"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/09/2024

Oposição à execução e compensação: a lei distingue o que a lei impõe que se distinga


1. O sumário de RC 6/2/2024 (857/23.7T8ANS-A.C1) é, na parte que agora interessa, o seguinte:

i) A invocação da compensação, em embargos de executado, só não será admissível quando ela já era possível à data da contestação da acção declarativa, só assim se harmonizando o regime da alínea h) com o da alínea g) do art. 729º; [...]

iii) Se no âmbito de acção declarativa que deu origem à sentença condenatória exequenda, foi decidido não admitir, abstractamente, o pedido reconvencional deduzido pela R., agora executada, baseado exactamente na ora invocada compensação, com a mesma factualidade, com o argumento jurídico de que não é admissível reconvenção em sede de uma acção especial de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato (AECOP), uma vez que tal não se coaduna com a simplicidade de tramitação e celeridade que o legislador pretendeu imprimir a esta forma processual, que só tem dois articulados, caso não estabelecêssemos uma interpretação restritiva, contrária à decisão recorrida, a saber, não se poder confundir a não admissibilidade abstracta da reconvenção na dita acção especial com a improcedência da mesma, no caso concreto chegávamos a um resultado perverso: o ora recorrente não podia deduzir a compensação na acção declarativa especial (como não pôde), pois não foi admitida, e também não o poderia fazer nos embargos à acção executiva, resultado que temos por inadmissível, por coarctar severa e excessivamente os seus meios de defesa e o seu acesso ao direito, constitucionalmente consagrado; [...].

2. O acórdão que foi proferido pela RC é um dos muitos que se tem ocupado da alegação da compensação como meio de oposição à execução baseada em sentença. Ainda assim, o acórdão é particularmente curioso: começa por criar inutilmente uma dificuldade interpretativa e acaba por adoptar uma solução que demonstra a inaceitabilidade da própria dificuldade que ele próprio criou.

Indo por partes.

3. Não deixa de ser estranha a necessidade de "harmonizar" o que o legislador quis "desarmonizar" e que, objectivamente, está "desarmonizado" nos fundamentos de oposição à execução com fundamento em sentença. Há efectivamente uma diferença objectiva entre a regra (geral, se assim se pode dizer) que consta do art. 729.º, al. g), CPC para a generalidade dos factos extintivos ou modificativos e a regra (excepcional, se se pode utilizar esta terminologia) que se encontra no art. 729.º, al. h), CPC para a compensação: a primeira regra impõe uma preclusão à invocação do facto extintivo ou modificativo, a segunda não impõe nenhuma preclusão à alegação da compensação.

Quer dizer: ao contrário do que se verifica quanto à regra estabelecida no art. 729.º, al. g), CPC para a generalidade dos factos extintivos e modificativos, a regra que se encontra no art. 729.º, al. h), CPC quanto à invocação da compensação dispensa qualquer preclusão. Ainda assim, há quem pretenda submeter a invocação da compensação a uma regra de preclusão que a lei não estabelece. Pergunta-se: porquê unificar um regime que o legislador criou como diverso, tendo certamente presente que o facto extintivo ou modificativo do art. 729.º, al. g), CPC deve ser invocado por via de excepção (art. 576.º, n.º 3, CPC) e que a compensação referida no art. 729.º, al. h), CPC opera através de reconvenção (art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC).

O regime legal é coerente: o disposto no art. 729.º, al. g), CPC é uma decorrência necessária do estatuído no art. 573.º, n.º 1, CPC quanto à concentração da defesa na contestação; o estabelecido no art. 729.º, al. h), CPC harmoniza-se com o disposto no art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC e com o carácter facultativo da reconvenção. Disto decorre que a "harmonização" entre o disposto nas al. g) e h) do art. 729.º CPC implica afinal uma "desarmonização" entre regimes que são coerentes com as bases em que assentam, dado que determina a aplicação ao que pode ser alegado através de reconvenção do regime que vale para o que tem de ser invocado na contestação. Só desconhecendo esta diferença se pode procurar criar um regime único para a invocação quer de um facto extintivo ou modificativo em geral, quer da compensação em especial.

A posição favorável à "harmonização" entre as al. g) e h) do art. 729.º CPC faz precisamente o contrário do que se deve fazer. Parte de uma equiparação entre os dois regimes relativos aos fundamentos de oposição à execução e, depois, retira consequências ("para trás") quanto ao carácter preclusivo da não dedução da compensação na reconvenção. É óbvio que o que se deve fazer é precisamente o inverso: partir de uma distinção entre os regimes da excepção (peremptória) e da reconvenção e depois extrair as consequências ("para a frente") quanto ao carácter preclusivo da não dedução do facto extintivo ou modificativo na contestação e quanto ao carácter não preclusivo da não dedução da compensação na reconvenção.

4. A falta de fundamento para "harmonizar" o que deve permanecer "desarmonizado" é exemplarmente demonstrada pelo próprio acórdão da RC. Afinal, ao contrário da postulada "harmonização" entre as al. g) e h) do art. 729.º CPC, o acórdão demonstra que a invocação da compensação não pode ficar sujeita a nenhuma regra de preclusão quando a acção declarativa na qual se formou o título executivo é uma AECOP, dado que -- na opinião da RC (que agora não interessa discutir) -- não é possível deduzir a compensação nessa acção.

Este é um dos aspectos mais curiosos do acórdão da RC: a demonstração de que, afinal, a postulada "harmonização" não pode valer em todo e qualquer caso. A orientação defendida no acórdão acaba por levar a "harmonizar" nuns casos e a "desarmonizar" noutros o disposto nas al. g) e h) do art. 729.º CPC. Noutros termos: a posição adoptada no acórdão acaba por criar uma regra e uma excepção, que é precisamente o que o legislador estabeleceu -- de forma bem avisada... -- nas al. g) e h) do art. 729.º CPC.

No seu acórdão, a RC apercebeu-se da impossibilidade de aplicar ao caso concreto o postulado de "harmonização" de que partiu. Só não se percebe por que razão a RC não deu o passo que se impunha: depois de descobrir um dos casos a que o seu postulado não se aplica, faltou questionar a justificação desse mesmo postulado. Como se procurou demonstrar, não faltam razões para assim se entender.

5. Cumprindo a regra que realmente consta do art. 729.º, al. h), CPC quanto à invocação da compensação como meio de oposição à execução e tendo presente as razões que justificam a sua distinção perante a regra que se encontra no art. 729.º, al. g), CPC tudo se torna coerente e simples: não há nenhuma preclusão imposta à invocação da compensação como meio de oposição à execução, muito menos quando se entenda que a compensação não podia ter sido realizada na acção declarativa na qual se formou o título executivo.

MTS