao tribunal da Relação, com violação do disposto no art. 662.º do CPC, não se encontram abrangidas pelos efeitos da dupla conforme, impeditiva da interposição da revista normal nos termos do art. 671.º, n.º 3, do CPC.

II - Se for omitida ou incorrectamente exercida tal actividade processual de sindicância da matéria de facto impugnada - que constitui pronúncia originária que compete unicamente à 2.ª instância - esse incumprimento dos deveres impostos no art. 662.º do CPC comporta naturalmente a interposição de revista normal para o STJ.

III - É o que sucede, por exemplo, quando o tribunal da Relação rejeita indevidamente a impugnação de facto com fundamento em incumprimento das exigências consignadas no art. 640.º, n.os 1 e 2, do CPC que afinal não se verifica; quando não se debruça, com a suficiência, a autonomia e a completude exigíveis, sobre a análise de toda a matéria concretamente impugnada, refugiando-se em considerações de natureza geral ou tabelar que não se traduzem em qualquer efectivo reexame dos factos que o recorrente alegou encontrarem-se incorrectados decididos; quando descura a exposição da fundamentação que permite objectivamente compreender o percurso intelectual subjacente à reanálise da prova.

IV - Na situação sub judice, aquilo de que o recorrente discorda, a pretexto da avocação do art. 662.º do CPC dos princípios gerais de negação do direito a um processo justo e equitativo, é do próprio conteúdo e sentido da reapreciação dos factos que foram adoptados pelo acórdão recorrido, entendendo que os elementos à disposição do tribunal (mormente a prova documental e testemunhal que foi produzida) imporiam, a seu ver, decisão diversa daquela que foi proferida, o que equivale a discutir e consequentemente discordar do mérito do juízo de facto autónomo de que o tribunal da Relação do Porto se socorreu.

V - Quanto a esta matéria - discussão da matéria de facto -, carece o STJ da necessária competência, conforme resulta expressamente do disposto no art. 662.º, n.º 4, do CPC, bem como do preceituado nos arts. 674.º, n.º 3, e 683.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, não sendo a revista normal admissível, o que significa que se constituiu in casu dupla conforme nos termos do art. 671.º, n.º 3, do CPC, impeditiva da interposição de revista normal prevista no art. 671.º, n.º 1, do CPC.

VI - Resta, portanto, a remessa dos autos à Formação para a verificação dos pressupostos da revista excepcional, nos termos do art. 672.º, n.º 3, do CPC, de que a recorrente, a título subsidiário, fez uso.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Não subsiste qualquer dúvida de que as questões relacionadas com o incorrecto uso dos poderes de facto conferidos por lei ao Tribunal da Relação, com violação do disposto no artigo 662º do Código de Processo Civil, não se encontram abrangidas pelos efeitos da dupla conforme, impeditiva da interposição da revista normal nos termos do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil.

Ou seja, constitui dever específico do Tribunal da Relação exercer efectivamente os seus poderes de reavaliação do juízo de facto emitido em 1ª instância, na sequência da impugnação apresentada pela apelante.

Se for omitida ou incorrectamente exercida tal actividade processual respeitante à sindicância da matéria de facto impugnada – que constitui pronúncia originária que compete unicamente à 2ª instância - esse incumprimento dos deveres impostos no artigo 662º do Código de Processo Civil comporta naturalmente a interposição de revista normal para o Supremo Tribunal de Justiça.

É o que sucede, por exemplo, quando o Tribunal da Relação rejeita indevidamente a impugnação de facto com fundamento em incumprimento das exigências consignadas no artigo 640º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil que afinal não se verifica; quando não se debruça, com a suficiência, a autonomia e a completude exigíveis, sobre a análise de toda a matéria concretamente impugnada, refugiando-se em considerações de natureza geral ou tabelar que não se traduzem em qualquer efectivo reexame dos factos que o recorrente referiu encontrarem-se incorrectados decididos; quando descura a exposição da fundamentação que permite objectivamente compreender o percurso intelectual subjacente à reanálise da prova.

Conforme escreve sobre esta matéria Abrantes Geraldes in “Recursos em Processo Civil”, Almedina 2020, 6ª edição, a páginas 415 a 416:

“Uma situação, a carecer de intervenção do elemento racional para determinação da resposta mais correcta, respeita aos casos em que é invocada no recurso de revista a violação de normas de direito adjectivo relacionadas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto.

Pode acontecer que a Relação rejeite pura e simplesmente a impugnação da decisão da matéria de facto por motivos ligados à falta de identificação dos pontos de facto impugnados, a omissão de indicação dos meios de prova, ou à falta de enunciação da resposta alternativa. Por exemplo, a Relação não admitiu o recurso de apelação na parte em que foi impugnada a decisão da matéria de facto, com o fundamento no incumprimento de alguns dos ónus previstos no artigo 640º; ou, noutro plano que demanda a aplicação do artigo 662º, recusou a apreciação dos meios de prova, a pretexto de alegadas dificuldades ou impedimentos decorrentes dos princípios da imediação ou da livre apreciação de prova.

Numa determinada perspectiva mais formal, em tais circunstâncias ocorreria uma dupla conformidade: literal e finalisticamente a Relação teria confirmado nesses casos a decisão recorrida sem voto de vencido e sem fundamentação substancialmente diversa. Todavia, tal conclusão não parece a mais ajustada, já que, relativamente à questão adjectiva relacionado com o ónus de alegação ou com o dever de reapreciação dos meios de prova, a interposição do recurso de revista constitui a única possibilidade de fazer reverter a situação a favor do recorrente nos casos em que o acórdão da Relação esteja eivada de erro de aplicação da lei processual a respeito da decisão da matéria de facto.

