"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/09/2024

Jurisprudência 2024 (1)

 
Impugnação da matéria de facto;
ónus do recorrente; facto notório*
 

1. O sumário de STJ 11/1/2024 (3063/18.9T8PTM.E2.S2) é o seguinte:

I. Sendo certo que a imposição, no artigo 640.º, n.º 1, do CPC de ónus ao recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto representa um condicionamento ao direito de acesso aos tribunais e, em especial, ao direito ao recurso (cfr. artigo 20.º, n.º 1, da CRP), deve evitar-se leituras excessivamente formalistas que possam conduzir a restrições injustificadas do direito a um processo equitativo e convocar-se sempre, para o efeito da melhor interpretação da norma, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

II. A indicação por remissão da informação legalmente exigível para o efeito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto não configura nem equivale a falta ou omissão de indicação, constitui uma forma possível de indicação, que não compromete a inteligibilidade daquela impugnação, mantendo intocada a possibilidade do seu cabal conhecimento pelo tribunal e a possibilidade do exercício de um contraditório esclarecido.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como se viu, o Tribunal recorrido decidiu apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto apresentada pela 2.ª ré / então apelante, tendo, inclusivamente, alterado (alterado, aditado e eliminado) vários pontos do elenco de factos provados e do elenco dos factos não provados.

Os autores / ora recorrentes sustentam que não o deveria ter feito, atendendo a que a então apelante não havia cumprido os ónus previstos no artigo 640.º do CPC, em especial, o previsto na al. b) do n.º 1.

Dispõe-se no artigo 640.º, n.º 1, do CPC:

Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.

As alegações de apelação da ré são as seguintes:

a) A douta sentença deve ser anulada, nos termos da 2.ª parte do n.º 1 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil, uma vez que os Autores invocaram como causa de pedir a falta de qualidades do imóvel asseguradas pelo vendedor, ao abrigo do art. 913.º do Cód. Civil e a Recorrente foi condenada ao abrigo do instituto da responsabilidade civil aquiliana, violando assim os arts. 5.º, n.º 1, e 608.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil [Capítulo I];

b) Caso seja essa a decisão de V. Exas., requer-se que, conforme o disposto no art. 665.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, se pronunciem sobre a ilegitimidade substantiva da Recorrente, questão suscitada pela mesma, mas cujo conhecimento ficou preterido em face da decisão ter sido proferida sobre uma causa de pedir diferente [Capítulo I];

c) Os Recorridos peticionaram a redução do preço pago pelo imóvel, o qual a Recorrente, que não foi parte do negócio, mas apenas sua mediadora, nunca recebeu, pelo que deve a exceção de ilegitimidade substantiva ser julgada procedente e, em consequência, ser a Recorrente absolvida do pedido;

d) Subsidiariamente, a douta decisão violou o art. 607.º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil, por não fundamentar de todo a existência dos pressupostos substantivos da responsabilidade civil aquiliana (facto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade), pelo que deve ser anulada ao abrigo do art. 615.º, n.º 1, al. b) do mesmo diploma legal [Capítulo II];

e) Se assim não se entender, a douta sentença deve ser reformada quanto ao julgamento da matéria de facto, e, em consequência, ser a acção indeferida por falta de fundamento [Capítulo III]:

i. Os factos provados n.º 26, 28, 30, 31, 32, 33 e 45 devem ser dados como não provados, dando-se como provado, ao invés, que os Recorridos sabiam (ou deviam saber, o que é o mesmo) que somente 2 dos quartos estavam licenciados [Capítulo III, Secção A];

ii. Os factos provados n.º 22 e 25 devem ser dados como não provados [Capítulo III, Secção B];

iii. O facto provado n.º 38 deve ser eliminado, por não ter sido alegado, por não ter sido feita prova do mesmo e por ser irrelevante face à natureza do dano alegado [Capítulo III, Secção C];

