2. Nos presentes autos está em causa um pedido de indemnização cível deduzido pelo Sporting Clube de Braga contra o réu, que exerceu funções de ... para o autor desde 1983 e foi abrangido por um processo de despedimento coletivo que veio a ser declarado ilícito pelo tribunal do trabalho.
Alega o autor que, no processo laboral de impugnação do despedimento, o réu apresentou um recibo de vencimento falso onde constava um valor de salário base muito superior ao real, assim incrementando o valor dos salários intercalares e outras indemnizações que o autor foi condenado a pagar ao agora réu (sobre a condenação no processo laboral e o valor das indemnizações, cfr. factos provados n.º 6 e 8).
O autor, Sporting Clube de Braga, não impugnou, no processo laboral, o recibo de vencimento, nem pôs em causa o seu valor, alegando não ter consultado os documentos contabilísticos por estar concentrado a preparar a sua defesa no processo de impugnação do despedimento (factos provados n.ºs 4, 10 e 11). Contudo, veio mais tarde a ter conhecimento da falsidade do recibo de fevereiro de 2006 e interpôs um recurso extraordinário de revisão, com base na alínea b) do artigo 696.º do CPC (facto provado n.º 9), ao qual foi negado provimento pela sentença datada de 16 de abril de 2019, que, desvalorizando o relatório pericial apresentado pelo Sporting Clube de Braga, entendeu não ter ficado demonstrada a falsidade do recibo apresentado pelo agora réu no processo laboral, considerando, ter havido uma “total ausência de prova documental ou testemunhal” que comprovasse a falsidade do documento (facto provado n.º 14).
No presente processo, o acórdão agora recorrido decidiu que a decisão, transitada em julgado, proferida no processo de revisão, que declarou não ser falso o documento, tem a força de autoridade de caso julgado e impõe-se nesta ação, e, em consequência, negou a pretensão aqui deduzida pelo autor, com o fundamento segundo o qual, «(…) no recurso de revisão acima mencionado apreciou-se e decidiu-se a questão da falsidade de um recibo de vencimento, questão essa que constitui causa de pedir nesta ação.
Tal como se refere na decisão recorrida “tendo aquele recurso de revisão concluído pela não verificação da falsidade do recibo em causa, tal questão não poderá voltar a ser apreciada e decidida, sob pena de ser violada a autoridade do caso julgado.”
O conteúdo daquela decisão e seus fundamentos projetam-se necessariamente neste processo, impedindo que neste se volte a discutir a falsidade do referido documento, pressuposto do pedido indemnizatório aqui formulado».
3. O recorrente imputa erros de direito ao acórdão recorrido, com base, em síntese, nos seguintes motivos, interligados numa argumentação em cadeia, segundo a qual se o primeiro argumento não for procedente, subsidiariamente, procederá o segundo: 1) À luz do artigo 91.º, n.º 2, do CPC, a questão da falsidade de documento decidida no recurso de revisão seria uma questão meramente incidental e como tal apenas poderia constituir caso julgado formal, mas sem autoridade de caso julgado fora do processo respetivo; 2) O processo de impugnação de documento regulado nos artigos 446.º e seguintes do CPC constitui um processo incidental em relação ao processo principal (o processo laboral), devendo o processo extraordinário de revisão em que se suscita a questão da falsidade do documento ser equiparado a um processo incidental de impugnação de documento inserido no processo laboral; 3) O dispositivo da decisão transitada em julgado no processo de revisão nada refere quanto à falsidade documento e o caso julgado não se estende aos factos provados e não provados, nem aos fundamentos da decisão; 4) Não se verifica qualquer relação de prejudicialidade entre a ação laboral e a ação de revisão (conclusões 17.º e 18.º); 5) O presente processo cível foi autonomizado, ao abrigo do artigo 72.º do CPP, de um inquérito criminal contra o agora réu por crimes de falsificação do documento e de burla, pelo que não pode a decisão proferida no processo de revisão ter força de caso julgado em relação ao processo crime e ao pedido de indemnização cível, dada a estreita ligação da ação civil à ação penal (conclusões 19.º a 22.º).
Vejamos: [..]
5. Defende ainda o recorrente que a decisão proferida no processo de revisão não tem autoridade de caso julgado para o presente processo, pois não é possível a extensão do caso julgado aos factos provados e não provados, nem aos fundamentos da decisão (conclusões 14.ª a 16.ª).
Com efeito, é entendimento dominante neste Supremo Tribunal de Justiça que o caso julgado apenas abarca o dispositivo da sentença, não sendo admissível a extensão do caso julgado à matéria de facto provada e não provada, nem aos fundamentos da decisão, que apenas podem ser utilizados para aferir do sentido e alcance do dispositivo que constitui caso julgado, mas, em si, não estão abrangidos pela força de caso julgado.
Neste sentido, de que a matéria de facto provada numa ação não tem valor de caso julgado se orientaram, entre outros, vários Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: Acórdãos de 14-01-2021, Revista n.º 3935/18.0T8LRA.C1.S1, de 13-04-2021, Revista n.º 2395/11.1TBFAF.G2.S1, de 11-11-2021, Revista n.º 1360/20.2T8PNF.P1.S1).
