"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/03/2024

Jurisprudência 2023 (124)


Embargos de executado;
preclusão; âmbito*


1. O sumário de RP 5/6/2023 (434/21.7T8OVR-A.P1é o seguinte:

I - A herança apenas é dotada de personalidade judiciária enquanto estiver jacente, ou seja, enquanto ainda não tiver sido aceita nem declarada vaga para o Estado.

II - A herança indivisa, ao invés da herança jacente não goza de personalidade judiciária, devendo estar na lide, consoante o seu objeto, ou o cabeça de casal, enquanto administrador da referida herança (vejam-se os artigos 2079º e 2087º a 2090º, todos do Código Civil), ou todos os herdeiros (artigo 2091º, nº 1, do Código Civil).

III - A oposição à ação executiva é o meio próprio de o executado reagir contra a pretensão executiva formulada pelo exequente e não o fazendo no momento e tempo próprios, o executado vê precludida a possibilidade de se prevalecer dos meios de defesa de que dispunha contra a pretensão executiva, apenas podendo suscitar matéria de defesa superveniente, tal como se prevê no nº 2 do artigo 728º do Código de Processo Civil.

IV - A inobservância do ónus de dedução de embargos de executado numa primeira ação executiva que terminou sem satisfação dos créditos exequendos e por inércia da exequente não determina que numa segunda ação executiva fundada nos mesmos títulos da precedente apenas possa ser deduzida oposição fundada em matéria superveniente que não pudesse ter sido invocada na precedente ação executiva.

V - A mora é um incumprimento temporário e no caso das obrigações pecuniárias em que por definição nunca existe impossibilidade de cumprimento, isso significa que a circunstância de existir um vencimento antecipado neste tipo de obrigações não exclui o dever de reparar as consequências da mora relativamente aos valores em relação aos quais operou o vencimento antecipado, mora que apenas cessará quando se verificar o cumprimento em falta.

VI - A aplicabilidade do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais pressupõe previamente que quem se quer prevalecer desse regime alegue factos que permitam enquadrar as convenções em causa nessa figura.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"4.2 Da violação do princípio da igualdade das partes e das regras do processo equitativo

O recorrente pugna pela revogação da decisão recorrida na parte em que afirmou existir preclusão de dedução dos meios de defesa que podiam ter sido já deduzidos na primeira ação executiva por tal se traduzir numa violação do princípio da igualdade, na medida em que essa preclusão apenas opera relativamente aos executados, não estando a exequente sujeita a qualquer ónus, restrição ou impedimento de instauração de uma segunda execução e bem assim das regras do processo equitativo na medida em que o embargante e os restantes executados foram citados em terceira pessoa, não se demonstrando que os executados tiveram conhecimento da precedente ação executiva, não tendo nela tido qualquer intervenção.

Cumpre apreciar e decidir.

A oposição à ação executiva é o meio próprio de o executado reagir contra a pretensão executiva formulada pelo exequente e não o fazendo no momento e tempo próprios, o executado vê precludida a possibilidade de se prevalecer dos meios de defesa de que dispunha contra a pretensão executiva, apenas podendo suscitar matéria de defesa superveniente, tal como se prevê no nº 2 do artigo 728º do Código de Processo Civil. Está aqui em causa a chamada preclusão intraprocessual [Adota-se a terminologia do Sr. Professor Teixeira de Sousa no estudo citado na decisão recorrida e publicado no blogue do IPPC e acessível em:
https://blogippc.blogspot.com/2016/05/paper-199.html. Em alternativa a esta terminologia podia também referir-se a preclusão endoprocessual e exoprocessual.].

No caso dos autos, trata-se da denominada preclusão extraprocessual já que opera em processo distinto daquele em que foi inobservado o ónus de dedução de embargos. No entanto, esta preclusão pressupõe previamente o mesmo fenómeno a nível intraprocessual [---].

No caso em apreço, na primeira ação executiva o aqui embargante não deduziu qualquer oposição, ficando assim precludida a possibilidade de nesses autos deduzir qualquer defesa que devesse ser deduzida por via de embargos.

A questão que se coloca é a de saber se não tendo deduzido oposição em prévia ação executiva com base nos mesmos títulos usados em posterior ação executiva e com a mesma causa de pedir, o executado pode nesta segunda ação executiva deduzir os meios de defesa que poderia ter deduzido na precedente ação executiva.

Se se entender que a preclusão extraprocessual é dependente da formação de caso julgado, dir-se-ia que em sede de ação executiva, isso implicaria que essa figura apenas se poderia convocar nos casos em que fossem deduzidos embargos de executado que não contemplassem todos os meios de defesa passíveis de então ser invocados e ainda que fosse proferida decisão de mérito com o valor previsto no nº 6 do artigo 732º do Código de Processo Civil.

Nesta visão do problema, a preclusão extraprocessual não operaria nos casos em que não fossem deduzidos embargos de executado, não havendo nesta perspetiva qualquer obstáculo à dedução de embargos de executado fundados em meios de defesa que poderiam ter sido invocados na precedente ação executiva mas que o não foram por não ter sido apresentada qualquer oposição à ação executiva.

