Processo executivo;
confissão da dívida; habitação
1. O sumário de RG 10/7/2023 (2631/10.1TBBCL-B.G1) é o seguinte:
A confissão operada pelo executado originário impõe-se indiscutivelmente aos executados entretanto habilitados no processo de execução, pelo que, a ulterior dedução de oposição à execução por parte destes últimos, com base em fundamentos que envolvam a discussão da dívida que o executado originário, entretanto falecido, reconheceu como sua, configura uma utilização abusiva do direito de embargar, como sucede com a invocada ineptidão do requerimento executivo, com a impugnação da existência da dívida exequenda, e respetiva exigibilidade, em virtude do alegado desconhecimento por parte dos embargantes da prévia interpelação do obrigado no título aquando do preenchimento da livrança entregue em branco.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"2.2. Importa [...] aferir se o acordo para o pagamento a prestações da dívida exequenda realizado no âmbito do processo executivo já pendente, consubstanciado no requerimento conjunto das partes, aludido em 1.2.2., condiciona, e em que moldes, o direito de posteriormente vir a ser deduzida oposição, mediante embargos, a essa mesma execução, por parte dos ora embargantes, entretanto habilitados nos autos, como únicos e universais herdeiros do executado falecido, invocando a exceção de prescrição da alegada dívida que a exequente vem agora pretender cobrar por força do alegado incumprimento do acordo de pagamento; a exceção da ineptidão do requerimento executivo; a impugnação da existência da dívida exequenda, e respetiva exigibilidade, em virtude do alegado desconhecimento por parte dos embargantes da prévia interpelação do obrigado no título aquando do preenchimento da livrança entregue em branco.
Dizem-se «ações executivas» aquelas em que o credor requer as providências adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida (artigo 10.º, n.º 4, do CPC), tendo em vista determinado fim que, para o efeito do processo aplicável, pode consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, quer positivo quer negativo (artigo 10.º, n.º 6, do CPC) [---]
Funcionalmente ligado ao processo executivo, ainda que estruturalmente autónomo do mesmo, encontramos ainda o incidente de oposição à execução mediante embargos, atualmente regulado em termos gerais nos artigos 728.º a 734.º do CPC, elencando os artigos 729.º, 730.º e 731.º os fundamentos invocáveis pelo executado no âmbito da oposição à execução baseada, respetivamente, em sentença, em decisão arbitral ou noutro título. [...]
No caso, os autos revelam-nos que não houve citação prévia do executado EE, à luz do regime processual vigente aquando da instauração da execução, nem o mesmo executado veio deduzir oposição à execução.
Sucede que, após realização pelo agente de execução de diversas diligências tendentes à identificação ou localização de bens penhoráveis, o exequente e o executado, EE, apresentaram no processo um requerimento (ref.ª citius ...78) contendo acordo para pagamento em prestações da quantia exequenda, em 60 prestações mensais e sucessivas, nos termos do disposto no artigo 806.º do CPC, sendo 12 prestações de 50,00€, 12 prestações de 70,00€ e 36 prestações de 120,00€ cada, a primeira com vencimento em 28 de abril de 2013 e a última em 28 de março de 2018, mais acordando que a falta de pagamento de qualquer das prestações nas datas referidas importa o vencimento imediato das restantes prestações, podendo a exequente, ao abrigo do artigo 808.º do CPC requerer a renovação da instância.
Nessa sequência, por decisão do Agente de execução, datada de 14-03-2014 foi declarada a extinção da instância executiva nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 806.º do CPC, atento o acordo celebrado nos autos por exequente e executado.
Nos termos do disposto no artigo 806.º, n.º 1 do CPC, exequente e executado podem acordar no pagamento em prestações da dívida exequenda, definindo um plano de pagamento e comunicando tal acordo ao agente de execução, mais dispondo o n.º 2 do mesmo preceito que a comunicação prevista no número anterior pode ser apresentada até à transmissão do bem penhorado ou, no caso de venda mediante proposta em carta fechada, até à aceitação de proposta apresentada e determina a extinção da execução.
No regime legal em referência, o acordo de pagamento em prestações assume a natureza de transação, nos termos do artigo 277.º, al. d) do CPC, embora o seu âmbito sui generis (art. 284º) permita que a causa possa não cessar irreversivelmente (art. 808º, nº 1). Assim, a circunstância de a instância extinta poder ser renovada não afasta a qualificação de tal acordo de pagamento como transação [---]
Desta forma, o acordo pelo qual o executado EE admitiu o pagamento em prestações da quantia exequenda em 60 prestações mensais e sucessivas, mais acordando com a exequente que a falta de pagamento de qualquer das prestações nas datas referidas importava o vencimento imediato das restantes prestações, podendo a exequente, ao abrigo do artigo 808.º do CPC requerer a renovação da instância, configura a confissão por parte do executado de que é devedor da referida quantia junto da exequente, constituindo uma confissão de dívida no âmbito do processo executivo e tornando exigível a obrigação nos termos aí acordados entre as partes [Neste sentido, cf. o Ac. TRE de 21-12-2017 (relatora: Isabel de Matos Peixoto Imaginário), p. n.º 4741/11.9YIPRT-A. E1; e jurisprudência nele citada, disponível em www.dgsi.pt.]
