"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/03/2024

Jurisprudência 2023 (127)


Impugnação da perfilhação;
teste de ADN; direito à prova


1. O sumário de RC 13/6/2023 (1207/22.5T8FIG.C1) é o seguinte: 

I – Nos processos de averiguação de paternidade, os testes de ADN, feitos através da recolha de sangue ou saliva, equivalem a uma prova plena, do ponto de vista científico, no que concerne à filiação biológica.

II – Tendo sido possível concluir em processo de averiguação oficiosa de paternidade, através de oportuno teste de ADN, que a probabilidade de o ora A. em ação de impugnação de paternidade ser o pai biológico do ora 2º R. e anteriormente investigante, era 99,99999997% [que corresponde a “paternidade praticamente provada” segundo a escala de Hummel], sendo certo que entidade oficial que realizou esse exame certifica a plena e atual validade desse teste e dos seus resultados, a realização de novo teste de ADN [ainda que com acrescidos marcadores genéticos, rectius, estudo mais vasto dos STR (Short Tandem Repeats) dos cromossomas autossómicos], constituiria um meio de prova inútil e despiciendo.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Cumpre [...] entrar na apreciação da questão [...]  enunciada, a saber, desacerto da decisão, porquanto «O Tribunal a quo não poderia decidir o objeto do litígio só com a prova carreada para os autos ate ao momento da prolação da sentença», sendo que tal decisão também viola o artigo 20º da CRP [princípio da justa composição do litígio e da igualdade das partes litigantes].

Cremos que a resposta a esta questão se constitui como linear e inabalável.

Com efeito, não vislumbramos como questionar o caráter determinante, decisivo e inabalável que foi conferido à prova pericial que já estava efetuada, mais concretamente ao resultado do relatório de exames hematológicos, a que se submeteram o aqui Autor, o ora segundo Réu  (então menor de idade) e a mãe deste (ora primeira ré), no âmbito do processo de averiguação oficiosa de paternidade n.º 379/03...., no qual se concluiu perentoriamente pela paternidade do ora Autor [Referindo-se à paternidade do ora Autor perante o ora segundo Réu, o resultado foi que «A análise estatística conduziu a um índice de paternidade IP=3491923145 e a uma probabilidade de paternidade W=99,99999997%, que corresponde a “paternidade praticamente provada” segundo a escala de Hummel» [cf. facto “provado” sob “3.”].].   

É que, na verdade, a perícia através de testes de ADN é verdadeiramente, na atualidade, o meio de prova com maior fiabilidade e grau de certeza, devendo consequentemente, pelo seu caráter decisivo, ser eleito o meio probatório primordial.

Nesta linha de entendimento, vem sendo incontroversamente sustentado que «Nos processos de averiguação de paternidade, os testes de ADN, feitos através da recolha de sangue ou saliva, equivalem a uma prova plena, do ponto de vista científico, no que concerne à filiação biológica.» [Assim no ac. do TRP de 10.02.2016, proferido no proc. nº 2947/12.2TBVLG-B.P1, acessível em www.dgsi.pt/jtrp.]

Com efeito, permitem os testes de ADN que hoje se realizam uma grande segurança no esclarecimento de situações mais dúbias e a descoberta da verdade, donde, importará concluir no sentido de serem os testes de ADN uma prova plena da paternidade do ponto de vista científico, ou seja, do ponto de vista da realidade factual. [Cf. ac. do STJ de 17.5.2016, proferido no proc. nº  8928/11.6 TBOER.L2.S1, disponível em www.dgsi.pt/jstj.]

Isto porque no que respeita aos exames de sangue os avanços científicos têm permitido o emprego generalizado de testes de ADN com uma fiabilidade próxima da certeza e que torna possível estabelecer com grande segurança o vínculo de maternidade ou de paternidade.

Ademais, «a enorme fiabilidade dos testes científicos hoje disponíveis, e o facto de esta fiabilidade ser cada vez mais do conhecimento público, têm consequências a vários níveis, no que toca ao objecto da norma em análise, ou seja, a prova das relações de filiação. Assim, por um lado, a prova científica ganhou foros de quase exclusividade, ficando as demais provas relegadas para casos excepcionais, em que aquela não seja possível»[5].

