"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/03/2024

Jurisprudência 2023 (128)


Processo de inventário;
oposição; facto superveniente


1. O sumário de RC 30/5/2023 (773/17.1T8LMG-E.C1) é o seguinte: 

I- O artigo 1104 do C.P.C., na redacção introduzida pela Lei nº 117/2019 de 13 de Setembro, prevê, no seu nº1, um prazo único e preclusivo de 30 dias, para cada interessado directo na partilha deduzir todos os meios de defesa ao inventário, impugnar os créditos e as dívidas da herança ou deduzir reclamação à relação de bens apresentada.

II- O decurso deste prazo não obsta a que o interessado possa vir ainda requerer o aditamento de novas verbas ou impugnar as verbas constantes da relação de bens, com fundamento em superveniência objectiva ou subjectiva, nos termos e com os limites previstos no artº 588 do C.P.C., quer porque os factos que fundamentam essa reclamação são supervenientes, quer porque não o sendo, o interessado apenas teve conhecimento destes factos depois de decorrido o prazo para apresentar reclamação à relação de bens.

III- A partilha do património comum dos ex-cônjuges, visa por termo à situação de comunhão, entregando a cada cônjuge os seus bens próprios, atribuindo-lhe a sua meação nos bens comuns, mas conferindo cada um deles, em operação prévia, o que dever à massa comum (cfr. artº 1689 do C.C.).

IV- O acordo homologado pelos ex-cônjuges, nos termos do qual a utilização das fracções sobre as quais incidia o crédito hipotecário era atribuída ao cabeça-de-casal, até à partilha, respondendo este pelo pagamento do crédito hipotecário sem direito de regresso sobre o outro cônjuge, embora não oponível ao banco credor, constitui um acordo válido, por não violar norma de natureza imperativa (vg. a prevista no artº 1691, nº1, a) do C.C.) e vinculativo para os ex-cônjuges (artº 405, 406 e 762 do C.C.).

V- O incumprimento deste acordo pelo cabeça-de-casal, constitui um enriquecimento do património próprio deste cônjuge, à custa do património comum na medida do valor das prestações vencidas e não pagas e correspondentes juros e outras quantias devidas ao credor hipotecário até á partilha do imóvel e constitui o cônjuge incumpridor na obrigação de compensar o património comum, por esse valor.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Insurge-se a apelante contra o despacho que indeferiu a reclamação por si apresentada requerendo o aditamento de duas novas verbas não relacionadas pelo cabeça-de-casal, alegando em suma que estas verbas decorrem da violação do acordo, homologado por sentença de divórcio, do qual resultou a obrigação “inter partes” do cabeça-de-casal de proceder ao pagamento do crédito hipotecário até à partilha sem direito de regresso, resultando uma dívida para o património comum do incumprimento dessa obrigação e que estes factos são supervenientes ao termo do prazo para reclamação de bens.

O requerimento para aditamento de duas novas verbas apresentado pela interessada ora recorrente não foi admitido pelo tribunal a quo, por entender tratar-se de uma nova reclamação à relação de bens apresentada, não admissível e por decorrido o prazo para reclamar, previsto no artº 1104, nº1, d) do C.P.C.

Contrapõe a recorrente que o aditamento de duas novas verbas se justifica por a dívida do cabeça-de-casal que ora se pretende relacionar ser superveniente à fase para reclamação de bens e por em qualquer caso ser necessária à operação de liquidação e justa composição dos quinhões na partilha, beneficiando o cabeça-de-casal da fruição de património comum, sem nada pagar ao outro titular deste património e sem cumprir o acordo outorgado na acção de divórcio.

Decidindo:

Resulta do disposto no artº 1104, nº1, al, d) do C.P.C. (na redacção introduzido pela Lei 117/2019 de 13 de Setembro, aplicável aos autos em apreço) que requerido o inventário com indicação dos elementos referidos no nº2 do artº 1097 e com junção dos documentos referidos no nº3, incluindo a relação dos bens sujeitos a inventário e dos créditos e das dívidas da herança ou do património comum, citados os interessados diretos na partilha, estes podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação, opor-se ao inventário, impugnar a legitimidade dos interessados ou a competência do cabeça-de-casal, apresentar  reclamação à relação de bens apresentada pelo requerente do inventário ou pelo cabeça-de-casal (nos termos dos artsº 1097, nº2, al. c) e 1099, al. c) do C.P.C.) e impugnar os créditos e as dívidas da herança ou do património comum.

Na reclamação à relação de bens a apresentar, pode o reclamante invocar a insuficiência ou o excesso dos bens relacionados, a inexactidão da sua descrição, ou o valor que lhes foi atribuído.

