"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/09/2024

Jurisprudência 2023 (230)

 
PED;
reconvenção; admissibilidade*


1. O sumário de RP 7/12/2023 (1239/23.6YLPRT-A.P1) é o seguinte:

I - Deduzida oposição no procedimento especial de despejo, não obstante a fase jurisdicional que se segue à distribuição ser caraterizada pela celeridade e simplificação processual, impõe-se assegurar o direito do arrendatário ao exercício do contraditório, aliás consagrado pela previsão de um novo articulado constante da segunda parte do n.º 2 do artigo 15º-H do Novo Regime do Arrendamento Urbano, o qual tanto poderá servir para responder à matéria de exceção como para responder à matéria da reconvenção deduzida.

II - Razões de economia processual e de tutela efectiva do arrendatário justificam que no âmbito do procedimento especial de despejo, o arrendatário se possa defender, na oposição, por impugnação, por excepção e ainda, por reconvenção, fazendo valer, designadamente, o seu direito a indemnização pelo cumprimento defeituoso do contrato de arrendamento, para além da mera compensação de créditos (sempre admissível) e evitando a interposição de acção autónoma, que poderia vir a constituir causa prejudicial à efectiva desocupação do locado.

III - A indemnização peticionada nos autos prende-se com o (alegado) incumprimento pelo senhorio, precisamente, da obrigação que é correspectiva da renda (cuja falta de pagamento se constitui como causa do despejo), a saber, a de proporcionar o gozo da coisa para os fins do contrato; com o que em causa o exercício de direito que tem causa no mesmo contrato de arrendamento mesmo cuja cessação vem pedida e, assim, verificada a conexão objetiva que justifica a admissibilidade da reconvenção.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] da tramitação do PED retira-se que o respectivo regime não contempla, ao menos de forma expressa, a possibilidade de dedução de reconvenção pelo demandado, mas não deixa de prever a existência de um novo articulado sempre que seja necessário garantir o contraditório, conforme resulta de modo cristalino do n.º 2, segunda parte do art.º 15º-H do NRAU.
 
Manifesto que a existência de um pedido formulado pelo demandado contra o demandante introduz no processo a necessidade de apreciar e decidir novas questões, o que contende com a celeridade e simplificação que o legislador quis alcançar com a criação do PED.
 
Sempre a reconvenção é uma nova acção proposta pelo réu (reconvinte) contra o autor (reconvindo), baseando-se num pedido conexo com o do autor. Deduzida a reconvenção, esta constitui uma acção enxertada noutra, ou seja, uma acção do réu num processo pendente, sendo considerada também como uma contra-acção ou como uma acção cruzada.
 
Com a dedução da reconvenção é o próprio conteúdo da relação processual que sofre uma significativa alteração, já que a reconvenção “representa uma cumulação sucessiva (não inicial) de objectos, tendo como principal especialidade a característica de este objecto ser um contra-objecto, já que se opõe àquele que é inicialmente proposto pelo autor.” – cf. Marco António Borges, A Demanda Reconvencional, 2008, pág. 23.
 
Não se pode ignorar o relevo dos argumentos convocados para sustentar a inadmissibilidade da reconvenção, posto que é, de facto, apanágio do PED a celeridade e simplicidade que se visou alcançar na solução de litígios em matéria de arrendamento.
 
Sempre, para além da visada celeridade processual e simplificação dos atos para se atingir rapidamente a decisão final, com supressão de fases processuais existentes no processo comum de declaração, não se pode deixar de ponderar a necessidade de assegurar o contraditório, aliás, expressamente consagrada com a possibilidade de dedução de oposição por parte do demandado e, mais do que isso, com a consequente transmutação do procedimento em acção declarativa por força da apresentação de oposição, o que atenua a expressividade da diversidade da tramitação do PED face à forma de processo aplicável ao pedido reconvencional.
 