6. Todavia, no presente caso, diferentemente do alegado pelo recorrente, foi respeitado este princípio.
Os factos considerados provados e não provados no processo de revisão e que foram considerados nos presentes autos apenas foram utilizados para enquadrar e interpretar o sentido do dispositivo do recurso de revisão.
A falsidade do documento, que não se considerou provada no recurso de revisão, foi o único objeto do processo de revisão, pelo que não pode deixar de se entender que o dispositivo que nega provimento ao processo de revisão se reporta a este dado factual, necessariamente protegido pela autoridade do caso julgado.
A falsidade do documento, na economia da sentença aqui transcrita na matéria de facto (Facto provado n.º 16), não é um mero facto não provado, pois o tribunal aprecia a prova e conclui expressamente que o documento não é falso, conforme decorre do seguinte excerto: «Em suma, perante a factualidade assente, não se mostram preenchidos todos os pressupostos exigidos na alínea b) do artigo 696º, do C.P.C. Nem o documento referido é falso, nem se verifica o nexo de causalidade legalmente exigido entre aquele alegado vício de falsidade e o teor da decisão (sentença) em crise».
Aplica-se, nesta sede, a orientação, segundo a qual, Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que o âmbito objetivo da autoridade do caso julgado se estende à apreciação das questões preliminares que constituam antecedente lógico necessário da parte dispositiva da decisão, cfr. entre outros os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 07-02-2019, Revista n.º 3263/14.0TBSTB.E1.S1); de 12-01-2021, Revista n.º 2030/11.8TBFLG-C.P1.S1; de 02-12-2020, Revista n.º 3077/15.0T8PBL.C1-A.S1; de 26-11-2020, Revista n.º 7597/15.9T8LRS.L1.S1.
Improcedem, portanto, as conclusões 14.ª a 16.ª da alegação de recurso. [...]
7. Regressando ao caso, verifica-se que a causa de pedir da presente ação cível é idêntica à causa de pedir do processo de revisão – a falsidade do documento – o que tem como consequência, que, por razões de coerência e de unidade da ordem jurídica, a decisão proferida no processo de revisão tem força de caso julgado, em termos de prejudicialidade, na ação de responsabilidade civil.
No recurso de revisão o fundamento único foi a invocação da falsidade do recibo de vencimento do autor referente ao trabalhador aqui réu; na presente ação pretende-se apurar se o referido documento – o mesmo recibo de vencimento – é falso, como pressuposto do pedido indemnizatório dos presentes autos.
Assim, a causa de pedir em ambas as ações é idêntica. Ora, tendo-se decidido no processo de revisão pela improcedência do pedido da falsidade do documento fundamento, tal decisão constitui caso julgado no presente processo, em que se pede também a falsidade do citado documento enquanto pressuposto do dever de indemnizar.
A propósito da autoridade do caso julgado, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.11.2020, Revista n.º 214/17.4T8MNC.G1.S1, afirma que “Quanto à alegada ofensa da autoridade do caso julgado formado na segunda acção anterior invocada importa ter presente que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem admitindo – em linha com a doutrina tradicional – que a autoridade do caso julgado dispensa a verificação da tríplice identidade requerida para a procedência da exceção dilatória, sem dispensar, porém, a identidade subjectiva. Significando que tal dispensa se reporta apenas à identidade objectiva, a qual é substituída pela exigência de que exista uma relação de prejudicialidade entre o objecto da segunda acção e o objecto da primeira.”. Neste sentido se pronunciaram também os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 26-11-2020, Revista n.º 7597/15.9T8LRS.L1.S1, de 24-10-2019, Revista n.º 6906/11.4YYLSB-A.L1.S2, de 13-09-2018, Revista n.º 687/17.5T8PNF.S1, de 28-03-2019, Revista n.º 6659/08.3TBCSC.L1.S1, e de 30-04-2020, Revista n.º 257/17.8T8MNC.G1.S1, seguindo em termos doutrinários, as posições assumidas por Rui Pinto (“Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Revista Julgar Online, novembro 2018, pp. 28 e ss..), Lebre de Freitas (“Um Polvo Chamado Autoridade de Caso Julgado”, pp. 700 e ss. e “A Extensão Subjetiva da Eficácia do Caso Julgado”, pp. 613), Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, págs. 581 e ss..) e Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, Vol. II, 2.ª edição, 2020, Almedina, pp. 719 e ss).
Está assente na jurisprudência deste Supremo Tribunal que a autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, num segundo processo, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no artigo 581º do Código de Processo Civil.
Relativamente à autoridade do caso julgado exige-se, pois, que o caso decidido anteriormente seja prejudicial relativamente ao caso que vai ser julgado e bem assim que se mostre incluído, ainda que parcialmente, no objeto do processo que vai ser decidido.
