"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/03/2024

Jurisprudência 2023 (135)


Processo de inventário:
créditos de compensação; preclusão


1. O sumário de RE 28/6/2023 (1049/21.5T8BNV.E1) é o seguinte:

I – O processo especial de inventário é, em princípio, o meio adequado para se conhecer e decidir dos chamados “créditos de compensação” entre os ex-cônjuges, mas o respetivo direito de ação não preclude se ali não forem conhecidos ou relacionados.

II – Assim, o cônjuge credor não fica impedido de fazer valer tais nos meios comuns, sendo os tribunais comuns competentes para conhecerem tanto dos pedidos reciprocamente formulados pelos ex-cônjuges, com esse fundamento, como dos referentes aos créditos de um dos cônjuges sobre o outro que não integrem a massa a partilhar através do processo de inventário, aos quais se aplica o direito das obrigações, da competência dos tribunais comuns.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Perante as pretensões deduzidas por ambas as partes, sintetizadas no relatório, o tribunal a quo ponderando, por um lado, que “o processo de inventário visa, não só, dividir os bens comuns do casal, mas também liquidar as responsabilidades mútuas e as dívidas do casal”, e, por outro lado, que “compete aos Juízos de Família e Menores proceder à partilha dos bens comuns subsequentes a divórcio, por serem eles a quem a Lei n.º 62/2013, de 26/08 atribui competência material expressa para esse efeito”, concluiu que “é no âmbito do processo de inventário, que corre termos no Tribunal de Família e Menores de Santarém, sob o nº 2584/20.8T8STR, que deverá o autor reclamar o pagamento de tal quantia. E, estando o pedido de indemnização por danos não patrimoniais, efectuado também na presente acção, totalmente dependente do conhecimento da alegada dívida da ré perante o autor ainda na constância do matrimónio, não poderá tal pedido ser autonomizado perante o primeiro.

Por conseguinte, como a violação das regras da competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do Tribunal, constituindo esta uma excepção dilatória insuprível, importa julgar o presente tribunal incompetente – arts. 96º a 98º, 99º, nº 1, 278º, n.º 1, al. a), 576º, n.º 1 e 2, 577º, al. a), e 578º, todos do Código de Processo Civil”.

Cremos, porém, e antecipando razões, que a decisão recorrida que declarou a incompetência absoluta do tribunal comum para julgar a presente ação por entender que a mesma teria que ser dirimida no processo de inventário pendente, perante o caso concreto em apreço, não pode manter-se.

Na realidade, a questão que se coloca é a de saber se a lei processual civil, impõe ou não que as pretensões formuladas nestes autos pelo autor e pela ré (a decisão recorrida omitiu no relatório a menção à reconvenção deduzida) fossem deduzidas no processo de inventário para partilha dos bens comuns, e a resposta a esta questão é negativa. [...]

Ora, sendo certo, como se afirmou no Acórdão da Relação de Guimarães de 27.01.2022 [Proferido no processo n.º 4218/21.4T8BRG-A.G1, disponível em www.dgsi.pt, onde podem ser consultados os acórdãos citados sem menção de outra origem.], que “tendencialmente, no inventário devem ser solucionadas todas as questões emergentes da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges com influência na partilha do património comum, designadamente as que respeitam à liquidação das compensações devidas pelo pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges suportado apenas por um deles” não é menos verdade que tal decisão só tem lugar naquele processo quando a sua complexidade não seja excessiva e permita a decisão no inventário da existência e montante do crédito em causa, aplicando-se nesse caso à subsequente partilha a regra do n.º 3 do artigo 1689.º do CC.

Porém, se a excessiva complexidade do seu apuramento não permitir uma decisão incidental segura no processo de inventário, agora como antes, os interessados são remetidos para os meios comuns, mas sem que dessa decisão dependa o prosseguimento do inventário nem a própria partilha [ Como se sintetizou no Ac. TRL de 14.04.2011, proferido no processo n.º 2604/08.4TMLSB-A.L1-2, “o mais que poderá acontecer, é que esta tenha lugar antes do trânsito em julgado daquela acção autónoma, caso em que o crédito que em tal acção venha a ser apurado, será pago – e ainda em observância do disposto no nº 3 do art 1689ºCC, na sua segunda parte – porque já não existam bens comuns, pelos bens próprios do cônjuge devedor”.].

Portanto, só por esta possibilidade, bem se compreende que o tribunal comum não seria materialmente incompetente para a decisão da presente ação. Já inversamente, o processo especial de inventário não permite que nele se decidam questões que não caibam no seu âmbito, ainda que lateralmente se repercutam no património pessoal de cada um dos ex-cônjuges.

