"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/03/2024

Jurisprudência 2023 (139)


Acção de simples apreciação;
interesse processual


1. O sumário de RC 27/6/2023 (55/21.4T8LSA.C1) é o seguinte:

I - O interesse em agir consiste, em termos gerais, na necessidade de fazer uso do processo, de instaurar ou fazer prosseguir uma determinada acção com vista a obter uma decisão sobre um direito que se afigura controvertido ou duvidoso.

II - Nas acções de simples apreciação que se destinam, conforme resulta do disposto no artº 10, nº3, al. a) do C.P.C., a obter unicamente a declaração da existência ou inexistência dum direito ou dum facto, o interesse em agir afere-se não só pela necessidade de tutela jurídica desse direito, como pela adequação da providência solicitada à tutela do direito invocado.

III - A inscrição de prédios rústicos omissos na matriz é da competência dos serviços de Finanças e efectua-se mediante processo submetido ao Balcão Único do Prédio ou ao serviço de Finanças da área, de acordo com a Lei nº 78/2017, de 17 de Agosto, e da Lei nº 65/2019, de 23 de Agosto, sem que desse processo resulte qualquer prévia obrigação de obtenção de sentença judicial de reconhecimento do direito de propriedade dos AA.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A questão a decidir consiste unicamente em apurar se os AA. têm interesse processual em agir nos presentes autos.

A este respeito considerou a decisão recorrida que os AA. não tinham interesse no uso do processo por inexistir qualquer conflito de interesses entre AA. e R., e o uso deste meio processual não tutelar o direito invocado, que consiste na pretensão de inscrição do imóvel na matriz e na sua descrição predial, constituindo o primeiro pedido condição prévia desta pretensão. O tribunal recorrido fundamentou a sua posição considerando que “o pressuposto processual inominado de interesse em agir traduz-se, por um lado, na necessidade do autor de recorrer a juízo para obter a tutela do direito a que se arroga e concretamente de usar a acção escolhida para esse efeito, sendo um pressuposto processual autónomo, que sendo distinto da legitimidade, tem em comum com ela o dever ser aferido objectivamente pela posição alegada pelo autor, e por outro lado, esta necessidade de “usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção” não tem de ser uma necessidade absoluta, muito embora também não possa limitar-se a um qualquer interesse por vago e remoto. Terá antes de ser um ponto intermédio entre aquelas duas situações.

Ou seja, uma necessidade justificada, razoável e fundada de lançar mão do processo e de fazer prosseguir aquela acção em concreto A este propósito refere-se que o interesse em agir pressupõe a idoneidade da providência requerida para a reintegração ou tanto quanto possível integral satisfação do direito invocado pelo autor”.

Os AA. contrapõem que sendo esta uma acção de simples apreciação positiva, “não pressupõe qualquer lesão ou violação de um direito, são meios de tutela de direitos em que não é posta em causa a sua violação, quer efectiva, quer receada.” e, por outro lado, que necessitam “da declaração judicial da existência do seu direito, sem a qual, não lhe é possível registar o prédio”, pelo que ao abrigo do princípio da tutela jurisdicional efectiva consagrado no artº 20 nº5 da Constituição, deve ser proferida decisão que declare que os AA. são proprietários deste imóvel.

Apreciando a questão colocada em recurso, o interesse em agir consiste, em termos gerais, na necessidade de fazer uso do processo, de instaurar ou fazer prosseguir uma determinada acção com vista a obter uma decisão sobre um direito que se afigura controvertido ou duvidoso [Antunes Varela, Manual do Processo Civil, 2ª edição revista e ampliada, Coimbra Editora, pág. 179 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma de Processo Civil, Almedina 1997, pág. 230.], uma vez que nos termos do disposto no artº 2 do C.P.C. (em obediência ao princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva), a todo o direito deve corresponder uma dada acção.