Sublinhando esta mesma linha de entendimento já foi doutamente referido o seguinte:

«(…) Os comummente designados “testes de DNA” consubstanciam a aplicação forense de uma “tecnologia que se baseia na variabilidade dos ácidos nucleicos das células, polimorfismos do DNA, cuja importância fundamental reside no facto de se estudar a individualidade biológica directamente do código genético, ao contrário das proteínas, cuja caracterização depende da sua expressão em tecidos e fluidos biológicos.

Por conseguinte constituem hoje uma tecnologia que é “admitida internacionalmente como prova pericial em tribunal, permitindo a resolução de casos de filiação complexos, como, por exemplo, casos de investigação de paternidade em que a mãe ou o pretenso pai faleceram, quando existe a possibilidade do estudo de familiares próximos; o estudo de restos cadavéricos e a comparação das suas características genéticas com as do sangue, também, de familiares próximos; e ainda casos de filiação, em que se dispõe de restos fetais resultantes de aborto ou infanticídio, em que se pretende identificar o autor do crime” [---]

O teste de ADN permite determinar, num sistema de percentagens, qual a probabilidade de determinado indivíduo proceder biologicamente de outro [---].

Como se escreve no acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/06 [---], a propósito da fiabilidade destes exames, “ (…) os avanços científicos permitiram o emprego de teste de ADN com uma fiabilidade próxima da certeza - probabilidades bioestatísticas superiores a 99,5% -, e, por esse meio, mesmo depois da morte, é hoje muitas vezes possível estabelecer com grande segurança a maternidade ou a paternidade. Assim, a justificação relativa à prova perdeu quase todo o valor com a eficácia e a generalização das provas científicas, podendo as acções ser julgadas com base em testes de ADN, que não envelhecem nunca. Como salienta Guilherme de Oliveira, [---] «os exames podem fazer-se muitos anos depois da morte do suposto pai, ou na ausência do pai! Morrem as testemunhas, mudam os lugares, é certo, mas nada disso altera, verdadeiramente, o caminho que as acções seguem, e hão-de seguir cada vez mais, no futuro»”. [Citámos, agora, o ac. do STJ de 24.05.2012, proferido no proc. nº 69/09.2TBMUR.P1.S1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj]

Nesta mesma linha de entendimento, e já no longínquo ano de 1994, foi doutamente sublinhado que «os exames de sangue são o único meio de prova adequado para demonstrar diretamente o vínculo biológico (…) com um grau de certeza prática tendencialmente total (…) e num plano de manifesta supremacia em relação à prova testemunhal que – a existir – apenas poderá indicar indiretamente a referida procriação biológica (…).».[Assim por LOPES DO REGO in Relevância dos exames de sangue nas acções de investigação de paternidade – Revista do Ministério Público, ano 15º, nº 58, Abril-Junho 1994.]  

E, nem se diga, conforme argumentam os RR./recorrentes, que na medida em que no anterior exame realizado em 2003 foram utilizados 16 marcadores e agora se recorre por norma a 24 marcadores, devia ser realizado um novo exame para “evitar situações de falsas coincidências”.

É que o Especialista do INMLCF que prestou a informação/esclarecimento solicitado pelo Tribunal, Dr. FF [que também foi o subscritor do relatório enviado ao processo de averiguação oficiosa de paternidade n.º 379/03....] foi perentório em afirmar a validade atual do anterior exame!

Mais concretamente prestou o seguinte esclarecimento:

«As conclusões do relatório do N/ Proc. ...79... tiveram como base o estudo dos STR (Short Tandem Repeats) dos cromossomas autossómicos, uma abordagem universalmente aceite e utilizada nos laboratórios de genética forense de todo o mundo, há mais de 20 anos, e de acordo com as normas da ISFG (International Society of Forensic Genetics). (…)

Respondendo ao pedido de esclarecimento em concreto, relativo ao nosso Processo Proc. ...79...:

- O relatório pericial de 10/10/2003, apresentado no processo de averiguação oficiosa de paternidade n.º 379/03...., que correu termos no Tribunal Judicial ..., constitui ainda hoje um relatório válido e manifestamente conclusivo para os efeitos de determinação da paternidade do réu CC, nascido em .../.../2003, filho da ré BB, constando como pai no registo civil o autor AA.