Com efeito, e em segundo lugar, importa precisar que “[o]s créditos de compensação não se confundem com outros créditos entre os cônjuges por responsabilidade civil ou que nasçam de outros factos jurídicos negociais – mútuos, locações, etc. -, seguindo os primeiros o regime geral da responsabilidade civil e os segundos o regime geral dos negócios que lhe dão origem.” [Cfr., FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, in “Curso de Direito da Família”, Vol. I, 4.ª edição, COIMBRA EDITORA, 2008, pág. 432.]

Assim sendo, como é relativamente ao pedido formulado pelo autor no concernente a indemnização por danos não patrimoniais, e ao pedido formulado pela ré/reconvinte relativamente a alegados créditos compensatórios crédito que não relacionou no processo de inventário pendente, a créditos decorrentes de pagamentos por si efetuados de despesas surgidas já depois de cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, ocorridas posteriormente à dissolução do casamento, por divórcio, e ao invocado crédito decorrente de haver suportado sozinha despesas com o filho comum do casal, que incumbiria ao reconvindo suportar também, estamos perante a alegação de créditos que não integram a massa a partilhar através do processo de inventário, por não integrarem o passivo comum, nem as eventuais operações de compensação [Cfr., aresto deste TRE de 26.05.2011, proferido no processo n.º 146-F/2000.E1, em cujo sumário se exarou que “Dispondo o artº 1697º do CC sobre as compensações devidas pelo pagamento de dívidas do casal, dele resultam dois princípios: de que elas são devidas quando as dívidas comuns foram pagas com bens próprios de um dos cônjuges e quando as dívidas de um só dos cônjuges foram pagas com bens comuns. Os créditos derivados de pensão de alimentos em que o interessado foi condenado e porque responderá vitaliciamente o seu próprio património perante o património daquela, não se integram nos “créditos” a que se refere o artº 1689º do CC., não sendo reclamáveis no inventário para partilha de bens em consequência de divórcio, já que não constituem encargo do património comum ou próprio dos cônjuges derivados de compensação pelo qual deva responder a meação do cabeça-de-casal, mas antes um crédito autónomo entre cônjuges que deve ser exigido nos meios comuns”.]. Estamos, portanto, perante créditos aos quais se aplica o direito das obrigações, da competência dos tribunais comuns.

Nesse sentido se decidiu no aresto da Relação de Coimbra de 24.05.2022 [Proferido no processo n.º 4224/19.9T8VIS.C1, que seguiremos de perto. Com efeito, ali estava em causa a apreciação da propriedade do processo comum ou do processo de inventário para a decisão, mas a fundamentação tecida interliga-se com o fundamento que motivou a decisão recorrida e tem aqui plena adequação.], afirmando-se que “a resposta à questão da propriedade de um processo para o autor fazer valer o seu direito é dada, num primeiro momento, pelo n.º 2 do artigo 546.º do CPC. Nos termos deste preceito, o processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei; o processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponde processo especial.

Socorrendo-nos das palavras de Alberto dos Reis a propósito do artigo 469.º do CPC, cujo teor é igual ao do n.º 2 do artigo 546.º: “Vê-se, pois, que o campo de aplicação do processo comum se determina não directamente, mas por exclusão de partes: depois de nos certificarmos de que para um determinado caso concreto não há na lei processo especial, é que podemos tranquilamente concluir que esse caso entra na órbita do processo comum. Sendo assim, o problema que se põe, a averiguar se deve adoptar-se, em certo caso, o processo comum ou processo especial é sempre este: estabelece a lei algum processo especial que seja aplicável ao caso? Se estabelece, é esse o processo que deve empregar-se; se não, cai-se no processo comum” [Código de Processo Civil anotado, Volume II, Coimbra Editora, Limitada, páginas 285 e 286]. (…)

O processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal está previsto no artigo 1133.º do CPC, sendo inequivocamente um processo especial. A sua função é a de partilhar bens comuns do casal (alínea d) do artigo 1082.º do Código Civil).

Apesar de ser esta a função do inventário resulta, no entanto, do n.º 1 do artigo 1689.º do Código Civil que a partilha dos bens comuns compreende várias operações, sendo uma delas a conferência das dívidas dos cônjuges ao património comum. Precise-se que estas dívidas são as previstas no n.º 2 do artigo 1697.º do Código Civil, ou seja, as que têm origem no facto de terem respondido bens comuns por dívidas da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges. Como é bom de ver, a conferência em questão só terá lugar se tais dívidas forem relacionadas ou reclamadas. E, assim, havendo inventário para partilha dos bens comuns, se os cônjuges pretenderem que cada um deles confira o que deve ao património comum, o inventário é inequivocamente o processo próprio para os cônjuges reclamarem tais dívidas”.

