[...] a Requerente, na posição de Autora, interpôs [sic] ação declarativa contra os [...] Requeridos, sublinhando que apenas arrendou aos mesmos o 1º andar da moradia em causa, e peticionado a resolução do referenciado contrato de arrendamento por violação grave e reiterada dos deveres dos arrendatários – ali réus, aqui requeridos – alegando designadamente, e relativamente à temática “Quanto à Ocupação da Garagem”, entre o mais, que «Na sequência do cumprimento da sentença e da retirada do veículo automóvel, ferramentas e demais objetos que se encontravam dentro da cave garagem – em cumprimento da ordem judicial (…) O réu CC continuou a atividade de oficina improvisada no jardim da moradia», sendo que «Verificam-se abusos de ocupação de espaço, e a sua utilização para atividade comercial, para as quais e locado e ou as partes comuns, não foi arrendado aos Réus».
Concluiu com o seguinte petitório:
«F – Pedido
Nestes termos e demais de direito, deve V. Exa. dignar-se a aceitar e julgar procedente por provada, a presente ação e consequentemente:
a) Ser resolvido do contrato de arrendamento celebrado entre a Autora, na qualidade de cabeça de casal com os Réus, em 1 de Janeiro de 2020;
b) Ser decretado o despejo imediato dos Réus do locado, correspondente ao 1.º andar do prédio da moradia sita na Estrada Nacional ...56, nº 17 em ..., ..., com a sua entrega livre de pessoas e bens, com fundamento em incumprimento grave dos deveres dos arrendatários;
c) Assim, como serem os RR condenados a retirarem todos os veículos que se encontram estacionados no jardim da moradia (partes comuns), e todos os bens aí colocados, como peças auto, ferramentas e outros bens e utensílios;
d) Serem os RR condenado a pagar à Autora a quantia de € 2.172,50, correspondentes a metade das faturas de eletricidade, água e gás.»
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Os RR. apresentaram oportunamente articulado de contestação/reconvenção a esta ação, impugnando, no global, a factualidade alegada pela A., alegando especificadamente, para o que aqui diretamente releva, que o arrendamento, para além do 1º andar do imóvel da A., incluiu a “cave/garagem” do mesmo (melhor, a “metade da garagem do prédio”).
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Por requerimento apresentado aos autos de procedimento cautelar em 31-11-2022, com a referência 43942482, os Requeridos vieram requerer a declaração de extinção do procedimento cautelar e a caducidade da providência no mesmo proferida, na medida em que «(…) não tendo a Requerente intentado a acção de que a providência depende, no prazo legal, a mesma caducou, pelo que requer que a mesma seja levantada ( art.º 373º/1/3, do CPC ).»
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Este requerimento foi objeto de indeferimento pela Exma. Juíza de 1ª instância, a qual argumentou para tanto, entre o mais, com o seguinte:
«(…) Ora, é certo que a causa de pedir de ambos os processos não é idêntica e que na ação principal proposta não é literalmente pedida a reivindicação da garagem.
Todavia, não poderá deixar de se considerar que a causa de pedir do presente procedimento está contida na causa de pedir da ação principal, encabeçando os fundamentos da declaração de resolução do contrato de arrendamento.
Por outro lado, também o pedido de entrega definitiva da garagem está mediatamente contido no pedido de despejo na medida em que, dependendo o uso da garagem do contrato de arrendamento celebrado, peticionando-se a sua resolução e o consequente despejo de todo o locado, tal pedido, a proceder, englobaria naturalmente também a cave/garagem. (…)» [...]
Desacerto da decisão que considerou que a Requerente havia cumprido o ónus de propositura da ação principal nos termos do disposto nos artigo 364º e 373º, nº 1, al.a) do n.C.P.Civil, assim declarando improcedente o pedido de caducidade da providência que havia sido decretada [e indeferindo o pedido de que esta fosse levantada]:
Será que efetivamente não existe a menor identidade e coincidência entre a ação de processo comum intentada e o procedimento cautelar que havia sido decretado?