iv. Os meios probatórios e demais ónus previstos no art. 640º do Cód. Proc. Civil, que permitem concluir pela reforma da decisão de facto no sentido indicado, estão indicados detalhadamente na Secção D) do Capítulo III supra;

f) Mesmo que assim não se entenda, ainda assim, a douta decisão não deve ser mantida, pois não estão preenchidos os pressupostos legais da responsabilidade civil [Capítulo IV]

i. A Recorrente não praticou nenhum ato ilícito, uma vez que o anúncio de que a casa tinha 5 quartos correspondia à verdade, e os próprios Recorridos concordam com essa descrição, como resulta do § 18º da douta petição inicial;

ii. A Recorrente não causou nenhum dano aos Recorridos, nem nenhum dano resultou provado na ação;

iii. Ainda que assim não fosse, foi a incúria e o desleixo dos Recorridos que causaram o alegado desconhecimento da tipologia do imóvel objecto dos autos;

g) Sem o cumprimento destes pressupostos, a Recorrente não deveria ter sido condenada, pelo que se violou o art. 483.º do Cód. Civ.;

h) Se esta solução também não for aceite, dado que os Recorridos não demonstraram a existência de quaisquer danos na ação declarativa, requer-se a V.Exa. que reformem a douta sentença quanto ao envio da liquidação de danos para execução de sentença, o que equivaleria a repetir a acção na sede executiva, indeferindo por consequência a acção [Capítulo V]; 

i) Se mesmo esta solução não for aceite, a alínea b) da parte decisória da douta sentença deve ser alterada, de modo a que a liquidação dos danos se reporte apenas à diferença entre o valor de € 500.000 pago pela casa e o valor abaixo de € 500.000 que a casa eventualmente tenha, se a causa dessa diferença for a falta de licenciamento dos três quartos existentes na cave, o que se requer [Capítulo VI];

j) Finalmente, a ser mantida a douta decisão proferida em 1ª instância, requer-se a V.Exas. a reforma da decisão quanto a custas, pois os Recorridos ficaram vencidos pelo menos em 3/4 (o valor da acção foi fixado em € 600.000 e a Recorrente foi condenada no pagamento do valor máximo de € 150.000), pelo que a sua proporção na responsabilidade por custas deve ser de 3/4, e não 1/6 como se decidiu em violação do art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civ.;

l) A douta sentença recorrida violou as normas jurídicas referidas ao longo da presente peça, em especial os arts. 5.º, n.º 1, 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 3, 608.º, n.º 2 e 609.º do Cód. Proc. Civ. e o art. 483.º do Cód. Civ.”.

Em face disto, não pode concluir-se por violação do artigo 640.º do CPC.

A apelante indica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados [cfr. al. a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC], os concretos meios probatórios que impõem, a seu ver, uma decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diferente da recorrida [cfr. al. b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC] e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. al. c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC].

No que toca, em especial, aos concretos meios probatórios que impõem, a seu ver, uma decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diferente da recorrida, a apelante indica-os, não obstante por remissão expressa para as alegações.

Diz-se na conclusão e) das alegações de apelação:

iv. Os meios probatórios e demais ónus previstos no art. 640º do Cód. Proc. Civil, que permitem concluir pela reforma da decisão de facto no sentido indicado, estão indicados detalhadamente na Secção D) do Capítulo III supra”.

A indicação por remissão não configura ou equivale a falta ou omissão de indicação, constitui uma forma possível de indicação da informação exigida, que não compromete a inteligibilidade da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, mantendo intocada a possibilidade do seu cabal conhecimento pelo tribunal e a possibilidade do exercício de um contraditório esclarecido.

Fosse como fosse, há que recordar que há sempre que fazer uma interpretação do artigo 640.º do CPC conforme aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o que obriga a rejeitar leituras excessivamente formalistas susceptíveis de conduzir a restrições injustificadas das garantias associadas ao processo equitativo.