- A afirmação anterior baseia-se no facto de que os STR usados para elaborar o relatório pericial são usados ainda atualmente nos nossos relatórios periciais, que recordamos são periodicamente auditados pelo IPAC e elaborados de acordo com as normas da ISFG. Para além daqueles STRs, as perícias atuais recorrem a um conjunto mais vasto de STRs.»

Nesta medida, e perante um resultado de ADN de 99,99999997%, a realização de um novo exame de ADN/ “marcadores genéticos” torna-se inútil e despicienda.

Na verdade, saber se durante o relacionamento do Autor com a mãe do CC, e no período da conceção, ela manteve relações sexuais com outros parceiros – como o A./Requerente aventa em sede recursiva! – só seria relevante no caso de o anterior exame de ADN tivesse dado resultados de exclusão ou com um índice de probabilidade baixo, donde, não se afigurar de todo pertinente uma necessária devassa à “vida pessoal” da progenitora ora 1ª Ré que tal implicaria.

Em todo o caso, importa sublinhar que o A./recorrente em nenhum momento ousou invocar o erro ou falsidade do exame de ADN já feito e dos seus resultados!

Assente isto, que dizer relativamente à argumentação de que a decisão recorrida violou o artigo 20º da CRP [princípio da justa composição do litígio e da igualdade das partes litigantes]?

De referir que o A./recorrente concretizou este seu fundamento nos seguintes textuais e lineares termos: «Entende assim, o recorrente que o processo de que ora se recorre, sofre de falta de prova, e erro na apreciação da prova que foi oferecida pelas partes, pelo que deverá prosseguir com elaboração de saneador, e julgamento, sendo diferida a prova requerida, pois só assim se dará enfâse ao principio da justa composição do litigio, e á igualdade das partes litigantes.» 

Salvo o devido respeito, a resposta já se adivinha, sendo que também não assiste qualquer razão ao A./recorrente nesse particular.

Senão vejamos.

É certo que a consagração, no nº 4 do artigo 20º, da Constituição da Republica Portuguesa, do direito a um processo equitativo, envolve a opção por um processo justo em cada uma das suas fases, constituindo o direito fundamental à prova [---] uma das dimensões em que aquele se concretiza. O direito à prova emana da necessidade de se garantir ao cidadão a adequada participação no processo e de assegurar a capacidade de influenciar o conteúdo da decisão.

«O direito à tutela jurisdicional efetiva para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, genericamente proclamado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), implica um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e outras» [Citámos agora o acórdão do Tribunal Constitucional de 11.11.2008, relatado por Carlos Fernando Cadilha, acessível em www.pgdlisboa.pt;].

Nesta linha de entendimento, o direito à prova significa que as partes conflituantes, por via de ação e da defesa, têm o direito a utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentarem em tribunal [Cfr., neste sentido, RUI DE FREITAS RANGEL, in “O Ónus da Prova no Processo Civil”, 2ª ed., Almedina, a págs. 72.], donde, as partes têm ainda o direito a contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal bem como o direito à contraprova.

Haverá que constatar que, na prática, as partes têm sempre interesse em produzir provas, seja em relação aos factos que lhe são favoráveis, seja quanto à inexistência dos factos que a podem prejudicar (contraprova ou prova contrária). E se é verdade que o ónus da contraprova só surge quando o onerado com a contraprova tenha feito prova bastante (prova livre ou não plena), cabendo então à parte contrária fazer prova que crie no espírito do juiz dúvida ou incerteza acerca do facto questionado, as restrições impostas ao momento até ao qual cada uma das partes pode apresentar a sua prova/contraprova, levam a que parte não onerada com a prova de um facto não possa ficar à espera que a contraparte faça, ou não, a prova de tal facto, para aí e só então, em caso afirmativo, apresentar a sua contraprova.

