Procedimento cautelar;
inutilidade superveniente da lide
1. O sumário de RL 13/7/2023 (2809/22.5T8CSC.L1-8) é o seguinte:
I - O procedimento cautelar comum visa a tutela provisória de um direito ameaçado, através da adopção de medidas adequadas a evitar o risco do perecimento desse direito, decorrente da demora no processamento da acção principal;
II - Se os comportamentos que se pretendem inibir com as providências requeridas já tiveram lugar e são de execução imediata (e não continuada ou repetida), terá de concluir-se que já ocorreram os danos irreparáveis ou de difícil reparação que justificavam o pedido, estando consumada a lesão;
III - Nesta situação, deixa de existir o fundamento da providência e fica frustrada a utilidade do procedimento cautelar, extinguindo-se a instância por inutilidade superveniente da lide;
IV – Fora dos casos de inversão do contencioso (art.º 369.º do CPC), não é viável nem admissível, por contrariar a finalidade própria das providências cautelares, a instauração de um procedimento cautelar com o qual não se visa, apenas, dar utilidade ou eficácia à decisão a proferir na acção principal, mas antes obter uma decisão definitiva do litígio, alcançando um efeito que é, precisamente, aquele que se pretende na acção principal.
2. No relatório e na fundamentação do acórdão (que tem um voto de vencido) afirma-se o seguinte:
"I – RELATÓRIO 1.1. A recorrente J, LDA.. instaurou procedimento cautelar comum contra C e B, formulando os seguintes pedidos: «I – A condenação das requeridas no reconhecimento da ineficácia da solicitação do pagamento do valor corporizado na garantia bancária reproduzida sob doc. n.º 2; II - A suspensão do pagamento à requerida B do indicado valor, até trânsito em julgado da ação principal de que o presente procedimento cautelar comum é incidente preliminar e que a requerente vai instaurar oportunamente no qual peticionará a declaração de incumprimento do Contrato-Promessa e correspondente pedido de indemnização por danos causados; IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO 4.1. Comecemos por analisar se a instância se tornou supervenientemente inútil, uma vez que de tal depende a pertinência da apreciação das demais questões supra enunciadas. A questão foi tratada, no recente acórdão desta Relação de 25.05.2023, proferido no âmbito do Proc. n.º 2810/22.9T8CSC.L1, em que foi relator o aqui, também, relator, em situação em tudo similar à dos presentes autos, não se vislumbrando razões para que deva merecer entendimento diverso. Desta forma, limitamo-nos a reproduzir a argumentação já expendia no referido acórdão. A inutilidade superveniente da lide é uma causa de extinção da instância (art. 277.º, al. e) do CPC), que ocorre quando o efeito pretendido é alcançado por via diversa, sendo o caso mais típico o do pagamento da quantia peticionada na pendência da causa ou, em geral, o cumprimento espontâneo da obrigação. É este o sentido que a doutrina e a jurisprudência têm dado ao conceito em análise. Assim, por exemplo, Lebre de Freitas, Rui Pinto e João Rendinha, in Código de Processo Civil Anotado, I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2008, p. 555, referem que «(…) a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por já ter sido atingido por outro meio». O acórdão do STA, de 30.07.2014, in www.dgsi.pt., considerou que «A inutilidade superveniente da lide (que constitui causa de extinção da instância - al. e) do art.º 277º do CPC) verifica-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido atingido por outro meio». O acórdão da RC de 05.12.2012, in www.dgsi.pt, decidiu que «I – A instância extingue-se sempre que se torne supervenientemente inútil, i.e., sempre que por facto ocorrido na pendência da instância, a continuação da lide não tenha qualquer utilidade (artº 287 e) do CPC). II - A instância extingue-se ou finda de forma anormal todas as vezes que, ou por motivo atinente ao sujeito, ou por motivo atinente ao objecto, ou por motivo atinente à causa, a respectiva relação jurídica substancial se torne inútil, i.e., deixe de interessar a sua apreciação». A inutilidade da lide é, portanto, simples reflexo, no plano processual, da inutilidade da relação jurídica substancial, quer esta inutilidade diga respeito ao sujeito, ao objecto ou à causa. Sempre que o efeito jurídico que se pretendia obter com a acção se mostre supervenientemente inútil, o processo não deve continuar, mas sim cessar. Neste caso, o tribunal não conhece do mérito da causa, limitando-se a declarar aquela extinção. Ora, através do presente procedimento cautelar, a Requerente formulou os seguintes pedidos:
Sucede que, após a prolação da decisão recorrida, mas ainda antes do seu trânsito em julgado, a Requerida C pagou à Requerida B a quantia €1.634.331,80, no âmbito da garantia bancária n.º 2019.1436.036. Tal pagamento tornou, inequivocamente, inútil a lide quanto às providências requeridas nos pontos II e III. Com efeito, o procedimento cautelar visa, como se sabe, a tutela provisória de um direito ameaçado, através da adopção de medidas adequadas a evitar o risco do perecimento desse direito, decorrente da demora no processamento da acção principal. A função das providências cautelares é preventiva, pois que visam evitar que se consuma uma lesão grave e dificilmente reparável. O periculum in mora, pressuposto essencial para o decretamento de providências cautelares não especificadas (cfr. art. 362.º, n.º 1 do CPC), como as requeridas in casu, traduz-se no perigo de ocorrência de lesão ou dano para o Requerente resultante da demora da tutela do seu direito na acção principal e constitui o fundamento que legitima a concessão de uma medida cautelar. Com as providências requeridas (pontos II e III), pretendia a Requerente garantir que, até à decisão final a proferir na acção principal, não se concretizasse o pagamento da garantia bancária em causa. Ora, se o comportamento que se pretendia inibir teve lugar e é de execução imediata (e não continuada ou repetida), terá de concluir-se que já ocorreram os danos irreparáveis ou de difícil reparação que justificavam o pedido, estando consumada a lesão. Estando concretizado esse pagamento e consumada a lesão, as referidas providências não têm razão de ser. E se é certo que os efeitos do evento danoso já consumado podem prolongar-se no tempo, não menos certo é que não são as providências concretamente requeridas que evitarão que esses efeitos continuem a produzir-se, não sendo adequadas a evitá-lo. Conforme escreve Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, III, Almedina, 1998, p. 89 «estão, pois, de fora da protecção concedida pelo procedimento cautelar comum as lesões de direitos já inteiramente consumadas, ainda que se trate de lesões graves», sendo que, só relativamente a lesões continuadas ou repetidas, é possível uma decisão que previna a continuação ou repetição de actos lesivos. Enfim, visando a providência cautelar acautelar lesões futuras, não deverá ser decretada nos casos em que, no decurso do procedimento cautelar, venha a ocorrer a lesão que se visava evitar. Nestas situações, deixa de existir o fundamento da providência e fica frustrada a utilidade do procedimento cautelar, extinguindo-se a instância por inutilidade superveniente da lide. Neste sentido, veja-se o acórdão desta Relação de 16.06.2015, in www.dgsi.pt., onde se decidiu que «a inutilidade superveniente da lide ocorre quando no processo da providência intentada, a finalidade que se preconizava salvaguardar venha a ficar vazia de conteúdo, por se ter perdido o seu efeito útil». De resto, refira-se, tal entendimento não é negado pela Requerente, que, no requerimento a que se aludiu no ponto 1.7., se limita defender a utilidade da lide quanto às providências requeridas no ponto I e IV. Vejamos, então, se quanto a estas a instância mantém utilidade. Sob o ponto I do petitório, pretende a Requerente: «I – A condenação das requeridas no reconhecimento da ineficácia da solicitação do pagamento do valor corporizado na garantia bancária reproduzida sob doc. n.º 2». A Requerente, considera que, quanto a este primeiro pedido, a instância mantém interesse porque «o primeiro pedido implica o reconhecimento de ambas as requeridas da ineficácia da solicitação de pagamento – o que tem efeitos jurídicos para qualquer uma das requeridas imediato, independentemente de actos de pagamento, e que pode ser decidido em recurso». Não tem, contudo, razão. É que o entendimento da Requerente assenta no pressuposto - errado - de que, sob o ponto I, é requerida uma verdadeira providência «conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado», isto é, uma medida provisória destinada a acautelar prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação. Sucede que, na verdade, sob o referido ponto I, a Requerente limita-se a transpor para o petitório o pressuposto ou a causa justificativa das medidas inibitórias que requerer sob os pontos II e III: reconhecer a “ineficácia da solicitação do pagamento” do valor garantido não constitui uma medida cautelar no sentido mencionado, pois que tal reconhecimento não visa, por si só, acautelar o efeito útil da decisão (este seria alcançado pelas medidas requerida sob os pontos II e III), antes sendo o mero pressuposto da requerida suspensão de pagamento e/ou ordem de não pagamento. Ora, como se viu supra, o evento que