Execução para entrega;
restituição de imóvel arrendado; título executivo
I. O sumário de RP 16/5/2023 (142/22.1T8OVR.P1 (não publicado)) é o seguinte:
1- Não tendo, sobre uma questão concreta colocada, havido pronúncia, expressa ou
implícita, não há caso julgado a respeito da mesma.
2- O despacho de citação não forma caso julgado (formal) sobre a s questões que poderiam
justificar o indeferimento liminar da petição inicial.
3- O contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação que
desencadeou a resolução desse contrato por falta de pagamento de rendas, não constituem, atualmente,
título executivo bastante para desencadear o pedido de restituição coerciva do locado, no âmbito da
execução para entrega de coisa certa.
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Vejamos, agora, a segunda questão; isto é, se, na situação presente, há título executivo.
Esse título, na versão da Apelante, é constituído pelo contrato de arrendamento que celebrou
com o Executado e pela notificação judicial avulsa que lhe dirigiu (por ele recebida no dia
28/10/2021), dando-lhe conta de que resolvia aquele contrato com fundamento na falta de pagamento
de rendas e que era obrigação do mesmo entregar-lhe o locado e pagar-lhe 8.400,00€, a título de
rendas vencidas, bem como os respetivos juros, à taxa legal.
Com base nesta documentação, sustenta a Apelante que a lei lhe faculta o acesso direto à ação
executiva para a entrega do locado.
Mas, não é assim.
Efetivamente, nada há na lei atual que confira aos referidos documentos a natureza de título
executivo para a entrega de coisa certa; ou, mais especificamente, para a entrega do locado. [...]
Hoje, de facto, o senhorio continua a poder resolver o contrato de arrendamento, por falta de
pagamento de renda nas circunstâncias especificadas nos n.ºs 3 e 4, do artigo 1083.º, do Código Civil,
mediante comunicação à contraparte nos termos previstos no artigo 1084.º, n.º 2, do mesmo Código,
comunicação essa que, nos termos do artigo 9.º, n.º 7, al. a), da referida Lei n.º 6/2006, na redação
atual, pode ser feita através de notificação judicial avulsa, mas a documentação usada para o efeito, ao
contrário do que antes sucedia, já não é idónea para servir de título à execução para entrega de coisa
certa. É idónea, sim, entre o mais, para servir de fundamento ao procedimento especial de despejo,
como resulta do disposto no artigo 15.º, n.º 2, al. e), da mesma Lei n.º 6/2006, na redação que lhe foi
dada pela Lei n.º 31/2012, e aí dar azo ao título para desocupação do locado (artigo 15.º-E), mas, repetimos, não serve de título executivo para a instauração de execução para entrega de coisa certa,
nos termos previstos nos artigos 703.º, n.º 1, al. d) e 862.º, do CPC.
A sentença recorrida, de resto, explica-o bem, tal como a sua razão de ser, pelo que não se
justificam maiores desenvolvimentos, que aqui seriam entendidos como mera repetição do que ali é
referido, ainda que por outras palavras.
Por outro lado, como também aí dito, esta é a orientação claramente predominante na doutrina
e jurisprudência, de que se destacam, para além dos elementos indicados na mesma sentença, também
Rui Pinto [A Ação Executiva, 2018, AAFDL, pág. 227, nota 591], Maria Olinda Garcia
[Arrendamento Urbano Anotado, 2ª Edição, Coimbra Editora, pág. 196], Jorge Pinto Furtado
[Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, 2ª Edição revista e atualizada, Almedina, pág.
849], Ac. STJ de 14/09/2021, Processo n.º 407/19.0T8ENT.E1.S1, Ac. RG de 29/09/2022, Processo
n.º 1620/22.8T8VNF.G1 e Ac. RP de 24/11/2022, Processo n.º 17414/21.5T8PRT-A.P1, todos
consultáveis em www.dgsi.pt.
Não ignoramos, com isto, que há decisões jurisprudenciais que já se pronunciaram em sentido
contrário. Particularmente, o Ac. RP de 24/09/2020, Processo n.º 8231/16.5T8PRT.P1 [com
comentário em sentido divergente de Miguel Teixeira de Sousa, Blog do IPPC, de 23/04/2021], o voto
de vencido exarado no Ac. RC de 14/06/2022, Processo n.º 1060/21.6T8ANS.C1 e o Ac. RP de
26/09/2022, Processo n.º 452/22.8T8AGD.P1, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
Porém, os argumentos que aí são usados para conferir força executiva aos ditos documentos
[no âmbito da execução para entrega de coisa certa] são facilmente rebatíveis, porque até, nalguma
medida, contraditórios.
Na verdade, como se refere no já citado AC. RP de 24/11/2022, “[s]e se entende que o artigo
15.º, n.º 2, alínea e), do NRAU, é a disposição especial que atribui aos documentos do contrato e da
comunicação para pagamento das rendas em dívida valor de título executivo para instauração de uma
execução para entrega do locado, então não necessitamos que sustentar que se tais documentos servem
para fundar o procedimento especial de despejo devem servir por maioria de razão para títulos
executivos de uma execução para entrega de coisa certa. Só necessitamos de usar o argumento por
maioria de razão se admitirmos que a norma não afirma tal coisa, mas que por interpretação extensiva
a sua solução deve ser aplicável a uma situação não prevista a fortiori. Por isso, este argumento admite
implicitamente o contrário do que afirma: a norma legal em questão não é uma disposição que atribua
valor de título executivo aos documentos em apreço para efeitos de execução para entrega do locado”.