Esta interrogativa prende-se com os requisitos da instrumentalidade e dependência dos procedimentos cautelares, isto é, com a circunstância de as providências cautelares estarem necessariamente dependentes de uma ação pendente ou a instaurar posteriormente [acautelando ou antecipando provisoriamente os efeitos da providência definitiva], na pressuposição de que venha a ser favorável ao requerente a decisão a proferir no processo principal.
Decorrentemente, o objeto da providência há-de ser conjugado com o objeto da causa principal, o que se traduz na necessidade duma correlativa “correspondência funcional”.
Assim, já foi sublinhado que «Os pedidos formulados no processo cautelar devem ter a necessária correspondência funcional com os pedidos formulados ou a formular na ação principal e ser adequados a acautelar a utilidade da sentença que vier a ser proferida no processo principal - consiste nisto o requisito da instrumentalidade das providências cautelares.» [Assim no acórdão do STJ de 08.04.2021, proferido no proc. nº 7/21.4YFLSB, acessível em www.dgsi.pt/jstj.]
«Destinando-se elas a servir a tutela de um direito a determinar num determinado processo, necessariamente encontram-se dependentes desse processo, podendo dizer-se que, nesse aspecto, não gozam de autonomia, O seu nascimento, a sua vida e a sua morte estão dependentes do processo do qual são dependentes, porque é nele que encontram a sua razão de existência, reflectindo-se nelas as vicissitudes da tutela a encontrar no processo-mãe.
Também como consequência da sua função instrumental, as providências cautelares são meramente provisórias, tendo uma duração, apesar de incerta, limitada no tempo (dies certus an, incertus quando). São providências a termo incerto.
Tendo elas como única finalidade obviar ao perigo da demora de um determinado processo, o não nascimento deste ou a sua extinção provocam o seu fim.» [Citámos agora o acórdão do TC nº 624/2009, de 2.12.2009, proferido no proc. nº 850/08, acessível em www.dgsi.pt/tc.]
Nesta medida, está legalmente preceituado que os efeitos de qualquer providência estão dependentes do resultado que for conseguido na ação definitiva, e caducam se a ação não for instaurada, se esta for julgada improcedente ou se o direito tutelado se extinguir [cf. art. 373º do n.C.P.Civil].
De referir que se o objeto da providência tem de ser conjugado com o objeto da causa principal, tal dependência não impõe perfeita identidade.
Não obstante, a identidade entre o direito acautelado e o que se pretende fazer valer no processo definitivo impõe, pelo menos, que o facto que serve de fundamento àquele integre a causa de pedir da ação principal, embora se não pressuponha uma total identidade dos direitos a tutelar [Neste sentido, ABRANTES GERALDES, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, III Volume, 2.ª ed., Livª Almedina, 2000, a págs. 128.].
Revertendo estes ensinamentos ao caso vertente, entendemos que é caso de se afirmar que essa identidade parcial entre a providência cautelar e a subsequente ação existe precisamente pela via da integração do “cave/garagem” no “objeto” do contrato de arrendamento.
Senão vejamos.
Um dos aspetos nucleares da discórdia/conflito entre A./requerente, por um lado, e RR./requeridos, por outro lado, é assentar e definir se a “cave/garagem” do imóvel locado, integrou ou não o arrendamento celebrado entre essas partes que visou expressamente o 1º andar do mesmo.
Recorde-se que a A./requerente sustenta enfaticamente que a “cave/garagem” do imóvel locado não integrou o contrato de arrendamento celebrado entre as partes, enquanto os RR./requeridos defendem o inverso.
O procedimento cautelar de restituição provisória de posse intentado pela Requerente visou específica e concretamente a ocupação pelos Requeridos da dita “cave/garagem”, pretensão em que obteve sucesso.
Temos presente que assentando a posição da Requerente no uso intitulado (abusivo) dessa “cave/garagem” pelos Requeridos, o processualmente correto e expetável seria a interposição [sic] de uma ação declarativa (de simples apreciação e de condenação) – em regra uma ação de reivindicação ou de restituição de posse.