Prevê-se neste preceito legal, ao contrário do que ocorria no âmbito do anterior Regime Jurídico do Processo de Inventário (artº 30) e nos artºs 1343 e 1348 do anterior C.P.C. (até à alteração introduzida pela Lei nº 23/2013 de 05/03) um prazo único de 30 dias para os interessados directos na partilha, deduzirem todos os meios de defesa ao inventário, impugnarem os créditos e as dívidas da herança ou deduzirem reclamação à relação de bens apresentada.

O decurso deste prazo que, ao contrário do previsto na acção declarativa (cfr. artº 569 nº2 do C.P.C.)  corre autonomamente para cada interessado, preclude este direito de oposição e conduz à estabilização no processo dos elementos elencados na fase dos articulados. Preclude, ainda, o direito de qualquer interessado apresentar reclamação à relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal ou impugnar os créditos a as dívidas da herança.

Trata-se de alteração relevante introduzida pela Lei nº 117/2019 ao anterior regime de inventário. Ao definir fases perfeitamente delimitadas no processo de inventário visou evitar que, à semelhança do que ocorria no âmbito do artº 1048 do anterior C.P.C., se pudessem dissociar as fases de oposição ao inventário da fase de reclamação da relação de bens, dissociação que permitia a possibilidade que resultava do nº 6 deste preceito legal de a reclamação de bens poder ser apresentada findo o prazo concedido aos interessados (10 dias após a notificação da relação de bens, cfr. resultava do seu nº1), a qualquer altura e ainda que já proferido despacho determinativo da forma de partilha, com a única cominação de o interessado ser sujeito a multa, “excepto se demonstrar que a não pôde oferecer no momento próprio, por facto que não lhe é imputável”.

Conforme assinala o Ac. do STJ de 24/09/2020 [Proferido no proc. nº 3860/10.3TJCBR-B.C1.S1, de que foi relator Oliveira Abreu.], esta expressão “posteriormente” significava “que a reclamação de bens “pode ser apresentada a “qualquer altura”, daí que as reclamações contra a relação de bens podem sempre ter lugar até ao trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha, em homenagem ao princípio da verdade material, que em processo de inventário chega ao extremo de conduzir à possibilidade de emenda ou de anulação da partilha mesmo depois do trânsito em julgado da respetiva sentença homologatória." [No sentido de que o direito de reclamar, preclude após decisão do incidente de reclamação, transitada em julgado, vide Ac. do TRG de 07/01/2016, proferido no proc. nº 252/11.0TBTML-B.G1, de que foi relatora Maria Luísa Ramos, segundo o qual “reportando-se o n.º 6 do artigo 1348º do Código de Processo Civil, a novas reclamações contra a relação de bens, ainda não deduzidas, nem decididas, pois que não sendo o prazo estabelecido no n.º1 do art.º 1348º do Código de Processo Civil preclusivo do direito de reclamar atento o disposto no n.º 6 do indicado artigo, já o será a faculdade de reclamar após decisão do incidente transitada em julgado.”]

O legislador reconhecendo que esta possibilidade introduzia um elemento acrescido de mora na partilha dos bens e de indefinição dos bens a partilhar veio, por intermédio deste diploma, concentrar a fase das reclamações no âmbito da oposição ao inventário. Conforme refere Teixeira de Sousa et al. [TEIXEIRA DE SOUSA, Miguel, LOPES DO REGO, Carlos, ABRANTES GERALDES, António e TORRES, Pedro Pinheiro, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina 2020, pág. 81.], “este ónus de concentração das reclamações contra a relação de bens no âmbito da oposição ao inventário é a consequência de a fase inicial do processo se não encerrar sem que se mostre apresentada pelo cabeça-de-casal a relação de bens.” e sem que se definam os bens a partilhar.

Nestes termos, decorrido o prazo previsto no artº 1104, nº1, do C.P.C. e decidida a reclamação apresentada, apenas por via da partilha adicional ou da rectificação da partilha se poderia vir aditar bens não partilhados ou rectificar bens indevidamente partilhados. [No sentido de poder ser suscitado nos autos por qualquer interessadoo erro na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro suscetível de viciar a vontade das partes, (…) independentemente do acordo dos restantes, depois de esgotado o prazo previsto no art.º 1104.º, do C. P. Civil, antes da emenda à partilha prevista no art.º 1126.º, do C. P. Civil, seguindo a forma processual dos incidentes da instância, por aplicação por analogia do disposto neste art.º 1126.º, do C. P. Civil.,” vide o Ac. do TRL de 26/05/2022, de que foi relator Orlando Nascimento, proferido no proc. nº 17/21.1T8SCF.L1-2.]

