Processo de inventário;
princípio do contraditório
1. O sumário de RL 21/12/2023 (13567/20.8T8LSB.L1-6) é o seguinte:
I - O princípio do contraditório não deve considerar-se cumprido pela simples possibilidade de acesso da parte ao processo ou até do conhecimento de requerimento levado aos autos, fora do âmbito das intervenções processualmente previstas na respectiva forma de processo.
II - Vindo aos autos de inventário notarial por mão de terceiro, requerimento informando da litispendência e informando de decisão judicial relativa à inibição do cabeça de casal, o notário deve convidar este a pronunciar-se nos termos do artigo 3º nº 3 do CPC.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"O tribunal recorrido discorreu:
“No dia 22 de novembro de 2019 (cfr. documento 21 junto com a remessa dos autos a este tribunal), por determinação do Excelentíssimo Senhor Notário …, e na sequência de uma informação prestada pelo cabeça-de-casal quanto à sonegação de bens, procedeu-se à notificação de A para, no prazo de 10 dias, “facultar ao cabeça-de-casal o acesso a tais bens, e fornecer os elementos necessários à respetiva inclusão na relação de bens”.
A respondeu em 9/12/2019, nos termos do requerimento junto com a remessa dos autos a este tribunal (documento 22), cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
Nessa sequência, em 22 de maio de 2020 (documento 23 junto com a remessa dos autos a este tribunal), o Excelentíssimo Senhor Notário … julgou procedente a excepção de litispendência; determinou o arquivamento dos presentes autos; e procedeu à denúncia do cabeça-de-casal, ora recorrente, junto do Ministério Público, por alegada prática de um crime de falsas declarações.
Ora, é contra este despacho que o recorrente se insurge, por considerar ter sido violado o princípio do contraditório. E com razão, adiantamos desde já.
Com efeito, nos termos do artigo 3º, n.º 3 do CPC, aplicável com as necessárias adaptações ex vi do artigo 82º da Lei n.º 23/2013, de 5 de março, o Senhor Notário deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Em 22 de maio de 2020, na sequência de factos novos e de documentos trazidos aos autos em 09/12/2019 por terceiro (ou seja, por A), o Excelentíssimo Senhor Notário julgou procedente a excepção de litispendência.
A referida excepção, não obstante ser de conhecimento oficioso, obrigava a que, previamente à decisão, fossem as partes convidadas a exercer, querendo, o respetivo contraditório. Esse convite não foi formulado pelo Excelentíssimo Senhor Notário, o que constitui uma violação do princípio do contraditório, previsto no artigo 3º, n.º 3, do CPC. E nem se diga que o cabeça-de-casal, ora recorrente, teve a possibilidade de exercer tal direito processual, optando pelo silêncio, ao ser notificado pela Mandatária de A do teor do requerimento por esta apresentado em 09/12/2019. Com efeito, essa notificação não se mostra comprovada nos autos (cfr. toda a documentação remetida a este tribunal).
Por outro lado, considerando as intervenções expressamente admitidas ao cabeça-de-casal em sede de processo de inventário (essencialmente, prestar declarações nessa qualidade, apresentar relação de bens, responder à reclamação quanto à relação de bens por si apresentada, oferecer prova que considere essencial à decisão sobre os bens a partilhar, e intervir em conferência de interessados), é de concluir que este não poderia responder ao requerimento de 09/12/2019, a não ser que fosse convidado para o efeito por despacho do Senhor Notário nos termos do artigo 3º, n.º 3, do CPC.
Em terceiro lugar, esse convite mostrava-se imperioso no caso concreto, na medida em que, do requerimento de 09/12/2019, resultava a alegação de factos novos que afectavam a capacidade do recorrente para exercer o cargo de cabeça-de-casal, bem como que contendiam com a tramitação subsequente destes autos, e foi esse requerimento e respetiva documentação que determinou a convicção do Senhor Notário e a prolação do despacho de 22/05/2020, em que julgou procedente a excepção de litispendência e determinou o arquivamento destes autos.
Ora, a preterição do princípio do contraditório gera uma nulidade processual, nos termos do artigo 195º, n.º 1, do CPC, porquanto a irregularidade cometida influiu no exame e na decisão da causa. O recorrente tem legitimidade para arguir a nulidade cometida e está em tempo”.
Para os recorrentes – e com o devido respeito, vamos simplificar a sua argumentação – o recorrido teve toda a oportunidade de se pronunciar sobre os factos trazidos à luz pela mãe dos recorrentes e ademais a litispendência é questão de conhecimento oficioso.
Secundamos a sentença recorrida quando refere que “Por outro lado, considerando as intervenções expressamente admitidas ao cabeça-de-casal em sede de processo de inventário (essencialmente, prestar declarações nessa qualidade, apresentar relação de bens, responder à reclamação quanto à relação de bens por si apresentada, oferecer prova que considere essencial à decisão sobre os bens a partilhar, e intervir em conferência de interessados), é de concluir que este não poderia responder ao requerimento de 09/12/2019, a não ser que fosse convidado para o efeito por despacho do Senhor Notário nos termos do artigo 3º, n.º 3, do CPC”.
