"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/09/2024

Jurisprudência 2024 (8)

 
Processo equitativo;
protecção da confiança*


1. O sumário de STJ 25/1/2024 (733/20.5T8EPS-A.G1.S1) é o seguinte:

I. Os princípios da confiança e da lealdade processual não permitem que, em processo de inventário (cfr. art. 1123.º, n.º 2, al. b), do CPC), o acórdão recorrido recuse conhecer o objecto do recurso de apelação da decisão sobre a reclamação da relação de bens, quando, anteriormente, foi proferido despacho do relator em termos que legitimam a leitura apresentada pela recorrente, segundo a qual aquele recurso seria conhecido, fosse com o recurso de apelação do despacho determinativo da forma à partilha, independentemente de quem o apresentasse, fosse «após o trânsito em julgado» desse despacho, caso dele não fosse interposto recurso.

II. O facto de ambos os cônjuges inventariados terem outorgado testamento em simultâneo, deixando, cada um deles, com a autorização do outro, “metade indivisa” do mesmo bem imóvel a uma das filhas, indicia, na impossibilidade de realizarem um testamento de mão comum (cfr. art. 2181.º do CC), uma concertação de vontades entre eles no sentido de legar o bem, na sua totalidade, à dita filha, e não a vontade de legar apenas metade do bem imóvel.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1. Primeira questão: erro do acórdão recorrido que, após prolação do despacho do relator do Tribunal da Relação, datado de 17-06-2022, não conheceu do objecto do recurso de apelação interposto pela cabeça de casal da decisão sobre a reclamação à relação de bens proferida em 28-10-2021

Pode ler-se no relatório do acórdão recorrido:

«- Em 17-11-2021, a cabeça de casal CC, igualmente, interpôs recurso da decisão datada de 28-10-2021 e juntou as alegações conclusões, tendo sido apresentadas contra-alegações a este recurso por parte dos interessados DD, EE, e FF. [...]

Estes dois recursos, após terem sido admitidos na primeira instância, já não foram conhecidos por decisão da ...ª secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães datada de 17-06-2022 por ali se ter considerado o seguinte: “não se encontram ainda em momento de subida ao Tribunal da Relação nos termos da disposição legal do nº4 do artº 1123º do CPC e com referência ao nº2-al.b), do mesmo preceito legal e na sua conjugação com o artº 1110º-nº1 e nº2-al.a), do citado código; apenas subindo ao tribunal superior em conjunto com eventuais recursos de apelação referidos na al.b) do nº2 do artº 1123º citado, ou, após o trânsito em julgado dessas decisões, caso das mesmas não seja interposto recurso.”.

Vindo o acórdão recorrido a não conhecer do recurso de apelação apresentado pela cabeça de casal pelas seguintes razões:

«A- Coloca-se a questão prévia da não admissibilidade do recurso interposto em 17-11-2021 pela cabeça de casal da decisão interlocutória datada de 28.10.2021, porquanto não foi interposto recurso pela própria cabeça de casal da decisão da forma à partilha, e dentro da lógica imprimida pelo despacho da ...ª secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 17-06-2022, cujo entendimento ali plasmado acerca dos recursos no inventário foi ditado, com trânsito em julgado, dentro da lógica de que com o recurso daquela decisão (da forma à partilha) deveriam ser impugnadas as decisões interlocutórias até aí proferidas.

Ora, não tendo sido interposto recurso pela cabeça de casal do despacho da forma à partilha, e apenas tendo sido interposto recurso pelos interessados recorrentes, não pode aquela aproveitar o recurso daqueles.

Assim sendo, a cabeça de casal não interpôs recurso com o qual deveriam ser impugnadas as decisões anteriores, nomeadamente a datada de 28.10.2021 (cuja impugnação por recurso pretendia a cabeça de casal fazer, conforme plasmado em 17-11-2021), não lhe servindo apenas esse requerimento para o efeito e – realçamos - dentro da lógica imprimida nestes autos quanto ao regime dos recursos.

E ainda que não se concorde com a mesma, na verdade, transitou em julgado aquela decisão do TRG, pelo que terá de ser imposta tal e qual.».

Insurge-se a recorrente contra esta decisão, alegando essencialmente o seguinte:

- «Dentro da lógica imprimida pelo despacho de 17/06/2022 e do disposto no art. 1123.º, n.º 2, al. b) e n.º 4 do CPC das duas uma: (1) havendo recurso da decisão de saneamento do processo e de determinação de bens a partilhar e da forma à partilha é com esse recurso que sobem os recursos retidos;(2) não havendo recurso da referida decisão os recursos retidos sobem com o trânsito em julgado da dita decisão não recorrida.»