Como anota Elizabeth Fernandez, in O Procedimento Especial de Despejo (Revisitando O Interesse Processual e Testando a Compatibilidade Constitucional), Revista JULGAR - N.º 19 – 2013, pág. 78: “A tramitação do PED varia conforme o requerido (locatário) deduza ou não oposição à injunção para desocupação que lhe é dirigida pelo locador através do BNA. Não deduzindo este qualquer oposição, formar-se-á o título de desocupação assente no silêncio voluntário do locatário e com base nele será efetivado o despejo. Pelo contrário, se o locatário requerido deduzir oposição à injunção de desocupação que lhe é dirigida pelo locador o procedimento injuntivo transforma-se numa ação declarativa que, enquanto tal só pode ser apreciada judicialmente e fora do âmbito do BNA, mais propriamente no tribunal de comarca onde se situe o bem imóvel em causa após um ato de distribuição.”
 
Serve isto para dizer que, não obstante a tramitação própria que a acção deve seguir, não se pode deixar de atender, também, a razões de economia processual e de tutela efectiva do arrendatário para sustentar, em princípio, a admissão da reconvenção, sobremaneira, quando, como sucede no caso concreto, está em causa – ao menos segundo a alegação e perspectiva do recorrente – a eventual extinção, total, da dívida atinente a rendas vencidas peticionada pela demandante/recorrida, a operar através da invocação pelo réu da compensação de créditos – cf. art.º 847º do Código Civil.
 
*
Coloca em causa o recorrente a asserção, na decisão recorrida, de que na pretensão reconvencional: “não estão em causa valores de quaisquer despesas decorrentes ou com origem no contrato de arrendamento, nem com benfeitorias, mas antes com outras questões que, por isso, deverão ser apreciadas em acção própria pois que não se coadunam com a forma deste processo especial. Não pondo em causa a admissibilidade de pedido reconvencional, o mesmo terá de estar relacionado apenas e só com o contrato de arrendamento e, nomeadamente, quando se pretende fazer valor a figura da compensação de créditos, o que não é o caso dos autos, pois que para se conceber esta figura, o réu teria que admitir, para além da qualidade de credor que se arroga, a (dupla) qualidade de devedor perante a autora, que, no caso, nega, pois sustenta ser falso existirem rendas em atraso (desde logo no artigo 1.º da oposição)”.
 
Temos para nós que, nessa parte, lhe assiste razão e, assim, existir conexão objetiva entre a acção e a reconvenção.
 
Desde logo, a indemnização peticionada prende-se com o (alegado) incumprimento pelo senhorio, precisamente, da obrigação que é correspectiva da renda (cuja falta de pagamento se constitui como causa do despejo), a saber, a de proporcionar o gozo da coisa para os fins do contrato; resultando expressamente do articulado da oposição a vontade de exercer a compensação… Assim é que vem expressamente admitida a falta de pagamento das rendas como “exercício” de autotutela compensatória…
 
Não está, pois, em causa, ao contrário do sustentado na decisão recorrida, o exercício de direito que não tem causa no contrato de arrendamento mesmo cuja cessação vem pedida…
 
Mais aduz o recorrente que a inadmissibilidade da reconvenção coloca em causa o seu direito de defesa e o princípio do contraditório, tendo em conta que só através da reconvenção poderá operar a compensação com o crédito de rendas, para além do que a celeridade processual não pode colocar em causa tais direitos e, bem assim, o direito de acesso ao direito e a tutela judicial efectiva.
 
Avaliando o caso em presença, como se adiantou, verifica-se que o que o arrendatário visa também é a extinção total do crédito de rendas reclamado pela A., invocando para o efeito um crédito sobre ela que pretende ver reconhecido, socorrendo-se para o efeito da compensação. Outrossim o crédito que se arroga é emergente do inadimplemento do mesmo contrato.
 
A compensação de créditos, prevista no art.º 847.º do C.Civil constitui uma causa extintiva das obrigações como decorre do n.º 1 deste artigo e do art.º 395.º do C.Civil que alude aos factos extintivos da obrigação.
 
Donde, o devedor demandado numa ação pode pretender invocar a compensação, com vista a determinar a extinção total ou parcial da dívida reclamada.
 
