"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/12/2022

Jurisprudência 2022 (89)


Atribuição da casa de morada de família;
irregularidade processual


1. O sumário de RL 24/3/2022 (950/21.0T8SXL-A.L1-2) é o seguinte:

I - Tendo sido apresentado, na pendência da ação de divórcio, requerimento em que é peticionada a fixação de um regime provisório de utilização da casa de morada de família, com referência (incorreta) ao art. 1407.º, n.º 7, do CPC e indicação de que seria para apensar àquela ação, é fora de dúvida que se está perante a dedução do incidente previsto no art. 931.º, n.º 7, do CPC, não se podendo considerar verificado um erro na forma do processo, nem sequer na qualificação do meio processual, mas tão só uma irregularidade, que é retificável mediante a incorporação de todo o processado por apenso nos autos de divórcio.

II - Pese embora tal retificação apenas tenha sido determinada na decisão final do incidente, quando o tribunal se apercebeu dessa irregularidade, a mesma não gera nenhuma nulidade processual, pois é insuscetível de influir no exame ou na decisão da causa (cf. art. 195.º, n.º 1, do CPC), pela simples razão de que o processado que foi seguido em nada diferiu do que haveria de ter sido observado se logo, no despacho liminar, se tivesse, ao abrigo do disposto no art. 6.º do CPC, feito a correção necessária. Como foi observada uma tramitação que seria adequada à prolação de decisão definitiva sobre a atribuição da casa de morada da família, ainda que se verificasse um erro na forma do processo, jamais conduziria à anulação de todo o processado, que poderia ser aproveitado na íntegra sem qualquer diminuição de garantias do Réu.

III - Tendo o Tribunal, aquando da inquirição das testemunhas, decidido, por despacho exarado em ata, que o Requerido se encontrava devidamente citado, despacho de que ele, ora Apelante, teve conhecimento, tanto assim que até o citou na íntegra na sua alegação de recurso, não interpondo recurso do mesmo, o qual transitou em julgado (cf. art. 620.º do CPC), é inadmissível, no recurso que é interposto unicamente da sentença, julgar verificada uma nulidade processual contrariando o que foi antes decidido e passou em julgado em primeiro lugar (cf. art. 625.º do CPC).

IV - Ainda que assim não fosse, seria de convocar o disposto no art. 189.º do CPC, concluindo-se que, mesmo que existisse uma falta de citação do Requerido, sempre estaria sanada a (eventual) nulidade processual daí resultante, considerando que, conforme consta da respetiva ata, esteve presente na tentativa de conciliação sem arguir então qualquer nulidade por falta de citação, tendo sido explicitamente notificado e advertido de que podia deduzir oposição no prazo de 10 dias, apenas não recebendo na altura cópia do requerimento inicial porque se decidiu ausentar antes de a diligência ter sido declarada encerrada.

V - A invocada “omissão da análise crítica dos meios probatórios produzidos” não constitui a causa de nulidade da sentença prevista no art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, mas, quando muito, poderia levar a que fosse determinado ao tribunal de 1.ª instância que fundamentasse devidamente a decisão sobre alguns factos essenciais para o julgamento da causa, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados (cf. art. 662.º, n.º 2, al. d), do CPC), o que, no caso, não se justifica, face à motivação sucinta constante da decisão recorrida e ao mais que foi explanado no despacho proferido ao abrigo do disposto no art. 617.º, n.º 1, do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1.ª questão – Do erro na forma do processo

Da decisão recorrida consta um saneador tabelar, no qual se refere, além do mais que

Inexistem quaisquer outras nulidades, exceções dilatórias ou questões prévias que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa”. Ademais, na parte final da decisão recorrida consta o seguinte: “Verifico agora que o presente processo não se trata de ação não provisória para atribuição da casa de morada de família, mas de incidente provisório de atribuição da casa de morada de família. Aquele corre por apenso ao divórcio, nos termos do art. 990. n. 4 do CPC e este corre nos próprios autos nos termos do art. 931, n. 7 do CPC.

Assim sendo, após trânsito, incorpore os presentes autos no divórcio.

O Apelante defende que deve ser declarada a nulidade da sentença [!] por erro na forma do processo, argumentando, em síntese, que: o incidente de atribuição da casa de morada de família previsto no art. 990.º do CPC constitui procedimento distinto daquele que visa regular a utilização da casa de morada de família durante a pendência do processo de divórcio, nos termos previstos no art. 931.º, n.º 2, do CPC; verifica-se um erro na forma do processo, que consubstancia nulidade processual de conhecimento oficioso (cf. arts. 193.º e 196.º do CPC), por não ser possível o aproveitamento de qualquer dos atos praticados, impondo-se declará-los anulados e indeferir liminarmente a petição inicial.