Isto porque para dirimir uma tal questão relevaria diretamente a sua qualidade de “proprietária”, não a sua qualidade de “senhoria”. [Cf. sobre a questão, inter alia, o acórdão do TRL de 29.05.2012, proferido no proc. nº 1693/10.6TCLRS.L1-7, e o acórdão do TRE de 26.03.2015, proferido no proc. nº 183/11.4T2GDL.E1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.]
Acontece que a Requerente entendeu ampliar o litígio com a contraparte, estendendo-o à situação jurídica do arrendamento no seu todo, e daí ter interposto uma ação (de despejo) destinada a fazê-lo cessar.
Nesse contexto, invocou, para além de outra, a causa de resolução do contrato de arrendamento constante da al. c) do nº 2 do art.1083º do C.Civil, a saber, «O uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina, ainda que a alteração do uso não implique maior desgaste ou desvalorização para o prédio», à luz do que alegadamente relevará o que vem expressamente aduzido, nomeadamente quanto ao que designou por “Quanto à Ocupação da Garagem”, entre o mais, que «Na sequência do cumprimento da sentença e da retirada do veículo automóvel, ferramentas e demais objetos que se encontravam dentro da cave garagem – em cumprimento da ordem judicial (…) O réu CC continuou a atividade de oficina improvisada no jardim da moradia», sendo que «Verificam-se abusos de ocupação de espaço, e a sua utilização para atividade comercial, para as quais e locado e ou as partes comuns, não foi arrendado aos Réus».
Ora se assim é, nesse particular está em causa uma ocupação do espaço da “cave/garagem” pelos Requeridos, sendo que o fazem – com ou sem fundamento/justificação – no contexto e por causa da relação de arrendamento, para o que diretamente interessa apenas e efetivamente a qualidade de “senhoria” da ora A..
E daí se ter dito que existe identidade parcial entre a providência cautelar e a subsequente ação pela via da discutida integração da “cave/garagem” no “objeto” do contrato de arrendamento.
Sendo certo que a esta luz e nessa medida a ocupação/uso abusivo que serviu de fundamento ao procedimento cautelar, integra a causa de pedir da ação principal.
Aliás, salvo o devido respeito, o “tema da prova”, «1) saber em que data e por que forma foi celebrado o contrato de arrendamento quer teve por objeto o imóvel identificado no artigo 1.º da petição inicial», ainda que extensivamente interpretado, pode contemplar a já referenciada – como “discutida”! – integração da “cave/garagem” no “objeto” do contrato de arrendamento…
Nesta linha de entendimento, entendemos que bem ajuizou a Exma. Juíza a quo quando na fundamentação da decisão recorrida argumentou pela seguinte forma:
«(…) Ora, é certo que a causa de pedir de ambos os processos não é idêntica e que na ação principal proposta não é literalmente pedida a reivindicação da garagem.
Todavia, não poderá deixar de se considerar que a causa de pedir do presente procedimento está contida na causa de pedir da ação principal, encabeçando os fundamentos da declaração de resolução do contrato de arrendamento. (…)»
Assim, sem necessidade de maiores considerações e brevitatis causa, improcedem in totum os argumentos recursivos e o recurso."
*3. [Comentário] A RC decidiu bem, dado que a acção principal correspondente a uma providência de restituição provisória da posse pode ser uma acção de resolução de um contrato de arrendamento. No entanto, salva a devida consideração, a fundamentação não é irrepreensível.
A afirmação de que "a identidade entre o direito acautelado e o que se pretende fazer valer no processo definitivo impõe, pelo menos, que o facto que serve de fundamento àquele integre a causa de pedir da ação principal, embora se não pressuponha uma total identidade dos direitos a tutelar" é demasiada ampla.
Quando muito, a afirmação vale para as situações em que a providência cautelar tem um efeito antecipatório da tutela definitiva. Sempre que assim não suceda, o facto que justifica o decretamento da providência cautelar não tem de integrar a causa de pedir da acção principal. Por exemplo: o fundamento do arresto é o justo receio de perda da garantia patrimonial (art. 619.º, n.º 1, CC; art. 391.º, n.º 1, CPC); como é claro, este justo receio não integra a causa de pedir da acção condenatória relativa ao crédito.
MTS