se traduzia na invocada lesão grave e dificilmente reparável do direito acabou por se verificar (pagamento da garantia), o que esvazia de conteúdo a finalidade preconizada pela Requerente com o pedido deduzido no ponto I. De que serve condenar as requeridas no reconhecimento da ineficácia da solicitação do pagamento (como peticiona a Requerente), se esse pagamento já ocorreu e se era este pagamento que constituía o dano que a Requerente pretendia prevenir? Tal “condenação” não teria qualquer efeito prático, em face do “periculum in mora” invocado e que constitui o fundamento da providencia, pelo que qualquer decisão nesse sentido (ainda que provisória) seria meramente “platónica”. O alegado interesse da Recorrente na apreciação da “ineficácia da solicitação do pagamento” não se alcança através da presente providência cautelar, que visa evitar uma lesão grave do direito, mas, quanto muito, através da acção definitiva a instaurar, onde se discutirá se o accionamento da garantia e o seu pagamento foram fundados, válidos ou eficazes. Enfim, a necessidade da tutela através da suposta providência requerida no ponto I do petitório já não se justifica, em face do pagamento concretizado, pelo que a decisão a proferir no procedimento cautelar, necessariamente provisória, não teria qualquer efeito útil. Por outras palavras, tendo a garantia sido satisfeita, deixou, pois, de interessar a apreciação da ineficácia da solicitação e, por conseguinte, a continuação da lide nessa parte. Não podemos olvidar que a inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, constitui uma emanação da proibição da prática de actos inúteis que, por sua vez, está relacionada com o princípio da economia processual. É proibida a prática de actos que, não tendo utilidade para a realização da função processual, o único efeito que teriam seria o de complicar o processo, impedindo-o de rapidamente atingir o seu termo. Veja-se, neste sentido, por exemplo, o acórdão da RG de 16.11.2017, in ww.dgsi.pt, onde se escreveu que «II- Emanação da proibição da prática de actos inúteis que, por sua vez, está relacionada com o princípio da economia processual, a inutilidade superveniente visa obstar a prática de actos absolutamente inúteis, ou seja, sem qualquer utilidade processual». Ora, resulta com linear evidência que, a partir do momento em que a garantia foi satisfeita, tornou-se inútil apreciar se o pedido de pagamento era ou não eficaz e se devia ou não ser paralisado. A instância tornou-se, pois, inútil, também no que concerne ao ponto I do petitório, em virtude do pagamento, o que se impõe declarar. Já quanto à providência requerida sob o ponto IV, cremos não poder extrair-se idêntica conclusão. É que, aqui a Requerente pretende, subsidiariamente, que «seja decretada a proibição de exercício de direito de regresso por parte da requerida C sobre a requerente por prestação da garantia executada em abuso de direito ou face à ineficácia da prestação da mesma, considerada a ilicitude de tal solicitação». Defende a Requerente que a Requerida C não lhe exigiu, ainda, o pagamento da quantia que pagou à B, pelo que a lide mantém interesse nesta parte, porquanto ainda poderá a Requerente não sofrer o prejuízo que ainda não sofreu e que é o de pagar à C a garantia indevidamente paga à B. Sendo o pedido formulado, precisamente, para o caso de se verificar o evento danoso (o pagamento da garantia), não se pode entender que a ocorrência dele tornou, supervenientemente, inútil a lide. A improcedência deste pedido decorrerá de outros factores, como se verá infra, mas não por o efeito jurídico que com ele se pretendia obter se ter tornado inútil. E, assim sendo, importará, apenas, prosseguir na apreciação do mérito do recurso quanto a este pedido (ponto IV). Aqui chegados, concluímos que a instância se tornou, supervenientemente, inútil no que concerne às providências requeridas sob os pontos I, II e II do petitório, o que determina a sua extinção (art.º 277.º al. e) do CPC), ficando, por decorrência, prejudicado o conhecimento do mérito do recurso interposto pela Recorrente. Como é consabido, a instância de recurso ou a lide recursória pode extinguir-se por inutilidade quando, por facto ocorrido na sua pendência, desapareceu o objecto do recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, caso em que não existe qualquer efeito útil na decisão a proferir por já não ser possível o fim visado ou este ter sido atingido por outro meio. É o que ocorre no caso dos autos, quanto aos pontos I, II e III, conclusão que retira fundamento à imputada litigância de má-fé da Requerida B (cfr. art. 9.º do requerimento apresentado pela Requerente em 03.05.2023)." [MTS] |