No entanto, a preclusão do direito de apresentar reclamação de bens, não impede a possibilidade de vir ainda a ser apresentada esta reclamação, com fundamento em superveniência objectiva ou subjectiva, nos termos previstos no artº 588 do C.P.C., quer porque os factos que fundamentam essa reclamação são supervenientes, quer porque não o sendo, o interessado apenas teve conhecimento destes factos depois de decorrido o prazo para apresentar reclamação à relação de bens [Neste sentido vide Ac. desta Relação de 10/01/2023, proferido no proc. nº 1001/21.0T8PBL.C1, de que foi relatora Maria João Areias, no qual se defende que “Com a reforma da Lei 117/2019, prevendo o artigo 1104º um prazo único de 30 dias para a dedução de contestação ao requerimento inicial do inventário e para o articulado apresentado pelo cabeça de casal nos termos do art. 1102º, e eliminada a norma que permitia que as reclamações contra a relação de bens fossem apresentadas posteriormente, decorrido aquele prazo de 30 dias, precludida fica a faculdade de apresentar reclamação contra a relação de bens. II – Ressalvada a possibilidade de partilha adicional a que se reporta o artigo 1129º CPC, e sob pena de perturbações na marcha do processo de inventário, que o legislador pretendeu expressamente evitar, a possibilidade de reclamação posterior encontrar-se-á sujeita às regras gerais do processo, pela via de articulado superveniente a que se reporta o artigo 588º do CPC, ou seja, em caso de superveniência subjetiva ou objetiva.” No mesmo sentido vide ainda Ac. do TRG de 22/09/2022 proferido no proc. nº 5044/20.3T8BRG-B.G1, de que foi relator Pedro Maurício.], mas sempre tendo como limite temporal o do encerramento da discussão, no caso em apreço o da sentença homologatória da partilha.  

É precisamente essa superveniência que é invocada e a este respeito tem a apelante inteira razão. Os factos constitutivos da invocada dívida do cabeça-de-casal ao património comum, ou seja, o incumprimento pelo cabeça-de-casal do acordo celebrado com a recorrente com o consequente avolumar da dívida que onera o património comum, ocorreram após o termo do prazo para apresentar reclamação à relação de bens, sendo assim factos supervenientes.

Não tendo existido ainda decisão homologatória da partilha, sequer conferência de interessados, não se verificam nenhum dos obstáculos à invocação de factos supervenientes constantes do artº 588 nº1 e 2 do C.P.C.

Acresce que estes factos que ora se invocam, não são irrelevantes para partilha do património comum dos cônjuges que é constituído não só pelos bens sujeitos a partilhar, mas também pelas dívidas que oneram este património ou um determinado bem do património, como é o caso do crédito hipotecário, ora invocado, tendo em conta o direito conferido a este credor de se fazer pagar pelo valor da coisa hipotecada, com preferência dos demais credores (cfr. artº 686 do C.C.) e o direito de exigir no inventário, o imediato pagamento das dívidas que se mostrem vencidas e não pagas, conferido por via do disposto no artº 1106, nº 5 do C.P.C.

Não sendo o crédito hipotecário pago em data anterior à partilha e não sendo remidos os direitos de terceiro, conforme previsto no artº 2099 do C.C., resulta do disposto no artº 2100, nº1 do C.C., aplicável ex vi do artº 1788 do mesmo diploma legal que, entrando os bens onerados na partilha, o crédito hipotecário é descontado do valor do bem e será suportado exclusivamente pelo adjudicante, sem prejuízo de não se efectuando a remissão existir direito de regresso contra os demais pelo que houver pago. [...]

No entanto, o acordo alcançado entre os interessados no que se reporta ao pagamento do crédito hipotecário, vigora nas relações internas, não sendo oponível nas relações entre esses interessados e o credor, na ausência de um consentimento expresso do credor de transmissão da dívida hipotecária apenas para um dos ex-cônjuges, com exoneração do outro. [...]

O que ocorreu nos presentes autos, sendo reclamado pelo credor hipotecário o pagamento imediato da dívida vencida, nos termos previstos no artº 1106 nº5 do C.C., nomeadamente pela venda de bens do património comum, quer do bem onerado com a garantia, tendo em conta o disposto no artº 686 do C.C. e 752 do C.P.C., quer de outros bens, pois que “face ao princípio geral estatuído no art.º 601.º do Código Civil, a hipoteca sobre um certo bem não exclui que, pelo cumprimento da obrigação mutuária, respondam outros bens dos devedores, susceptíveis de penhora, sendo possível e lícita a demanda e a penhora de bens de qualquer ou em conjunto dos ex-cônjuges.