- «Em momento algum se diz no despacho proferido em 17/06/2022, nem tal resulta sequer da lei, que a subida com o recurso interposto das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar ou da forma à partilha apenas ocorre quando este último haja sido interposto pelo mesmo sujeito processual que interpôs o recurso retido, e «ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus»»

- «Por outras palavras, não resulta da lei (mormente do disposto no art. 1123.º, n.º 2, al. b) e n.º 4 do CPC) ou sequer do referido despacho proferido em 17/06/2022 que o conhecimento do recurso interposto pela interessada CC em 17/11/2021, entretanto retido, estava dependente/condicionado à interposição de recurso por banda desta mesma CC ao despacho de forma à partilha.»

- «Com efeito concatenado o disposto no art. 1123.º, n.º 2, al. a) e n.º 4 do CPC e o teor do despacho de 17/06/2022, não se obliterando o uso da forma adjetival utilizada neste despacho (“eventuais”), estabeleceu-se 2 momentos temporais distintos e possíveis para a subida do recurso retido, a saber:

- No caso de existência de recursos de apelação referidos na al. b) do nº2 do artº 1123º do CPC, independentemente de quem o apresentasse (na medida em que seja na lei seja no despacho de 17/06/2022 não se distingue por quem terá de ser interposto o recurso);

- Após o trânsito em julgado dessas decisões, isto é, após o trânsito em julgado da forma à partilha, caso da mesma não fosse interposto recurso.».

Vejamos.

Retomemos o teor do despacho do Tribunal da Relação de 17-06-2022 relativo aos recursos de apelação interpostos pela cabeça de casal e pelos interessados da decisão da 1.ª instância de 28-10-2021:

“[N]ão se encontram ainda em momento de subida ao Tribunal da Relação nos termos da disposição legal do nº 4 do artº 1123º do CPC e com referência ao nº 2-al.b), do mesmo preceito legal e na sua conjugação com o artº 1110º-nº1 e nº 2-al.a), do citado código; apenas subindo ao tribunal superior em conjunto com eventuais recursos de apelação referidos na al. b) do nº 2 do artº 1123º citado, ou, após o trânsito em julgado dessas decisões, caso das mesmas não seja interposto recurso.”.

Antes de mais, assinale-se que, perante o regime do art. 1123.º, n.º 2, do CPC («Cabe ainda apelação autónoma: (...) b) Das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha; (...)»), se entende não oferecer dúvidas que os referidos recursos corresponderiam a apelações autónomas (cfr. António Abrantes Geraldes/Miguel Teixeira de Sousa/Carlos Lopes do Rego/Pedro Pinheiro Torres, ob. cit., págs. 138-139). Porém, tendo-se as partes (no que ora releva, tendo-se a apelante cabeça de casal) conformado com tal decisão de não admissão autónoma, consolidou-se a mesma nos presentes autos.

A questão em aberto consiste em saber se, em face do teor do transcrito despacho de 17-06-2022, o conhecimento do recurso de apelação da cabeça de casal estava ou não condicionado pela interposição de recurso despacho da forma à partilha por si interposto.

Ora, não obstante a correcção do referido despacho de 17-06-2022 oferecer fundadas reservas, certo é que os termos em que o mesmo se encontra redigido são de molde a legitimar a leitura apresentada pela recorrente, segundo a qual o recurso de apelação por si interposto seria conhecido fosse com o recurso de apelação interposto ao abrigo do previsto no art. 1123.º, n.º 2, alínea b), do CPC, independentemente de quem o apresentasse, fosse «após o trânsito em julgado» do despacho determinativo da forma à partilha, caso deste não fosse interposto recurso.

Assim, e perante os termos – repita-se, ainda que não rigorosos – do teor do despacho de 17-06-2022, os princípios da confiança e da lealdade processual não permitiam que o Tribunal da Relação, pelo acórdão ora recorrido, se recusasse a conhecer o recurso de apelação interposto pela cabeça de casal. Conforme se decidiu no acórdão deste Supremo Tribunal de 03-03-2004 (proc. n.º 03P4421), disponível em www.dgsi.pt, assim sumariado, «[o] processo justo, a boa-fé, a confiança e a lealdade processual impõem que os interessados devem poder confiar nas condições de exercício de um direito processual estabelecido em despacho do juiz, sem que possa haver posterior e não esperada projecção de efeitos processualmente desfavoráveis para os interessados que confiaram no rigor e na regularidade legal do acto do juiz».

Conclui-se, pois, pela procedência desta pretensão da cabeça de casal, ora recorrente, devendo os autos baixar ao Tribunal da Relação para conhecimento do recurso de apelação pela mesma interposto da decisão da 1.ª instância de 28-10-2021."

[MTS]