"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/09/2024

Jurisprudência 2024 (6)

 
Providências cautelares;
periculum in mora
 

I. O sumário de RE 11/1/2024 (7321/23.2T8STB.E1) é o seguinte:

[?] Todos os danos são suscetíveis de tutela cautelar, verificados que sejam os demais requisitos das providências cautelares.

1. Se um construtor não puder concretizar ou correr o risco de não poder concretizar, no prazo a que obedece um licenciamento, a realização do mesmo e a subsequente construção e comercialização dos edifícios planeados, em razão duma ocupação de parte desse espaço por terceiro, comprometedora da edificação da obra no seu conjunto, poder-se-á estar perante uma lesão grave ou dificilmente reparável do seu direito, a justificar o recurso a uma tutela cautelar.

2. Para a valoração do dano grave e irreparável ou de difícil reparação, não é necessário que se trate de um dano irreparável em termos absolutos, bastando que implique uma reconstituição dificultada do status quo anterior.

3. Só se pode concluir pela falta de instrumentalidade da providência cautelar se a ação principal foi anteriormente instaurada e os pedidos de uma e outra não apresentam correspondência funcional.

4. A provisoriedade das providências cautelares significa que os efeitos de qualquer providência cautelar (exceto se for decretada a inversão do contencioso e o requerido notificado não fizer uso da ação de impugnação do direito acautelado), são necessariamente limitados no tempo.

5. Pode haver lugar a despacho de aperfeiçoamento nas providências cautelares.
 

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A necessidade da composição provisória própria das providências cautelares decorre, entre outros fundamentos, do prejuízo que a demora na decisão da causa e na composição definitiva possa provocar na parte cuja situação jurídica pretende acautelada ou tutelada.

A finalidade específica das providências cautelares é, assim, evitar que outrem cause lesão grave ou dificilmente reparável (na expressão do artigo 362.º, 1, do CPC) ao seu direito, proveniente da demora na tutela da situação jurídica. Ou seja, obviar ao chamado, periculum in mora.

Se faltar o periculum in mora, ou seja, se o requerente da providência não se encontrar, pelo menos, na iminência de sofrer qualquer lesão ou dano, cuja prevenção imponha uma decisão urgente, falta a necessidade de composição provisória.

O tribunal a quo considerou suficientemente alegado “o direito” por parte da Requerente, mas não «a lesão grave ou dificilmente reparável ao seu direito», ou seja, o periculum in mora.

De acordo com a sentença, os prejuízos decorrentes da demora na efetivação do direito, decorrente das delongas de uma normal ação declarativa, têm natureza patrimonial, na medida em que a Requerente poderá por via da ocupação não levar a cabo o seu objetivo com a aquisição dos imóveis, ficando privada de proceder rapidamente ao loteamento e construção de habitações. E, os danos de natureza patrimonial serão, pelo menos em abstrato, facilmente reparáveis com a compulsão do Requerido no pagamento dos respetivos custos e, bem assim, no ressarcimento de prejuízos eventualmente decorrentes da privação do uso do imóvel por parte da Requerente.

Ou seja, de acordo com a decisão liminar, a factualidade aduzida não sustenta indiciariamente a lesão grave e dificilmente reparável, uma vez que, em regra, os prejuízos materiais são passíveis de ressarcimento.

Acrescentando a decisão liminar que, tendo a Requerente afirmado no articulado inicial, desconhecer a situação económica do Requerido, tal afirmação compromete a existência de um eventual perigo por impossibilidade do Requerido em suportar o agravamento dos encargos decorrente do arrastamento da ação principal.

Cremos que esta ponderação assentou, com todo o respeito, numa configuração simplificada e redutora da finalidade das providências cautelares, sugerindo o afastamento da tutela da providência cautelar não especificada, dos danos de natureza patrimonial e, desconsiderando o facto de, no juízo probatório, dever o tribunal contar com as regras da experiência da vida, da normalidade e do senso comum, quando não se impuser uma prova direta.

Desconsidera, ainda que, face à lei, todos os danos são compensáveis, independentemente da sua natureza patrimonial ou não patrimonial, logo, todos os danos são suscetíveis de tutela cautelar, verificados que sejam os demais requisitos das providências cautelares.

Assim, e em abstrato, se um construtor não puder concretizar ou correr o risco de não poder concretizar, no prazo a que obedece um licenciamento, a realização do mesmo e a subsequente construção e comercialização dos edifícios planeados, em razão duma ocupação de parte desse espaço por terceiro, comprometedora da edificação da obra no seu conjunto, poder-se-á estar perante uma lesão grave ou dificilmente reparável do seu direito, a justificar o recurso a uma tutela cautelar.

Para a valoração do dano grave e irreparável ou de difícil reparação, não é necessário que se trate de um dano irreparável em termos absolutos, bastando que implique uma reconstituição dificultada do status quo anterior.

A privação ou limitação do gozo e fruição plena da propriedade de um prédio, ainda que analisada apenas na sua expressão patrimonial, é suscetível de constituir um dano de difícil reparação, não se mostrando exigível a alegação e demonstração económica do requerido, sendo bastante concluir que o prejuízo com a não concretização do loteamento, construção e venda das habitações é suscetível de atingir valores incomportáveis para o cidadão médio.

Esta uma realidade que, com todo o respeito, a decisão recorrida não esgota na sua ponderação e cuja possibilidade de demonstração probatória de forma ampla, a boa tutela aconselha."
 

III. [Comentário] O acórdão poderia ser mais claro quanto à aferição do periculum in mora. Absolutamente certo é, no entanto, o que se começa por afirmar no acórdão:

"A finalidade específica das providências cautelares é, assim, evitar que outrem cause lesão grave ou dificilmente reparável (na expressão do artigo 362.º, 1, do CPC) ao seu direito, proveniente da demora na tutela da situação jurídica. Ou seja, obviar ao chamado, periculum in mora.

Se faltar o periculum in mora, ou seja, se o requerente da providência não se encontrar, pelo menos, na iminência de sofrer qualquer lesão ou dano, cuja prevenção imponha uma decisão urgente, falta a necessidade de composição provisória."

Quer dizer: o periculum in mora é aferido pelo prejuízo decorrente da falta da concessão de uma tutela provisória ao requerente, e não pela ressarcibilidade dos prejuízos que a conduta do requerido possa provocar a esse requerente (MTS, CPC online (vs. 2024.04), Art. 362.º, n.º 13 ss.).

MTS