No caso, a 1.ª instância entendeu, no essencial, que, não tendo o falecido/executado EE, quando confrontado processualmente com a sua existência, deduzido embargos a esta execução, antes confessado essa dívida reclamada pelo exequente, a dedução de embargos à execução por parte dos seus herdeiros configura um abuso do direito processual de embargar, pois conflitua com a transação já junta aos autos, assim julgando precludido esse meio de defesa.
O artigo 334.º CC com a epígrafe «Abuso do direito» dispõe que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Tal como decorre do citado preceito legal, a verificação do abuso do direito pressupõe o exercício anormal, excessivo ou ilegítimo dos poderes inerentes a determinado direito.
Deste modo, para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder. Em qualquer caso, para que haja lugar ao abuso do direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito [Cf. Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 6.ª edição, Coimbra, Almedina, 1989, pgs. 515-516.]
É entendimento pacífico que a conceção de abuso do direito, adotada no sistema jurídico português, é a objetiva: «Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites» [Cf., Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 298.]
Neste domínio, há que atender de modo especial às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes [Cf., Pires de Lima e Antunes Varela - Obra citada - p. 299.]
Em geral, a situação de abuso assenta na verificação destes dois elementos; não é, porém, de excluir que ele ocorra também no exercício contraditório sem exigência de confiança».
Como refere António Menezes Cordeiro, o abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium «exprime o exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente. A conduta sinuosa é socialmente desprimorosa, pondo em causa a credibilidade do agente e fazendo oscilar a confiança nas relações humanas. O Direito proíbe condutas contraditórias: mas apenas em certas circunstâncias, historicamente reunidas em torno da boa-fé e do abuso do direito» [cf., António Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado, I – Parte Geral, Coordenação António Menezes Cordeiro, CIDP, Almedina, 2020, p. 933.].
Assim, esta vertente do abuso do direito inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adota uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes atuara, sendo que o abuso do direito é de conhecimento oficioso, pelo que deve ser objeto de apreciação e decisão, ainda que não invocado [Cf. o Ac. do STJ de 11-12-2021 (Relator: Fernandes do Vale), p. 116/07.2TBMCN.P1. S1, disponível em www.dgsi.pt.].
Neste enquadramento, entendemos que, tendo o executado firmado acordo para pagamento da quantia exequenda, a dedução de oposição à execução para discutir a dívida que reconheceu como sua, cujo pagamento fracionado no tempo anuiu realizar, configura uma conduta abusiva do direito de embargar [Neste sentido, cf. o citado Ac. TRE de 21-12-2017 e a jurisprudência nele citada.].
Ora, conforme resulta das concretas incidências processuais aludidas em 1.2.6. e 1.2.7., a intervenção dos apelantes/embargantes no âmbito da execução em referência foi admitida à luz da habilitação prevista no artigo 351.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, nos termos da sentença proferida no apenso A), a .../.../2021, transitada em julgado, e na sequência do falecimento do executado EE, em .../.../2015.
Como se refere no acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 15-10-2013 [Relator António Santos, p. 3527/09.5TBBRG-A. G1, disponível em www.dgsi.pt.], o incidente de habilitação constitui «uma forma de modificação subjectiva da instância, que visa colocar um sucessor no lugar que o falecido ocupava no processo pendente, e a fim de causa poder prosseguir com ele, ou seja, o habilitado apenas vai ocupar a posição do falecido, exercendo os direitos e cumprindo as obrigações que a este último competiam, ficando sujeito à sua anterior actuação processual e devendo aceitar a tramitação no estado em que a encontrar e apenas impulsionando para o futuro e dentro destes limites, o processo».
Tal significa que o habilitado ocupa a posição processual do falecido com os respetivos direitos e obrigações, estando sujeito à anterior atuação processual do mesmo e apenas impulsionando o processo para o futuro, tendo a habilitação apenas efeitos ex nunc [Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2020, p. 410.].
Logo, a confissão operada pelo executado originário impõe-se indiscutivelmente aos habilitados, pelo que a ulterior dedução de oposição à execução por parte dos habilitados/executados com base em fundamentos que envolvam a discussão da dívida que o executado originário reconheceu como sua, configura uma utilização abusiva do direito de embargar, como sucede com a invocada ineptidão do requerimento executivo, com a impugnação da existência da dívida exequenda, e respetiva exigibilidade, em virtude do alegado desconhecimento por parte dos embargantes da prévia interpelação do obrigado no título aquando do preenchimento da livrança entregue em branco, não se vislumbrando que na formulação de tal juízo tenham sido excedidos os limites legais ou que tal entendimento colida materialmente com o princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa."
[MTS]
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