Nessa medida, ainda que a entender-se inadmissível a reconvenção, sempre nos autos teria de conhecer-se da questão suscitada, a título de exceção perentória[2], com o que “alargado” necessariamente o objeto da ação, em termos de frustrar as razões de simplificação aventadas para justificar a inadmissibilidade da Reconvenção (que apenas colheria quanto à parte do crédito peticionado que excede o pedido da Autora).
 
Em abono desta posição, Rui Pinto, O Novo Regime Processual do Despejo, 2ª ed., Abril 2013 págs. 153/154.
 
De resto, a obrigar-se o inquilino a interpor uma outra acção para fazer valer eventual direito a indemnização pelo cumprimento defeituoso do contrato pelo senhorio, a pendência dessa acção poderia, desde logo, constituir causa prejudicial para efeitos de efectiva desocupação do locado[4], o que se traduziria num retardar do procedimento especial, resultando, desse modo, frustrada a agilidade que se visou Alguma dado PED resulte, a final, num provável abreviar de tramitações e protelação do despejo.
 
Disso se dá nota no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-09-2020, processo n.º 2723/19.1YLPRT.L1-7, na base de dados da dgsi, onde se concluiu pela admissibilidade da reconvenção aduzindo o seguinte:
 
Admitindo-se que tal direito apenas deveria ser exercido em ação autónoma que constituiria causa prejudicial relativamente ao PED, acabaríamos por contrariar, de igual modo, o caráter urgente deste mesmo procedimento (ver art. 272, nº 1, do C.P.C.).
 
Sempre a tramitação própria do PED não é necessariamente incompatível com a reconvenção. Embora corresponda a esta a forma de processo comum declarativo, sempre pode o juiz admiti-la, adaptando o processado (art. 266, nº 3, e 37, nºs 2 e 3, do C.P.C.).
 
Outrossim constituindo o PED um processo declarativo especial, naquilo que não esteja especialmente regulado valem as regras gerais e comuns do Código de Processo Civil e em tudo o que não estiver prevenido numas e noutras, vale o que se acha estabelecido para o processo comum (art. 549 do C.P.C.) (ver ainda Rui Pinto, ob. cit., pág. 160).
 
Finalmente, a possibilidade da existência de um novo articulado sempre que seja necessário garantir o contraditório (nº 2 do art. 15-H) tanto poderá servir para responder à matéria de exceção como para responder à matéria da reconvenção deduzida ao abrigo do art. 266 do C.P.C..”
 
Ponderando, a proteção do direito do arrendatário, os princípios da economia processual e da utilidade dos atos processuais e não deixando o procedimento especial de prevenir expressamente a possibilidade de um novo articulado, para além do requerimento de despejo e da oposição, precisamente para garantir o contraditório (cf. art.º 15º-H, n.º 2 do NRAU), que tanto poderá servir para responder à matéria da excepção como para responder à matéria da reconvenção, propende-se para a admissão da reconvenção, não se acompanhando, assim, o despacho que a julgou processualmente inadmissível.
 
No sentido da admissibilidade da reconvenção no procedimento especial de despejo vejam-se, entre outros, o Ac. da RL de 5.4.2022, Proc. 937/21.3YLPRT.L1-7, o Ac. da RL de 27.4.2017, Proc. 3222/16.9YLPRT-2, e o Ac. da RL de 6.3.2014, Proc. 2389/13.2YLPRT.L1-2, todos em www.dgsi.pt, e ainda, nomeadamente, Rui Pinto, loc. cit., p161. Ver, ainda, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 4ª ed., 2018, pág. 536.
 
Pelas razões supra expendidas, apenas a admissão da reconvenção assegurará uma discussão ampla do direito que a demandante pretende fazer valer, no confronto com a invocação da compensação e direito a indemnização por cumprimento defeituoso do contrato."
 
*3. [Comentário] A solução deve orientar-se, neste caso e em qualquer outro, pelo princípio in dubio pro actione, como, aliás, decorre da garantia do acesso aos tribunais constante do art. 20.º, n.º 1, CRP. É, aliás, por isso que se tem insistido neste Blog na admissibilidade da reconvenção nas AECOPs.

MTS