Revertendo ao caso em apreço, sucede que a dívida que está em causa na presente ação e se encontraria nas ditas condições, tendo sido reclamada no processo de inventário, de acordo com a alegação do autor, não terá ali sido partilhada, sendo que o pedido formulado quanto a indemnização por danos não patrimoniais não tem cabimento no âmbito daquele processo especial. Por outro lado, parte da reconvenção deduzida, assenta na alegação de um crédito de compensação não relacionado no inventário, e outra parte na alegação da existência de uma dívida de um dos cônjuges ao outro e não ao património comum. É dívida cujos factos que lhe deram origem – segundo a alegação da ré/reconvinte – ocorreram já depois da dissolução do casamento, ou seja, já depois de cessadas as relações patrimoniais entre o autor/reconvindo e a ré/reconvinte.

Por isso que se aplique de pleno o aresto que vimos seguindo quando ali se afirma que “trata-se, assim, de uma dívida que, segundo o n.º 1 do artigo 1689.º do Código Civil, combinado com o n.º 2 do artigo 1697.º do mesmo diploma, não releva para as operações de partilha dos bens comuns.

E não relevando para tais operações, só se poderia afirmar que o processo próprio para a reclamar era o inventário se resultasse expressa ou implicitamente da lei que, havendo inventário para partilha dos bens comuns, cada um dos cônjuges só podia reclamar os seus créditos contra o outro no processo de inventário.

Esta regra não existe. É certo que também não existe a regra contrária, ou seja, que os cônjuges não podem reclamar, no processo de inventário, os créditos de cada um sobre o outro.

Mais: o n.º 2 do artigo 1689.º e o n.º 1 do artigo 1697.º, ambos do Código Civil, apontam no sentido de que, em relação a uma certa categoria de créditos - mais concretamente aqueles com origem no facto de um dos cônjuges ter satisfeito além do que lhe competia fazer por dívidas das responsabilidades de ambos os cônjuges – o cônjuge pode reclamar, no processo de inventário, o seu crédito contra o outro. Trata-se, no entanto, de uma faculdade. Se a não exercer não fica inibido de exigir o seu cumprimento através dos meios judiciais comuns. E o mesmo se pode dizer em relação aos créditos de um dos cônjuges sobre o outro com uma origem diferente da prevista no n.º 1 do artigo 1697.º do CC”.

Neste mesmo sentido, pronunciou-se ainda a Relação do Porto, no acórdão proferido em 17.06.2019 [Processo n.º 1975/17.6T8VLG.P1.], assim sumariado:

“O processo especial de inventário em consequência do divórcio, regulado nos artigos 79.º e ss. da Lei nº 23/2013 de 05/03 é, em princípio, o meio adequado para se conhecer e decidir dos chamados “créditos de compensação “entre os cônjuges, devendo aí ser relacionados, e já não em processo de prestação de contas.

Admite-se, contudo, que, não tendo tais créditos sido relacionados no âmbito do inventário, não fica o respectivo credor inibido de o fazer valer nos meios comuns mormente, quando na contestação à acção interposta para esse fim, o devedor não os admite, o que sempre obrigaria a considerar no inventário tal dívida litigiosa compelindo o credor a exigir o pagamento pelos meios comuns (cfr. artigos 32º e 33.º da Lei 23/2013 de 05/03)”.

É precisamente o que sucede com os invocados créditos de compensação e com os demais pedidos de crédito ou indemnização de um dos ex-cônjuges sobre o outro, que estão em causa nos presentes autos. Tratando-se de uma faculdade quanto aos primeiros, tal como naqueles arestos se concluiu não existir o invocado erro na forma do processo ou uso indevido da ação declarativa, também aqui não se verifica a declarada incompetência do tribunal comum.

Conclui-se, pois, como naquele aresto do TRC, com respaldo no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 03.10.2019, no processo n.º 1517/13.2TJLSB.L1.S2 [o qual se ponderou designadamente que “O princípio da legalidade das formas processuais não permite que o processo de inventário instaurado na sequência de divórcio sirva para proceder à divisão de um imóvel relativamente ao qual cada cônjuge é titular exclusivo de uma quota-parte, tal como impede que seja apreciado o pedido de condenação do outro no pagamento de uma dívida própria”.], que no Código Civil ou no Código de Processo Civil não existe norma que determine que, havendo inventário para partilha dos bens comuns, a compensação pecuniária que cada um dos ex-cônjuges está a exigir ao outro por via da presente ação, tenha que ser obrigatoriamente deduzida no processo de inventário. E, não havendo, a conclusão a retirar no caso é a de que tal compensação é abstratamente peticionável através do processo comum de declaração, sendo consequentemente competentes para o seu conhecimento os tribunais comuns."

[MTS]