"3.1. A questão a resolver é saber se a sentença recorrida fez a correcta aplicação do direito quando considerou incompetente em razão da matéria para conhecer da acção o Juízo Central Cível ..., em detrimento do Juízo do Trabalho.
Os arts. 64º e 65º do CPC estabelecem:
«São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.»; «As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada.».
Tal princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais resulta do disposto pelo art. 211º, 1, da CRP: «Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais». E encontra ainda tradução no art. 40º, 1, da Lei 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário: LOSJ)
Assim, a LOSJ prescreve, no seu art. 117º, a competência dos juízos centrais cíveis:
«1 – Compete aos juízos centrais cíveis:
a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50 000,00;
b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a € 50 000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;
c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência;
d) Exercer as demais competências conferidas por lei.
2 – Nas comarcas onde não haja juízo de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às ações que caibam a esses juízos.
3 – São remetidos aos juízos centrais cíveis os processos pendentes em que se verifique alteração do valor suscetível de determinar a sua competência.»
Por seu turno, o art. 126º da LOSJ prevê a competência, em matéria cível, dos juízos do trabalho:
«1 – Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível: [...]
c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais; [...]
3.2. É sabido e reconhecido que a competência em razão da matéria se afere pela natureza da relação jurídica tal como é apresentada pelo autor na petição inicial, ou seja, pela correlação entre o pedido e a causa de pedir [...]
No caso, o pedido de condenação feito estriba-se num direito de regresso da indemnização satisfeita, salvaguardado por lei, numa situação de responsabilidade agravada por comportamento causante do sinistro laboral – neste caso, alega-se, da sociedade alegadamente beneficiária da prestação de trabalho nas suas instalações pelo sujeito sinistrado e segurado –, uma vez pagos os danos pela seguradora da entidade patronal empregadora (tomadora do seguro obrigatório relativo ao trabalhador sinistrado em sede de reparação de danos emergentes de acidentes de trabalho ou doenças profissionais: art. 283º, 1, 5, Código do Trabalho). Assim, a causa de pedir – composta pelos factos “necessários para individualizar a pretensão material alegada pelo autor” e “para a qual requer, através do pedido que formula, uma forma de tutela jurídica” em juízo, factos esses que “devem ser subsumíveis a uma regra jurídica”, “isto é, “factos construídos como tal por uma regra jurídica” [...]: art. 5º, 1, CPC) – integra um núcleo factual orientado à pretensão resultante da conjugação dos arts. 18º, 1, e 79º, 3, da Lei 98/2009 (regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais). Com isso pretende-se determinar a existência de actuação culposa ou com violação normativa da mesma Ré à luz do âmbito subjectivo de responsabilização do art. 18º, 1 [...], e, em caso de procedência, conceder-se a restituição dos montantes atribuídos e pagos ao lesado segurado, em primeira linha, pela seguradora da sua entidade patronal «Macmencbr» (v. arts. 7º e 79º, 1 e 3, da Lei 98/2009).
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O referido art. 18º, 1, prescreve:
«Quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais.»
Depois, o art. 79º, 3, consagra:
«Verificando-se alguma das situações referidas no artigo 18.º, a seguradora do responsável satisfaz o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse actuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso.»
Desta forma, a Autora pretende discutir um direito de crédito restitutivo ou reintegrativo, fundado na responsabilidade por alegado incumprimento por parte da Ré «Sonae Arauco» das «regras sobre segurança e saúde no trabalho», após pagamento dos prejuízos e despesas originados no sinistro laboral, seja por força do processo especial de acidente de trabalho, seja por cumprimento da sentença proferida nesse processo, no âmbito do contrato de seguro celebrado com a tomadora do seguro, entidade patronal do trabalhador sinistrado.
Como direito de regresso que é – abrangido, como refracção sectorial (prevista em «legislação especial»), pela norma geral do art. 144º do DL 72/2008, de 16 de Abril (regime jurídico do contrato de seguro), distinta da solução de “subrogação legal” pelo segurador prevista no art. 136º desse regime [...]–, é um direito nascido ex novo na titularidade daquele que, com o pagamento das indemnizações e despesas cobertas pela apólice do seguro celebrado, extinguiu a relação creditória-indemnizatória anterior e à custa de quem essa relação foi considerada extinta [...]. Não obstante, a constituição desse direito está condicionado pela averiguação dos pressupostos de imputação e responsabilidade do acidente de trabalho à aqui 1.ª Ré, enquanto beneficiária da prestação laboral do sinistrado, tendo em conta, especialmente, a sua integração numa das categorias de sujeitos referidos no art. 18º, 1, e, por isso, a sua sujeição ao cumprimento das normas sobre segurança e saúde no trabalho no seu espaço físico de actuação.
O busílis da acção regressiva é, portanto, averiguar da factualidade inerente ao acidente de trabalho – definido no art. 8º, 1, da Lei 98/2009, em conjunto com o art. 283º, 3, do Código do Trabalho – e à sua relevância jurídica em termos de desconformidade com o quadro normativo-legal em sede de segurança laboral. Por outras palavras, há que apurar a responsabilidade da 1.ª Ré – se integrada no elenco de sujeitos do art. 18º, 1 – na ocorrência do sinistro e, por tal forma, circunscrever factualmente as circunstâncias de geração e realização do acidente de trabalho caracterizado enquanto tal, a fim de decretar ou não a obrigação de cumprir o direito regressivo alegado pela Autora, seguradora (por transferência da responsabilidade pela reparação a cargo da entidade patronal do sinistrado) e pagante das indemnizações decretadas. [...]
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Em abono internormativo, note-se que é o próprio Código de Processo do Trabalho que, no respectivo art. 154º, impõe:
«1 – O processo destinado à efectivação de direitos conexos com acidente de trabalho sofrido por outrem segue os termos do processo comum, por apenso ao processo resultante do acidente, se o houver.
2 – As decisões transitadas em julgado que tenham por objecto a qualificação do sinistro como acidente de trabalho ou a determinação da entidade responsável têm valor de caso julgado para estes processos.»