Nas acções de simples apreciação que se destinam, conforme resulta do disposto no artº 10, nº3, al. a) do C.P.C., a “obter unicamente a declaração da existência ou inexistência dum direito ou dum facto”, refere ANTUNES VARELA [Ob. cit., págs. 186/187.], “que não basta qualquer situação subjectiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto, para que haja interesse processual na acção.” Nesta medida, a “a incerteza contra a qual o autor pretende reagir deve ser objectiva e grave”, decorrente de factores exteriores ao agente, geradores de incerteza quanto ao seu direito. Entre estes factos indica ANTUNES VARELA, a “a firmação ou negação de um facto, o acto material de contestação de um direito, a existência de um documento falso” entre outros. Já a gravidade terá de resultar do prejuízo que a situação de incerteza cause no autor.

As acções em que se visa a declaração e o reconhecimento de um direito de propriedade por usucapião assumem, ao mesmo tempo, natureza declarativa e constitutiva. Neste tipo de acções, cabe à parte que faz uso do processo, o ónus de alegar factos constitutivos do seu direito, a necessidade de tutela jurídica desse direito e a adequação da providência solicitada à tutela do direito invocado. Ou seja, alegar factos de onde resulte não só o interesse no objecto do processo, mas também no uso do processo.

Assim sendo, existe interesse processual em agir de um determinado autor quando dos factos alegados decorra, no confronto daquele demandado, uma necessidade justificada não só no objecto do processo, mas no processo em si. Como assinala CASTRO MENDES [CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, II Vol., AFDL, 1987, págs. 232 e segs.] o requerente tem de invocar um direito, ou interesse juridicamente protegido; mas teria de invocar ainda achar-se o seu direito em situação tal, que necessita do processo para a sua tutela”.

Quer isto dizer, que os AA. teriam de alegar factos de onde resultasse uma situação objectiva e grave de incerteza do direito que se arrogam, um conflito de interesses com esta R., justificativa da necessidade de tutela realizada por meio desta acção e a que corresponderia equivalente interesse em contradizer por parte da demandada. Não é o caso. Os AA. não invocam um único facto do qual resulte que a R. impugna ou coloca em dúvida por qualquer meio, o direito de propriedade dos AA.

A necessidade de obtenção de tutela jurídica resulta não da dúvida ou incerteza do direito de propriedade dos AA., mas da invocada necessidade de obtenção de título (sentença judicial que declare o direito de propriedade dos AA.) para obter a sua inscrição na matriz e no registo predial.

No entanto, os procedimentos com vista à inscrição de imóveis na matriz predial, são da competência da Administração Tributária, alheios a esta R. e não se inserem na esfera de competência material dos tribunais cíveis, conforme bem elucida a sentença recorrida. 

Nesta medida, nem os AA. têm interesse em agir, nem a R. tem qualquer interesse em contradizer. A sua posição como R. nesta acção é meramente aparente, pela inexistência de alegação de qualquer facto que indique um conflito de interesses. É assim forçoso concluir, como a primeira instância que “visto o pedido e a respectiva causa de pedir concreta nos termos explanados atrás, é inegável que os autores justificam a instauração da acção tão somente apenas na circunstância de os autores serem os únicos e legítimos proprietários e possuidores do imóvel descrito atrás, por via da sua aquisição originária, por usucapião, e ao mesmo tempo, na circunstância de não possuírem um título que lhes permita legalizar a sua propriedade nas Finanças e na Conservatória do Registo Predial, em virtude de o prédio ter ficado omisso na matriz predial, na avaliações gerais de prédios rústicos ocorrida no concelho ... no ano de 1990, com a agravante de o Serviço de Finanças não estabelecer correspondências com artigos da anterior matriz (e em relação a cuja acção de mera apreciação positiva a ré não ofereceu contestação). Disto resulta que os autores não aduzem aí, de todo, na petição inicial corrigida qualquer motivo sério/conflito de interesses existente entre eles e a ré que justifique que recorram aos meios judiciais (ou seja, instaure a presente acção de apreciação positiva) de modo a obter a tutela judicial”.