Ciente de que a imposição de ónus de impugnação representa um condicionamento ao direito de acesso aos tribunais e, em especial, ao direito ao recurso (cfr. artigo 20.º, n.º 1, da CRP), este Supremo Tribunal de Justiça tem-se esforçado por interpretar o disposto na norma à luz dos mencionados princípios.

Exemplo, entre tantos outros, desta orientação do Supremo Tribunal de Justiça é o recente Acórdão de 12.10.2023 (Proc. 1/20.2T8AVR.P1.S1)1 em cujo sumário pode ler-se:

No caso dos autos, e de acordo com um critério de razoabilidade, a rejeição liminar do recurso de impugnação de facto desrespeita o princípio da proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostos pela lei processual, que constitui uma manifestação do princípio da proporcionalidade das restrições, consagrado no art. 18.º, n.os 2 e 3, da CRP, e da garantia do processo equitativo, consagrada no art. 20.º, n.º 4, da CRP”.

Ilustrativo é também, ainda mais recentemente, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2023, de 17.10.2023 (publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 14.11.2023, rectificado pela Declaração n.º 25/2023, publicada no Diário da República n.º 230/2023, Série I de 28.11.2023), no qual se sustenta uma interpretação visivelmente (mais) flexível do ónus imposto na al. c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC do que poderia resultar da sua interpretação literal, fixando-se o seguinte segmento uniformizador:

Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”.

Não há, em suma, violação do artigo 640.º do CPC, nem, consequentemente, excesso de pronúncia do Tribunal recorrido e nulidade do Acórdão recorrido nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC: o Tribunal limitou-se a apreciar, e a alterar quando e na medida em que considerou necessário, a decisão sobre a matéria de facto.

Quanto ao disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CC, ele só reforça a ideia de que o Tribunal da Relação dispõe de amplos poderes – poderes-deveres – no que toca à decisão sobre a matéria de facto, podendo, portanto, mesmo oficiosamente, determinar a sua alteração.

O artigo 662.º, n.º 1, do CPC dispõe;

A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

Como resulta da fundamentação do Acórdão ora posto em crise, o Tribunal a quo alterou a decisão sobre a matéria de facto porque, tendo feito uma análise crítica da prova produzida, criou a convicção que se impunha esta alteração.

Quando o Tribunal conclui que se impõe a alteração da decisão sobre a matéria de facto, esta alteração não é apenas um poder mas sim um genuíno dever, preordenado à realização do interesse no apuramento e na fixação da verdade quanto aos factos relevantes para a aplicação ao caso da solução justa.

Os recorrentes alegam ainda, em particular, que o ponto 38 não podia ter sido eliminado do elenco dos factos provados dado que se trata de um facto notório porquanto do conhecimento geral, tendo, portanto, ocorrido violação do artigo 412.º do CPC.

O artigo 412.º do CPC é do seguinte teor:

1 - Não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral.

2 - Também não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções; quando o tribunal se socorra destes factos, deve fazer juntar ao processo documento que os comprove”.

Sucede que o Supremo Tribunal de Justiça tem os seus poderes restringidos no que toca à decisão sobre a matéria de facto, admitindo-se apenas o conhecimento da violação de regras de Direito probatório material, ou seja, da ofensa de qualquer disposição expressa da lei que regule os termos em que certo facto haja de ser provado ou que fixe a força de determinado meio de prova, conforme se prevê no artigo 674.º, n.º 3, in fine, do CPC. A “excepção” compreende-se pelo facto de que, no caso afirmativo, está em causa um genuíno erro de direito.

Será o artigo 412.º do CPC uma norma deste tipo, cujo respeito / desrespeito o Supremo Tribunal pode apreciar?