Assim, já foi doutamente sustentado a este propósito que «as partes devem, pois, ter a oportunidade de demonstrar os fatos que servem de fundamento para as respetivas pretensões e defesas, sob pena de não conseguirem influenciar o órgão julgador no julgamento da causa. A noção de direito à prova aumenta as possibilidades das partes influenciarem na formação do convencimento do juiz, ampliando as suas chaces de obter uma decisão favorável aos seus interesses. Assim, as partes têm liberdade para demonstrar quaisquer factos, mesmo que não possuam o respetivo ónus da prova, desde que entendam que a sua comprovação diminuirá os seus riscos processuais.» [Vide EDUARDO CAMBI, “O direito à prova no Processo Civil”, in Revista da Faculdade de Direito UFRP, v34, 2000 [...].

Por outro lado, também temos presente que o princípio da igualdade das partes, imposto pelo art. 3º-A da Constituição da República Portuguesa, consagra o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva previsto no art. 20º desse mesmo diploma, na vertente em que todos têm direito a que uma causa em que intervenham decorra mediante um processo equitativo (parte final do nº4).

É, afinal, o direito fundamental de qualquer pessoa a um processo justo, a um processo que apresente garantias de justiça, no que concerne à sua estrutura, e que o art. 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem também consagra, ao consignar que «toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida».

Este direito a um processo equitativo - ou nas expressões inglesas due process of law ou fair trial - fair hearing - também se encontra consagrado no art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no art. 14º do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos. [Na lição de GOMES CANOTILHO, in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7ª edição, a págs. 274, do princípio do Estado de Direito, previsto no art. 2º da Lei Fundamental, “deduz-se sem dúvida, a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito. Como a realização do direito é determinada pela conformação jurídica do procedimento e do processo, a Constituição contém alguns princípios e normas designados por garantias gerais de procedimento e de processo”.]

O que tudo serve para dizer que os direitos processuais devem poder ser materialmente exercidos, sem o que acaba postergado o direito fundamental de qualquer cidadão a um processo equitativo, assim como deve cada concreto ato processual fornecer garantias de efetivo acesso à justiça.

Deste modo, é efetivamente de afirmar e reconhecer que no conceito jurídico-constitucional do processo equitativo se engloba o direito de produzir prova.

Donde, concomitantemente, no caso de o meio de prova já ter sido produzido, o direito de questionar a forma em que tal teve lugar, e bem assim os aspetos da sua fiabilidade, fidedignidade e resultado material…

Acontece que, na interpretação por nós perfilhada e, cremos que já suficientemente enunciada na antecedente exposição, o anterior exame de ADN/ “marcadores genéticos” foi realizado de forma segura e correta, tendo conduzido a resultados absolutamente concludentes e inteiramente válidos na presente data.

Não vemos, assim, como dar mínimo acolhimento à invocação de que existiu ou existe “falta de prova” e “erro na apreciação da prova que foi oferecida pelas partes”!

A esta luz, não se encontra em nenhum grau ou medida questionada a existência de um processo justo e equitativo.

Antes, e em contraposição, também se perfila outro princípio constitucional e valor que deve presidir à administração da justiça, a saber, o da celeridade processual, ao qual importa dar acolhimento e tutela. [---]

Sendo, aliás, deste adequado equilíbrio e harmonização de princípios, direitos e interesses processuais contrapostos, que se encontra fundado o nosso Estado de Direito e, dentro dele, do processo civil, designadamente o de se obter uma decisão definitiva e que permita encerrar de uma vez o conflito de interesses em jogo.

Isso também para tutela da confiança, da segurança jurídica e da boa-fé.

Sendo certo que o entendimento por nós perfilhado não ofende desproporcionadamente o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva do A. ora Recorrente, a quem, ao não aduzir fundamentação séria e consistente, não cumpre salvaguardar uma “eternização” do conflito."

[MTS]