Advogado;
I- A quebra do sigilo profissional do advogado, incidente a processar de acordo com o disposto no artigo 135.º do CPP (ex vi dos artigos 497.º, n.º 3 e 417.º n.º 4 do CPC) é necessariamente precedida da audição da Ordem dos Advogados como impõe o n.º 4 do mencionado preceito legal. Porém, esse parecer não é vinculativo para o Tribunal.
II- A decisão de dispensar o advogado do seu dever de sigilo profissional depende da ponderação dos valores em conflito, a fim de indagar se a recusa em depor sobre factos sujeitos a esse sigilo, embora legítima, deve ou não ceder perante o dever de colaboração com a realização da justiça.
III- O critério fundamental para tal decisão consiste na determinação do interesse que, em concreto, se deva considerar preponderante, considerando a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade e a necessidade de protecção dos bens jurídicos em presença.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Importa decidir no presente incidente se deve ser determinado o levantamento do sigilo profissional invocado pelo Ilustre Advogado que foi arrolado como testemunha pelos Autores, como fundamento da respetiva escusa a prestar depoimento na audiência final.
Sob a epígrafe “Dever de cooperação para a descoberta da verdade”, dispõe o n.º 1 do artigo 417.º do Código de Processo Civil o seguinte: “Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.
Prevê o n.º 2 do indicado preceito, além do mais, a condenação em multa daqueles que recusem a colaboração devida. Acrescenta o n.º 3, por seu turno, que “a recusa é, porém, legítima se a obediência importar, entre outras situações, a prevista na alínea c): “a violação do sigilo profissional”.
Esclarece o n.º 4 que, deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
Assim, deduzida a escusa com fundamento na violação do sigilo profissional, cumpre atender, por força do estatuído no n.º 4 do citado artigo 417.º, ao disposto no artigo 135.º do Código de Processo Penal, designadamente às normas constantes dos seus n.ºs 2 e 3, com a redação seguinte: “2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. 3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
Acrescenta o n.º 4 deste preceito o seguinte: “4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
No caso em apreço, esse parecer foi emitido, a pedido da própria testemunha, sujeita ao dever de sigilo, sendo certo que a Ordem dos Advogados emitiu parecer negativo.
Porém, é certo que esse parecer, embora legalmente imprescindível, não é vinculativo para o Tribunal [Vide acórdão do STJ de 15-02-2017, Processo n.º 1130/14 e Acórdão do TRP de 06-05-2019, Processo 42896/18, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.].
O Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2008, datado de 13-02-2008 – publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 63 (31-03-2008) –, fixou a seguinte jurisprudência:
«1) Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário; 2) Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal; 3) Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.»
Decorre, pois deste AUJ que compete ao tribunal perante o qual a escusa, com fundamento na violação do sigilo profissional, for invocada, apreciar a legitimidade da recusa, averiguando da existência de sigilo. De seguida, caso conclua pela inexistência de sigilo e, assim, pela ilegitimidade da escusa, compete-lhe ordenar a prestação do depoimento. Se, pelo contrário, considerar legítima a escusa, por se encontrar matéria em causa abrangida pelo dever de sigilo, haverá lugar ao incidente de quebra de segredo profissional. É o caso dos presentes autos em que, efectivamente, o Tribunal de 1.ª Instância bem decidiu pela legitimidade da escusa, sendo certo que tendo a testemunha requerido à Ordem dos Advogados a dispensa do segredo profissional, o mesmo lhe foi indeferido por aquela entidade.
Estando em causa o sigilo profissional de advogado, há que atender ao estatuído no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09-09), com a epígrafe “Segredo profissional”, o qual dispõe, no n.º 1, que “o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”.
Porém, considerando as normas legais, já supra mencionadas, a este Tribunal da Relação caberá ponderar os valores em conflito, a fim de indagar se a recusa, embora legítima, deve ou não ceder perante o dever de colaboração com a realização da justiça sendo que o critério fundamental para tal decisão consiste na determinação do interesse que em concreto se deva considerar preponderante, considerando a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade e a necessidade de protecção dos bens jurídicos em presença.
O dever de sigilo profissional dos advogados, contido no art.º 92.º do EOA, embora seja um interesse de ordem pública, é estabelecido, fundamentalmente, no interesse dos respectivos clientes, releva dizer que, no caso em apreço , são os próprios clientes, ora Autores, que pretendem que a testemunha preste depoimento sobre os factos abrangidos pelo segredo profissional.
Por outro lado, importa sublinhar, igualmente, que relativamente aos factos sobre os quais foi requerido o depoimento da testemunha, não existe outra prova para além da prova testemunhal.
Não há outra testemunha que tenha participado nas negociações entre os Autores e o Banco e que, por conseguinte, possa depor sobre tais factos, assegurando assim uma posição de igualdade entre as partes, dado que o Banco já teve oportunidade de apresentar como testemunhas os seus funcionários.
Caso não seja dispensada a testemunha do segredo profissional, pode ficar seriamente comprometido o direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, por parte do Autor, direito constitucionalmente garantido no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, conflitos desta natureza resolvem-se “pela avaliação da diferente natureza e relevância dos bens jurídicos tutelados por aqueles deveres, segundo um critério de proporcionalidade na restrição, na medida do necessário, de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, como impõe o n.2 do art.º 18.º, da Constituição” [Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, Almedina, p. 363.].
Tal como bem referiu a 1.ª instância “tendo sido inquiridas como testemunhas vários funcionários do Banco Réu, evidencia-se o depoimento do Dr. JN como crucial no apuramento dos factos conducentes à descoberta da verdade material e boa administração da justiça”.
Assim, não podemos deixar de concluir, tal como concluiu aquele Tribunal ao suscitar o presente incidente que “ponderando os interesses inerentes ao dever de sigilo – tutela da confiança do cliente no mandato outorgado ao seu advogado e da própria dimensão social que a profissão tem imanente – e os interesses que com ele conflituam nos autos, no caso concreto, os primeiros devem ceder aos últimos (…). Prevalece, pois, o interesse público da realização da justiça, com a consequente quebra do sigilo profissional e dever de prestação do depoimento."
[MTS]
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