Mas mesmo que assim não fosse, o princípio do contraditório não se confunde com qualquer oportunidade que o processo revela para o seu exercício – ou seja, não se confunde com qualquer acesso aos autos ou com qualquer notificação de acto praticado pela parte contrária ou por outros intervenientes – antes, por se tratar de um princípio estrutural e fundamental, aliás, para o constitucionalmente consagrado direito de acesso à justiça, na vertente direito a defender-se, se deve subir um grau de exigência: - é o decisor que tem de assegurar que o princípio do contraditório é cumprido. Assim, este cumprimento corresponde a um direito a ser avisado pelo decisor. [...]
Como se lê (na dgsi) no acórdão desta Relação proferido no processo 12841/19.0T8LSB.L2-6 em 10.9.2020 [Relatado por Ana de Azeredo Coelho e subscrito pelo ora relator.]: [...]
1.3 [...] Como lapidarmente refere o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 17 de Junho de 2014, proferido no processo 233/2000.C2.S1 (Maria Clara Sottomayor): [...]
Admitimos que se deu um avanço no entendimento do princípio do contraditório, na nossa lei processual, perdendo assim actualidade a concepção restrita do mesmo, segundo a qual o processo consistia numa discussão duma parte contra a outra, com o juiz, acima delas, a decidir. Mais do que uma discussão dialéctica entre as partes, está agora aberto o caminho para que estas “influenciem directamente” a decisão. Mas a mais a nossa lei não chega, pois, a estrutura do nosso processo civil não prevê que o tribunal “discuta” com as partes o que quer que seja.
O aprofundamento do princípio e das suas exigências num Estado de Direito Democrático exprime-se na actual consideração da dimensão positiva de consagração do direito de as partes participarem no debate que o processo constitui, respeitando a sua natureza dialética e polémica: o processo civil tem, uma estrutura dialética ou polémica: ele reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (…) [---].
O que implica, não só que exerçam os direitos de acção e de defesa mas, também, que sejam chamadas a emitir pronúncia sobre as questões que hajam de ser decididas a respeito dos interesses que na acção e defesa fazem valer [---].
O princípio do contraditório assume-se, nesta dimensão, como garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio [---] [---].
Em suma, a prolação de uma decisão judicial tem de ser o termo de um debate igual e équo entre as partes com efectiva possibilidade de pronúncia das mesmas quanto ao sentido que entendem dever ser o da decisão.
1.4. Naturalmente, a efectiva possibilidade de pronúncia não exige a efectiva pronúncia e não impõe que a todo o tempo a prolação de uma decisão imponha a audição das partes quanto ao sentido da mesma.
Assim é que as partes devem assumir com diligência a defesa dos seus interesses e a cooperação entre si e com o tribunal em ordem à tempestividade da composição judicial do conflito que as separa, o que implica que sobre elas impenda o dever de se pronunciarem nas peças processuais admissíveis quanto aos seus requerimentos e aos da parte contrária, bem como quanto ao direito aplicável, nomeadamente no confronto das várias teses doutrinais e jurisprudenciais, sem que seja imperiosa intervenção autónoma [---] do juiz promovendo essa pronúncia.
Cremos não haver divergência sobre o alcance do contraditório exigível, quando no campo das decisões surpresa. Veja-se, por todos, o mais recente acórdão do Tribunal Constitucional, de 10 de Julho de 2019, n.º 426/2019 (Joana Fernandes Costa), que apreciou em conferência a Decisão Sumária n.º 365/2019, onde se lê:
Têm sido repetidamente assinaladas na jurisprudência constitucional, as condições para que assim seja. Nas palavras do Acórdão n.º 173/2016, na linha de muitos outros: «Como o Tribunal Constitucional vem reiteradamente decidindo, «recai sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas, suscetíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão, cumprindo-lhes adotar as necessárias e indispensáveis precauções, em conformidade com um dever de litigância diligente e de prudência técnica (…)». Cabe-lhes, assim, «a formulação de um juízo de prognose, analisando e ponderando antecipadamente as várias hipóteses de enquadramento normativo do pleito e de interpretação razoável das normas convocáveis para a sua dirimição, de modo a confrontarem atempadamente o tribunal com as inconstitucionalidades que – na sua ótica – poderão inquinar tais normas ou interpretações normativas» (Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, Coimbra, janeiro de 2010, pp. 81-82)».
Assim, o respeito pelo contraditório não implica que haja que apresentar às partes um projecto de decisão para que sobre ele se pronunciem ou que devam ser ouvidas fora dos momentos processuais previstos sobre questões que as suas pretensões coloquem habitualmente na jurisprudência e sejam por isso conhecidas na comunidade jurídica [---].
O lugar próprio da promoção autónoma de pronúncia [---] é, por isso, o das decisões que se pronunciam sobre questões de conhecimento oficioso não suscitadas pelas partes no processo ou daquelas que tendo sido suscitadas o foram no último articulado possível, impossibilitando a pronúncia ordinária da parte contrária que, assim, há-de ser promovida por outro modo”.
Em conclusão, reafirma-se que não é toda e qualquer possibilidade de pronúncia que faz considerar cumprido o princípio do contraditório."
[MTS]