Conforme bem se explica no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22-02-2018, Revista n.º 3747/13.8T2SNT.L1.S1, «(…) a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa e abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado». – destaque nosso
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-10-2022, Revista n.º 2291/21.4T8FAR-A.S1, com relevo para o que aqui importa, afirma-se que «(…) Como tem sido reiterado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal, a exceção dilatória de caso julgado (efeito negativo) pressupõe a identidade de sujeitos, de causas de pedir e de pedidos entre os processos em confronto - cfr., entre outros, os acórdãos de 22-02-2018 (Proc. n.º 18091/15.8T8LSB.L1.S1), de 18-02-2021 (Proc. n.º 3159/18.7T8STR.E1.S1) e de 23-02-2021 (Proc. n.º 2445/12.4TBPDL.L1.S1).
Por seu turno, “a autoridade de caso julgado formado por decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obsta que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo, neste caso, a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 581º do Código de Processo Civil” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-09-2018 (Proc. n.º 687/17.5T8PNF.S1).
Nas palavras de Lebre de Freitas e de Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, Almedina, 4.ª edição, Reimpressão, pp. 599-590), o efeito positivo do caso julgado conferido pela figura da autoridade “assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida (…) ou o fundamento da primeira decisão, excecionalmente abrangido pelo caso julgado (…) é também questão prejudicial na segunda ação”. – destaque nosso
Neste aresto, tal como no já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-11-2021, Revista n.º 1360/20.2T8PNF.P1.S1, afirmou-se a necessidade excecional de lançar mão dos fundamentos de facto para fixar o sentido da decisão, que vai ser considerada prejudicial em relação a outro processo e à qual vai ser atribuída a autoridade do caso julgado.
7. [8.] No caso, tendo já a decisão proferida no recurso de revisão, datada de 16-04-2019, negado provimento ao recurso, por entender não ter ficado demonstrada a falsidade do recibo apresentado pelo réu, o que foi confirmado pelo Tribunal da Relação e pelo Supremo Tribunal de Justiça – factos provados n.ºs 14, 18 e 20 – esta decisão impõe-se enquanto autoridade do caso julgado sobre os presentes autos, por se tratar de questão prejudicial já decidida e que influi na presente ação, na medida em que aqui se discute um direito de indemnização que tem como pressuposto a falsidade de documento já decidida, em sentido negativo, naquele recurso de revisão.
O recurso de revisão define-se por ser, como vimos, um misto entre recurso e ação, e apesar de ter ficado na fase rescidente, não tendo havido lugar à abertura da fase rescisória, a verdade é que naquele recurso de revisão foi decidido que o recibo de vencimento, que serve de causa de pedir aos presentes autos, não constitui um documento falso.
Assim, uma nova discussão sobre a falsidade desse documento noutro processo está vedada pela autoridade do caso julgado, impondo-se a decisão proferida no recurso extraordinário de revisão sobre o litígio dos presentes autos.
Verifica-se entre os dois processos uma relação de prejudicialidade, a que não se opõe a circunstância de à data da proposição da ação de responsabilidade civil, que o recorrente decidiu separar da ação penal ao abrigo do artigo 72.º do CPP, estar pendente contra o agora réu processo crime por falsificação de documento e por burla qualificada. O argumento, alegado pelo recorrente, de que a decisão proferida na ação cível ou laboral não tem eficácia preclusiva sobre o processo penal, onde vigora o princípio da liberdade de investigação, não tem por consequência que a ação cível, separada do processo penal, não possa ser afetada pela autoridade de caso julgado de uma decisão proferida no processo laboral, como qualquer outra ação cível, uma vez que perde a natureza penal a partir do momento em que é autonomizada do processo crime e sujeita-se às mesmas regras de todas as ações cíveis. Neste sentido, afirma Cristina Dá Mesquita (in «Prova na ação de responsabilidade civil fundada na prática de crime e factos provados na fundamentação da sentença penal», Revista Julgar On line, janeiro de 2018, p. 1, [...] que «O direito processual penal não compreende qualquer norma que legitime específicos efeitos das sentenças penais nos julgamentos civis supervenientes, nem prevê condicionantes da marcha das ações de responsabilidade civil fundada na prática de um crime instaurada em separado do processo penal, a qual corre independentemente do processo penal e é exclusivamente regulada pelas leis civis (substantiva e adjetiva)».(…) «(…) o ordenamento tem subjacente a suscetibilidade de pendência simultânea de dois processos independentes fundados em factos constitutivos similares, um sobre a responsabilidade criminal e outro relativo à responsabilidade civil. Hipóteses em que a tramitação da ação civil é exclusivamente regulada pela lei processual civil, em sintonia com a sua independência. (Ibidem, p. 7) (…) «A decisão do tribunal penal sobre o crime não configura uma questão prejudicial da responsabilidade civil fundada na prática de um crime pois a resolução daquela não «constitui pressuposto necessário da decisão de mérito» do tribunal civil». (Ibidem, p. 8).
Improcedem assim todas as conclusões de recurso da alegação do recorrente Sporting Clube de Braga."
[MTS]