Se assim é em face do credor hipotecário, nas relações internas o acordo homologado pelos ex-cônjuges, nos termos do qual a utilização das fracções sobre as quais incidia o crédito hipotecário era atribuída ao cabeça-de-casal, até à partilha, respondendo este pelo pagamento do crédito hipotecário sem direito de regresso sobre o outro cônjuge, vincula os ex-cônjuges nos seus precisos termos (artº 405, 406 e 762 do C.C.), sendo certo que a sua validade não é posta em causa. Com efeito, se a estipulação destes acordos entre os cônjuges não encontra expressa previsão na lei, é igualmente certo que não viola regra imperativa, nomeadamente a imposta pelo artº 1691, nº1 a) do C.C., pois que perante o credor respondem ambos os cônjuges, o que não impede que nas relações internas estipulem de forma diversa em especial quando um dos cônjuges ficou beneficiado com a utilização do bem onerado com a dívida. [A este respeito, vide DUARTE PINHEIRO, “O Direito da Família contemporâneo “ pág. 472, no sentido que o critério da contribuição proporcional não tem carácter imperativo, podendo ser fixado de forma diversa pelos cônjuges e pelos ex-cônjuges finda a comunhão conjugal.]

Assim se decidiu em Acórdãos da Relação de Lisboa de 24/06/21 [Proferido no proc. nº 2138/20.9T8PDL.L1-6, de que foi relatora Gabriela Marques.] e de 28/02/2003 [Proferido no proc. nº 1301/21.0T8PDL.L1-7, de que foi Relatora Cristina Silva Maximiano.], o primeiro defendendo que o acordo pelo qual um dos cônjuges fica obrigado ao pagamento do crédito hipotecário como contrapartida da utilização da casa de morada da família, deve ser tido em conta “no âmbito da partilha e na consideração de existência ou não de compensação operada nessa altura entre os ex-cônjuges.”, o segundo defendendo que o cônjuge que procedeu ao pagamento integral das prestações do crédito à habitação, como contrapartida da utilização da casa de morada de família, que lhe foi atribuída, não pode pedir a compensação destes valores no inventário. Em ambos os casos é defendida a validade de tais acordos, por celebrados ao abrigo do princípio da autonomia privada e não violarem norma de natureza imperativa.

A partilha do património comum dos ex-cônjuges, visa por termo à situação de comunhão, entregando a cada cônjuge os seus bens próprios, atribuindo-lhe a sua meação nos bens comuns, mas conferindo cada um deles, em operação prévia, o que dever à massa comum. Só após ocorrerá a partilha do activo comum líquido que resultar destas operações (artº 1689, nº1 do C.C.)    

Assim sendo, é na fase de liquidação da comunhão que deve ser apurado o activo e o passivo, pois como se assinala no Ac. do TRL de 24/06/2021 citado, esta “liquidação visa determinar e avaliar a massa a partilhar. É o activo que se partilha, mas, sempre que possível, o activo líquido, deduzindo-se o passivo - as dívidas da comunhão.”

Acresce que, em relação às dívidas comuns que responsabilizem ambos os cônjuges, resulta do nº2 deste preceito legal que estas são pagas em primeiro lugar até ao valor do património comum, conferindo o direito ao credor que tenha pago a mais o direito de obter a compensação pelas forças do património comum.

Se assim é, o acordo celebrado pelos ex-cônjuges mediante o qual só um deles procederia ao pagamento do empréstimo bancário, como contrapartida da fruição do imóvel até à partilha e sem direito de regresso sobre o outro cônjuge, impede o cônjuge que se obrigou a este pagamento de pedir a compensação do que pagou e o incumprimento deste acordo constitui um enriquecimento do património próprio deste cônjuge, à custa do património comum (constituído pelos bens a partilhar e pelas dívidas e créditos deste património) na medida do valor das prestações vencidas e não pagas e correspondentes juros e outras quantias devidas ao credor hipotecário e constitui o cônjuge incumpridor na obrigação de compensar o património comum (pois que constitui em bom rigor, um crédito deste património e não do outro cônjuge), na fase da liquidação da comunhão, pelo valor correspondente às quantias referentes às prestações do crédito hipotecário que se vinculou a pagar e que não pagou, até à data da partilha do imóvel, acrescidas dos juros e outras quantias legalmente devidas."

[MTS]