Por outro lado, como se refere também no mesmo Aresto, “[a] redacção anterior das normas
legais e o cuidado revelado pela autonomização em preceito próprio (o artigo 14.º-A) das situações em
que os documentos relativos ao arrendamento são títulos executivos e para que finalidade, significam,
a nosso ver, que o legislador tinha presente e decidiu de modo expresso o que quis que fosse título
executivo e para que finalidade”.
Acresce que – continua o mesmo Aresto – “também não colhe o argumento de que se esses
documentos servem para instruir o procedimento especial de despejo devem servir por maioria de
razão de títulos executivos de uma execução para entrega de coisa certa.
Em primeiro lugar porque o procedimento especial de despejo não é um puro procedimento
administrativo. O Balcão Nacional do Arrendamento é uma secretaria judicial com competência
exclusiva para a tramitação do procedimento especial de despejo em todo o território nacional (art.º 2.º
do Decreto-lei n.º 1/2013). O procedimento inicia-se com a apresentação no Balcão Nacional do
Arrendamento de um requerimento electrónico de despejo, no qual poderá incluir-se o pedido de
pagamento das quantias em dívida, instruído com a comunicação de resolução do contrato e o contrato
de arrendamento. O arrendatário é depois notificado para desocupar o locado, pagar a quantia que tiver
sido pedida, deduzir oposição e ou requerer o diferimento da desocupação do locado.
No caso de não ser deduzida oposição nos termos legais ou de não serem pagas as rendas
devidas, na pendência do procedimento especial de despejo, o Balcão converterá o requerimento de
despejo em título para desocupação do locado, o qual passará a fundar a realização imediata da
diligência de desocupação do locado (sujeita a prévia autorização judicial nos casos previstos no art.º
15.º-L).
Se o arrendatário deduzir validamente oposição ao procedimento especial de despejo, os autos
serão remetidos à distribuição no tribunal competente. Recebidos os autos, o juiz pode convidar as
partes a aperfeiçoarem as peças processuais ou apresentarem novo articulado sempre que tal seja
necessário para garantir o contraditório. Se o juiz não julgar logo procedente alguma excepção
dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou não decida logo do mérito da causa, ordenará a
notificação das partes da audiência de julgamento. Na audiência de julgamento, se se frustrar a
tentativa de conciliação das partes, produzir-se-ão as provas que ao caso couberem. A sentença, que
deverá ser logo ditada para a acta, no caso de julgar a oposição improcedente, constituirá determinação
de desocupação do locado.
Estamos, assim, perante um procedimento que nas palavras de Rui Pinto (obra citada, páginas
1160 e 1169) tem a natureza de um “processo especial sincrético”, isto é, simultaneamente declarativo e executivo, que se inicia com uma fase injuntória a que poderá seguir-se uma fase contenciosa, tendo
em vista a formação de um título executivo, prosseguindo, se for o caso, com uma fase executiva,
destinada à realização coactiva do direito à entrega do locado. A fase contenciosa, que se abre se for
deduzida pelo arrendatário oposição ao requerimento de despejo, é “uma fase declarativa pura perante
um juiz” (Rui Pinto, obra citada, pág. 1191), constituindo assim um processo declarativo especial, a
que se aplicarão, nos termos do art.º 549.º n.º 1 do CPC, no que não estiver especialmente regulado, as
regras gerais e comuns do Código do Processo Civil e, se for o caso, as regras do processo comum
(Rui Pinto, obra citada, pág. 1191).
Em segundo lugar, porque existe uma diferença significativa entre um documento particular
servir para fundar a instauração de um procedimento com aquela natureza – em que, como vimos, a
formação do título que há-de permitir a entrega do locado ocorre apenas depois do exercício do
contraditório e pressupõe ou a ausência de oposição ou a realização de uma audiência de julgamento e
a prolação de uma sentença judicial – e o mesmo documento particular servir para permitir de
imediato o acesso a uma acção executiva sem que haja um acertamento prévio da obrigação que é
aquilo que justifica e caracteriza o título executivo.
Na primeira situação, os documentos servem apenas para fundar o acesso ao
procedimento porque se pretendeu que o requerimento electrónico esteja baseado em documentos que
revelem os factos alegados. Por isso basta que o requerido deduza oposição para que
independentemente dos documentos tenha de haver uma decisão judicial que confirme o direito
reclamado pelo requerente. Já na segunda situação, os documentos possuem determinadas
características de acertamento da obrigação a cargo do devedor que se permite que de imediato o
credor desencadeie os mecanismos para a realização coerciva do seu direito. Por isso, cabe ao
executado deduzir oposição e demonstrar os pressupostos dos fundamentos da oposição deduzida para
afastar o valor dos documentos. É essa absoluta diferença de situações que impede, a nosso ver, o
argumento por maioria de razão”.
De modo que, em resumo, concordando inteiramente com esta posição, podemos reiterar a
conclusão já adiantada, no sentido de que, atualmente, não há base legal para considerar que, em caso
de resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas, por comunicação do
senhorio, essa comunicação, acompanhada daquele contrato, constituam título executivo bastante para
compelir à restituição do locado, no âmbito da execução para entrega de coisa certa."
[MTS]
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