Nessas situações, e noutras similares, em que seja apontada à Relação erro de aplicação ou de interpretação da lei processual, ainda que seja confirmada a sentença recorrida no segmento referente à apreciação do mérito da apelação, não se verifica, relativamente àqueles aspectos, uma efectiva efectiva situação de dupla conforme, já que as questões emergiram ex novo do acórdão da Relação proferido no âmbito do recurso de apelação, sem que tenham sido objecto de apreciação na 1ª instância”. [...]

Vejamos:

Num primeiro momento a recorrente invocou a violação do disposto no artigo 662º do Código de Processo Civil no contexto global da impugnação da sua condenação como litigante de má fé e da absolvição do Réu a esse mesmo título, citando os pontos 16 e 18 dos factos dados como provados.

Encimou, de resto e sintomaticamente, tal alegação nos seguintes termos: “Vejamos, resumindo apenas a dois flagrantes factos que por sua vez têm impacto também na prova de que o réu, aqui recorrido, litigou em manifesta e ostensiva má-fé”.

E como se evidenciou no despacho singular proferido pelo relator dos autos, encontrando-se assegurado o duplo grau de jurisdição, o artigo 542º, nº 3, do Código de Processo Civil, não admite recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.

Seguidamente, no que concerne ao elenco dos factos dados como provados, circunscritos pontualmente àqueles que foram discriminados pela recorrente na revista (apenas o 16º e 18º, não havendo o 17º sido objecto da impugnação de facto), a sua invocação não tem rigorosamente a ver, em termos substantivos, com o incorrecto exercício dos poderes de facto pelo Tribunal da Relação ..., nos termos do artigo 662º do Código de Processo Civil, ou seja e em concreto, com a rejeição da impugnação, ou com a indevida omissão de reavaliação da juízo de facto emitido em 1ª instância, ou ainda com a ausência da sua explicação fundamentada, em sede de motivação do decidido.

Concretamente, aquilo de que a recorrente discorda, a pretexto da avocação do artigo 662º do Código de Processo Civil e dos princípios gerais de negação do direito a um processo justo e equitativo, é do próprio conteúdo e sentido da reapreciação de factos que foram adoptados pelo acórdão recorrido, entendendo que os elementos à disposição do Tribunal (mormente a prova documental e testemunhal que foi produzida e é por si referenciada) imporiam, a seu ver, decisão diversa daquela que foi proferida.

Ou seja, sustenta que os depoimentos produzidos pelas testemunhas inquiridas (que aliás transcreve no seu recurso de revista) e a análise dos documentos que tiveram lugar - ou que poderiam ter tido lugar e não tiveram -, determinariam por si só uma resposta diversa e antagónica em relação ao veredicto “provado” que ambos os pontos de facto, a seu ver indevidamente, receberam.

O que equivale a discutir e consequentemente discordar do mérito do juízo de facto autónomo de que o Tribunal da Relação ... se socorreu.

Acrescenta ainda a recorrente que a fundamentação utilizada no acórdão recorrido não lhe permite compreender a improcedência da sua impugnação quanto a esta matéria, que aliás constitui apenas um breve segmento do conjunto total, muitíssimo mais amplo, dos pontos de facto impugnados (16º, 18º, 21º, 30º, 41º, 42º, 43º, 44º, 53º, 55º, 56º, 71º, 72º, 77º, 78º, 82º, 85º, 87º, 94º, 98º), e que foram, em termos formais, individualmente apreciados pelo Tribunal da Relação com esparsa referência à análise dos meios de prova (descrição dos depoimentos produzidos e referência ao valor da prova documental junta).

Pelo que esta apontada insuficiência enquadra-se, mais uma vez, no âmbito da legítima discordância relativamente ao que foi decidido sobre os pontos 16º e 18º dos factos provados, e nada mais do que isso.

Em suma, o que verdadeiramente constitui objecto da presente revista normal não consiste, em substância e efectivamente, no incorrecto exercício dos poderes de facto por parte do Tribunal da Relação, tal como se encontra previsto no artigo 662º do Código de Processo Civil, mas na frontal divergência, que profusamente manifestou, contra a concreta decisão tomada nessa sede e que incluiu, com a completude necessária e suficiente, o conhecimento da sua impugnação de facto quanto a dois pontos especificamente localizados (o 16º e o 18º), acompanhada da respectiva fundamentação, objectivamente compreensível.

Ora, quanto a esta matéria – discussão da matéria de facto provada e não provada -, carece o Supremo Tribunal de Justiça da necessária competência, conforme resulta expressamente do disposto no artigo 662º, nº 4, do Código de Processo Civil, bem como do preceituado nos artigos 674º, nº 3 e 683º, nº 2, do mesmo diploma legal, não sendo a revista normal admissível.

Pelo que não assiste razão à recorrente/reclamante.

O que significa que se constituiu in casu dupla conforme nos termos do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil, impeditiva da interposição de revista normal prevista no artigo 671º, nº 1, do Código de Processo Civil.

A única via para a possibilidade do conhecimento pelo Supremo Tribunal de Justiça da presente revista consiste na figura da revista excepcional, genericamente prevista no artigo 672º do Código de Processo Civil, de que a recorrente, igualmente e a título subsidiário, se socorreu.

Em suma, competirá à Formação ajuizar da admissibilidade da revista excepcional em conformidade com o disposto no artigo 672º, nº 3, do Código de Processo Civil.

Serão os autos, por isso mesmo, enviados à Formação, não havendo cabimento para a admissibilidade da revista normal.

Pelo exposto, acordam, em Conferência, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em considerar inadmissível a interposição de revista normal e ordenar a remessa dos autos à Formação, nos termos do artigo 672º, nº 3, do Código de Processo Civil, com vista à apreciação dos pressupostos da revista excepcional."

[MTS]