Vejamos.

Sobre o erro na forma do processo ou no meio processual preceitua o art. 193.º do CPC que:

“1 - O erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.
2 - Não devem, porém, aproveitar-se os atos já praticados, se do facto resultar uma diminuição de garantias do réu.
3 - O erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados.”

A nulidade de todo o processo nas situações previstas no citado n.º 2 constitui, como é sabido, uma exceção dilatória de conhecimento oficioso – cf. artigos 193.º, 278.º, n.º 1, al. b), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. b), e 578.º do CPC.

Preceitua o art. 931.º, n.º 7, do CPC (que corresponde ao art. 1407.º, n.º 7, do anterior CPC), que “(E)m qualquer altura do processo, o juiz, por iniciativa própria ou a requerimento de alguma das partes, e se o considerar conveniente, pode fixar um regime provisório quanto a alimentos, quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais dos filhos e quanto à utilização da casa de morada da família; para tanto, o juiz pode, previamente, ordenar a realização das diligências que considerar necessárias.”

Trata-se de meio processual de natureza incidental, ao qual se aplicam as regras dos artigos 292.º a 295.º do CPC, destinando-se à obtenção de decisão meramente provisória, para vigorar na pendência do processo de separação judicial ou divórcio que corre termos.

A respeito desta matéria, merece destaque o artigo de Nuno Salter Cid, “Sobre a atribuição judicial provisória do direito de utilizar a casa de morada da família”, publicado na Revista JULGAR n.º 40, Janeiro/Abril 2020, Almedina, págs. 49-72, em que, além do mais, afirma que se está perante incidente a suscitar no âmbito de processo de jurisdição contenciosa e que “(D)e processual o preceito não contém – mas seria útil que contivesse – a indicação da natureza do incidente e/ou da tramitação a que deve submeter-se. E não há consenso quanto à matéria. O legislador terá porventura considerado bastantes os aludidos tons de jurisdição voluntária, que indirectamente remeteriam o intérprete para as regras gerais hoje estabelecidas nos arts. 986.º a 988.º CPC e nos arts. 292.º a 295.º CPC (cf. art. 986.º, nº 1).” (cf. pág. 56).

Não se confunde este incidente com o processo de jurisdição voluntária de atribuição da casa de morada da família regulado no art. 990.º, mas ao qual se aplicam igualmente, por força do disposto no art. 986.º, n.º 1, as disposições dos artigos 292.º a 295.º do CPC.

Ora, no caso em apreço, apesar dos lapsos da Requerente aquando da apresentação do requerimento inicial, ao aludir a preceito do anterior Código de Processo Civil e, sobretudo, ao requerer a apensação nos autos principais de divórcio, não há dúvida alguma que a sua pretensão se reconduz ao incidente previsto no art. 931.º, n.º 7, do CPC.

O requerimento inicial não estava afetado de erro na forma do processo, nem sequer na qualificação do meio processual, que se mostrava correto, verificando-se apenas uma irregularidade que consistiu em ter sido indicado que o incidente devia ser tramitado por apenso, quando, em bom rigor, tal requerimento deveria ter sido incorporado no processo de divórcio, sendo aí processado autonomamente.

Essa irregularidade não gera nenhuma nulidade processual, pois é insuscetível de influir no exame ou na decisão da causa (cf. art. 195.º, n.º 1, do CPC), pela simples razão de que o processado que foi seguido não diferiu do que haveria de ter sido observado se logo, no despacho liminar, se tivesse, ao abrigo do disposto no art. 6.º do CPC, feito a correção necessária, considerando a aplicabilidade das regras dos artigos 292.º a 295.º do CPC.

Aliás, como bem se explica no despacho da 1.ª instância proferido ao abrigo do disposto no art. 617.º do CPC, a posição do Réu até ficou mais acautelada, já que foi observada uma tramitação que seria adequada à prolação de decisão definitiva sobre a atribuição da casa de morada da família. Por isso, ainda que se verificasse um erro na forma do processo (o que não é o caso), jamais conduziria à anulação de todo o processado, que poderia ser aproveitado na íntegra sem qualquer diminuição de garantias do Réu (muito pelo contrário).

Nenhuma censura nos merece, pois, neste conspecto, a decisão recorrida, por não ter julgado verificada uma tal exceção dilatória, nos termos conjugados dos artigos 193.º e 577.º, al. b), do CPC, mas tão só determinado a incorporação do processado nos autos principais de divórcio."

[MTS]