Acresce que, ao contrário do que invocam os AA. que diga-se, apenas recorrem da decisão quanto ao primeiro pedido formulado e já não quanto ao pedido para que este tribunal ordenasse “ao Serviço de Finanças e à Conservatória do Registo Predial que actuem em conformidade com o doutamente decidido, designadamente, proceder à inscrição na respectiva matriz e descrição no registo”, esta pretensão é inócua quanto à pretensão contida nessa alínea e que é afinal invocada como constituindo a causa da necessidade de tutela dos AA.  

Conforme referido, a inscrição de prédios rústicos omissos na matriz é da competência dos serviços de Finanças e efectua-se mediante processo submetido ao Balcão Único do Prédio ou ao serviço de Finanças da área, de acordo com a Lei nº 78/2017, de 17 de Agosto, e da Lei nº 65/2019, de 23 de Agosto, sem que desse processo resulte qualquer prévia obrigação de obtenção de sentença judicial de reconhecimento do direito de propriedade dos AA.

Nestes termos e conforme consta dos artºs 13 e segs da Lei 78/2017 de 17 de Agosto e dos artºs 58, 59 da Lei Geral Tributária (LGT) e 48 do Código do Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e 13 do Código Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), deve ser entregue pelo requerente para inscrição de prédio omisso na matriz os seguintes elementos:

a) Representação gráfica georreferenciada (RGG) elaborada por técnico habilitado, que substitui o levantamento topográfico (conforme documentos de instrução do pedido no BUPi que constam do anexo I);

b) Declaração de participação de inscrição de prédio rústico omisso, com aceitação dos limites do prédio de, pelo menos, um confinante, devidamente identificado com o NIF e a indicação do artigo matricial do seu prédio, a fim de que seja assegurada a existência do prédio a inscrever (conforme modelo do anexo II).

(…) para a inscrição matricial de prédios rústicos omissos situados em concelhos em que já vigore o Sistema de Informação Cadastral Simplificado, a declaração do sujeito passivo deve ser acompanhada da RGG do prédio a inscrever, que substituirá o levantamento topográfico, e de declaração de aceitação de, pelo menos, um dos proprietários confinantes.

Só se dispensará a declaração de, pelo menos, um dos confinantes se a RGG tiver sido validada (conforme art.º 7.º da Lei n.º 65/2019, de 23 de agosto, e do art.º 10.º do Decreto Regulamentar n.º 9-A/2017, de 3 de novembro, na sua atual redação), o que significa que todas as estremas devam estar desenhadas e confirmadas pelos proprietários confinantes sem qualquer sobreposição. Se a RGG estiver validada com reservas o interessado deve juntar ao processo a declaração de, pelo menos, um confinante, não se dispensando neste caso esta formalidade. A declaração para inscrição de prédio rústico omisso, acompanhada dos referidos elementos instrutórios, terá como resultado a inscrição do prédio, com a atribuição do correspondente artigo matricial, ainda que condicionado à fixação do valor patrimonial tributário, nos termos dos artigos 31º e seguintes do CIMI, e à conclusão dos procedimentos especiais consagrados no SICS, aplicando-se para o efeito o previsto no n.º 2 do artigo 24.º da Lei n.º 78/2017, de 23 de agosto.” [Orientação Técnica nº 1/BUPi [AT-eBUPi] | INSCRIÇÃO DE PRÉDIOS RÚSTICOS OMISSOS, Autoridade Tributária Aduaneira.]

Decorre do exposto que não existindo qualquer litigiosidade em relação ao direito de propriedade invocado pelos AA. e não sendo esta a providência adequada à tutela do seu direito (que consiste afinal na inscrição do imóvel na matriz predial e posterior descrição no Registo Predial, a obter posteriormente à inscrição, mediante o processo de justificação previsto no artº 116 e segs do C.R.Predial), cumpre declarar improcedente o recurso e confirmar a sentença proferida."

[MTS]