Porém, como salienta o Sr. Professor Teixeira de Sousa, no texto que temos vindo a citar e a seguir, a preclusão intraprocessual é, naturalmente, autónoma de qualquer caso julgado, designadamente do caso julgado de qualquer decisão interlocutória ou da decisão de mérito proferida no processo em que o acto não foi praticado. Por exemplo: muito antes de haver qualquer decisão no processo pendente, já se verifica a preclusão nesse processo quanto à junção pelo autor do rol de testemunhas não apresentado com a petição inicial ou quanto ao fundamento de defesa não alegado pelo réu na contestação” [---] e, mais à frente, “a preclusão extraprocessual é independente do caso julgado, porque opera mesmo que o processo no qual se produziu a correspondente preclusão intraprocessual não esteja terminado com sentença transitada em julgado. Sendo assim, pode concluir-se que a preclusão não necessita do caso julgado para produzir efeitos num outro processo” [---].

Esta afirmação do Professor Teixeira de Sousa dá aparente suporte à posição seguida na decisão recorrida de que em caso de não dedução de embargos de executado numa anterior execução fica precludida em posterior ação executiva a dedução de meios de defesa que pudessem ter sido deduzidos na primeira ação executiva que terminou sem realização coerciva da pretensão executiva e em consequência de inércia da exequente.

Porém, visto até o exemplo de que o Sr. Professor Teixeira de Sousa se socorre, não cremos que assim seja.

Na realidade, o exemplo é o de execução de sentença condenatória pendente de recurso com efeito meramente devolutivo, caso em que nos embargos de executado deduzidos contra tal ação executiva opera a preclusão decorrente do regime jurídico constante da alínea g) do artigo 729º do Código de Processo Civil.

Ora, se é verdade que essa preclusão opera ainda antes do trânsito em julgado da sentença exequenda, não menos verdade é que tal preclusão só se “consolida” com o trânsito em julgado da sentença exequenda. Pode assim dizer-se que a afirmada independência da preclusão relativamente ao caso julgado é apenas relativa, não é absoluta, dependendo sempre da prolação de uma decisão final que estatua sobre uma ou várias posições jurídicas das partes envolvidas no processo e que conheça do mérito dessas posições.

Esta conclusão pode ser testada com um outro exemplo, desta feita da nossa lavra e porventura com maior similitude com o caso objeto destes autos.

Suponha-se uma ação declarativa de condenação sob forma comum intentada por um credor contra o seu devedor, comprovando o credor ter requerido apoio judiciário, numa situação que se enquadra na previsão do nº 9 do artigo 552º do Código de Processo Civil, não contestando o devedor, apesar de regularmente citado, vindo o apoio judiciário requerido a ser indeferido definitivamente, não procedendo o autor à comprovação da taxa de justiça inicial devida, não obstante ter sido notificado para esse efeito, acabando a instância por extinguir-se com fundamento em deserção [Segue-se neste caso a posição do Sr. Juiz Conselheiro Salvador da Costa exposta in As Custas Processuais, 2017, 6ª Edição, Almedina, páginas 61 e 62.].

Em ação que o mesmo credor venha a intentar contra o mesmo devedor, desta feita procedendo logo ao pagamento da taxa de justiça inicial devida, estará vedada a dedução de contestação por parte do réu com base em fundamentos que poderia ter já invocado na primeira ação por força da preclusão decorrente do princípio da concentração da defesa?

Não o cremos.

A nosso ver, a preclusão para poder operar extraprocessualmente requer sempre que no processo em que se formou seja proferida uma decisão de mérito e que essa decisão transite em julgado.

Ora, no caso dos autos, a primeira ação executiva em que o ora recorrente não deduziu embargos de executado terminou por uma decisão proferida por uma entidade não jurisdicional e por razões processuais e não porque tenha sido satisfeita a pretensão exequenda, como o comprova a necessidade de instauração de uma segunda ação executiva.

De facto, a inobservância do ónus de impulso da primeira ação executiva por parte da antecessora da exequente determinou a extinção dessa ação executiva, decisão de mera forma que não envolve a extinção dos créditos exequendos, pois que os mesmos não foram satisfeitos, o que obrigou a exequente à instauração de nova ação executiva para tentar satisfazer os seus créditos.

A preclusão processual não pode ser divorciada da finalidade visada por esta figura e que é, segundo cremos, “obrigar” a que o demandado num procedimento judicial deduza todos os meios de defesa de que disponha contra a parte contrária e sob pena de o não poder fazer ulteriormente nesses ou noutros autos, destruindo total ou parcialmente a pretensão que venha a ser reconhecida ao demandante.

No fundo, a preclusão extraprocessual está ao serviço da segurança e certeza jurídica do demandante combatendo condutas procrastinadoras do demandado, garantindo ao demandante, em caso de triunfo total ou parcial na lide, a definição definitiva da sua posição jurídica.

Assim, pelo exposto, ao invés do que entendeu o tribunal a quo, entende-se que não há preclusão de dedução dos meios de defesa que o recorrente poderia ter deduzido em embargos de executado na primeira ação executiva, devendo por isso revogar-se este segmento da decisão recorrida e porque os autos contêm todos os elementos necessários, conhecer dos meios de defesa cujo conhecimento se entendeu estar precludido, isto por força do disposto no nº 2 do artigo 665º do Código de Processo Civil."

*3. [Comentário] Sobre a problemática tratada no acórdão pode ver-se o que se escreveu, por exemplo, aqui.

MTS

[Versão actualizada às 10 h e 50 m.]