Como se explica no Acórdão deste Supremo Tribunal de 24.02.2022 (Proc. 11/13.6TCFUN.L2.S1):

Não tem sido pacífica a questão de saber se o Supremo Tribunal de Justiça pode ou não, atentos os limitados poderes de que dispõe em sede de conhecimento da matéria de facto, sindicar se determinado facto é ou não notório. Com efeito, a par dos que defendem que a circunstância de, em regra, o Supremo Tribunal não conhecer da matéria de facto, não obsta a que atenda aos factos notórios que não tenham sido considerados pelas instâncias, mesmo que ex novo (artigos 607.º, n.º 4, 663.º, n.º 2 e 679.º do CPC) (cfr. neste sentido, os acórdãos do STJ de 23-01-2014, proc. n.º 237/07.1TBMAC.E1.S1, de 01-04-2014, proc. n.º 330/09.6TVLSB.L1.S1, de 29-06-2017, proc. n.º 4503/14.1TCLRS.L1.S1, de 23-01-2020, proc. n.º 12/15.0TNLSB.L1.S1, de 11-03-2021, proc. n.º 2889/15.0T8OVR-A.P1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt e em www.stj.pt; e na doutrina, Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, cit., pág. 427 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 2.ª ed., cit., pág. 234), outros entendem que decidir se certo facto é ou não facto notório constitui ainda matéria de facto, do exclusivo julgamento pelas instâncias, por não se reconduzir a nenhum dos casos especialmente previstos no artigo 674.º, n.º 3, do CPC, que facultam o conhecimento e modificação da matéria de facto pelo Supremo Tribunal. Neste sentido, ver os acórdãos do STJ de 17-11-1998, proc. n.º 1049/98, e de 10-09-2019, proc. n.º 20714/13.4YYLSB-B.L1.S1, disponíveis em www.stj.pt e www.dgsi.pt”.

A verdade é que, mesmo que se admita que o Supremo Tribunal pode, ao abrigo da ressalva do n.º 3 do artigo 674.º do CPC, sindicar a alegada ofensa do artigo 412.º do CPC, é visível que o facto em causa não pode ser reconduzido à noção de “facto notório”.

Voltando ao Acórdão mencionado:

Conforme se colhe dos ensinamentos de Alberto dos Reis, que mantêm plena actualidade:

«Facto notório é, por definição, facto conhecido. Mas não basta qualquer conhecimento; é indispensável um conhecimento de tal modo extenso, isto é, elevado a tal grau de difusão que o facto apareça, por assim dizer, revestido de carácter de certeza.»

Tal significa que não pode «qualificar-se de notório um facto conhecido unicamente do juiz ou de um círculo restrito ou particular de pessoas», mas também não é exigível «que seja conhecido pela totalidade absoluta dos cidadãos dum país ou duma região: há-de ser um facto conhecido pela grande generalidade, ou, dito de outro modo, que seja conhecido por parte da massa de portugueses que possam considerar-se regularmente informados, isto é, acessíveis aos meios normais de informação» (ob. cit., Volume III, 3.ª ed., 1950, reimpressão por Coimbra Editora, Coimbra, 2005, págs. 259-261).

No mesmo sentido se pronunciam Abrantes Geraldes / Luís Pires de Sousa / Paulo Pimenta, afirmando que «o facto notório tem de constar como certo ou falso para a generalidade de pessoas de cultura média, entre as quais se encontra o juiz», não devendo integrar apenas um saber especializado (Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 413)”.

Recorde-se que o ponto a que se referem os recorrentes – ponto 38, do qual decorre que “Caso a venda da moradia anunciasse apenas a existência de dois quartos, o seu valor e preço de mercado seria inferior ao de uma moradia equivalente, mas V5” – foi retirado do elenco dos factos provados pelo Tribunal recorrido, considerado um facto não provado e passado a constar do ponto n) do elenco dos factos não provados.

Deste modo, é forçoso concluir-se que, ao ter retirado o ponto dos factos provados e ao tê-lo passado para o elenco dos factos não provados, o Tribunal da Relação agiu dentro dos parâmetros legais, sem violação do disposto no artigos 412.º do CPC, pela simples razão de que esta norma que não era aplicável aqui."

*3. [Comentário] Talvez valha a pena acentuar que o STJ acaba por reconhecer que pode controlar se um facto é notório. Trata-se da boa orientação na matéria.

MTS