I) A ratio legis do instituto da inversão do contencioso, a que se refere o artigo 369.º do CPC, é a de evitar “que tenha de se repetir inteiramente, no âmbito da ação principal, a mesma controvérsia que acabou de ser apreciada e decidida no âmbito do procedimento cautelar – obstando aos custos e demoras decorrentes desta duplicação de procedimentos” (assim, a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, do XIX Governo Constitucional, que esteve na origem do CPC de 2013).
II) Decretada a inversão do contencioso, consolidar-se-á a tutela cautelar em decisão definitiva, quando se verificarem os seguintes pressupostos:
a) Quando tiver decorrido o prazo concedido ao requerido para instaurar a ação principal (art.º 371.º, n.º 1, do CPC);
b) Na situação prevista no n.º 2 do artigo 371.º do CPC;
c) Quando, proposta a ação principal pelo requerido, transitar em julgado a decisão que a julgue improcedente.
III) Com a inversão do contencioso, a providência cautelar torna-se convertível em definitiva, mas não imediatamente definitiva, vindo tal a depender da não instauração de ação principal pelo requerido.
IV) Em caso de decretamento da inversão do contencioso, existirá uma espécie de “caducidade atributiva”, por oposição à vulgar “caducidade extintiva”, em que o decurso do prazo (para o requerido interpor a ação principal) gera, não a extinção do procedimento cautelar, mas a consolidação da providência, em decisão definitiva.
V) Nos casos de inversão de contencioso, em que teve lugar o decretamento da providência e em que o requerido não interpôs a ação principal, a decisão tomada em providência cautelar converte-se em definitiva, mas tal efeito não constitui uma causa de caducidade da providência, não ocorrendo, nessa situação, alguma das situações que determinariam a caducidade da providência e que resultam do n.º 1 do artigo 373.º do CPC.
VI) Tratando-se de uma providência na qual foi determinada a apreensão e entrega de determinado bem, mas que não se encontra efetivada, sem se verificar causa de caducidade da mesma, inexiste motivo para a extinção dos autos e promoção da sua contagem, com imposição à requerente do ónus de instaurar ação executiva para entrega do bem.
VII) Assumindo o procedimento cautelar uma componente eficiente de execução do direito, cuja tutela definitiva já foi conseguido, não se vê utilidade, nem interesse objetivo, na sua substituição pela ação executiva, pelo que, estando pendente procedimento que realiza cabalmente os fins próprios da execução, não é curial impor-se ao titular do direito, se o quiser efetivar, que tome a iniciativa de propor e iniciar outro – ação executiva para entrega de coisa certa - com a mesma finalidade.
"Conforme resulta da tramitação do presente processo, verifica-se que o Tribunal recorrido, após ter determinado a citação da requerida – que não deduziu oposição - veio a decretar a providência cautelar comum pugnada pela requerente, ordenando a apreensão e entrega à requerente do equipamento em questão e - perante requerimento da requerente nesse sentido - dispensando a requerente da propositura da ação principal, decretando a inversão do contencioso.
Tentada a apreensão e entrega do equipamento, a mesma não se logrou concretizar, após o que, a requerente veio aos autos requerer novas diligências para tal finalidade, com reporte à morada do legal representante da requerida, “visto que, o mesmo poderá ter em seu poder os bens propriedade da Requerida” e “não procedendo o legal representante à entrega do bem, deverá ser notificado para informar os autos da localização dos bens locados informado que incorre na prática dos crimes de desobediência qualificada e de abuso de confiança. (…)”.
Sucede que, por despacho de 15-11-2023, o Tribunal veio a indeferir tal pretensão da requerente, entendendo que, com a consolidação definitiva do litígio – em resultado da determinação da inversão do contencioso e da não instauração de ação principal pela requerida no prazo previsto no n.º 1 do artigo 371.º do CPC – a execução da decisão de apreensão e entrega deverá ter lugar em ação executiva com vista a entrega de coisa certa, pelo que determinou a contagem (para apuramento da responsabilidade tributária) dos autos.
É contra esta decisão que a requerente se insurge.
Na sequência da alegação que desenvolve, conclui a recorrente que o Tribunal recorrido – ao proferir o despacho de 15-11-2023 – impede “que a apreensão ordenada nos presentes autos possa ser executada no âmbito dos mesmos e sugerindo que a apreensão do bem terá de ser efetuada no âmbito de ação executiva”, sendo que, “não se verifica in casu qualquer dos casos de caducidade da providência previstos no artigo 373.º do CPC, nem sendo a prolação da sentença de inversão do contencioso fundamento para proceder à extinção dos presentes autos, deverá a providência requerida, salvo melhor entendimento, prosseguir os seus termos atento os fins especiais de celeridade e agilização processual, sendo que os presentes autos de procedimento cautelar só deverão findar com a efetiva apreensão e entrega do bem ao proprietário, ora Recorrente”, pelo que, indeferindo o Tribunal recorrido as diligências de apreensão requeridas, “pelo suposto esgotamento da tutela cautelar, em virtude do reconhecimento definitivo do direito, sem que a providência cautelar haja sido cumprida em toda a sua extensão porque o bem dela objeto não se mostra apreendido está o Tribunal a forçar a ora Recorrente a ter de executar a referida sentença que julgou definitivamente a presente causa” (cfr., conclusões O. a Q.).
Vejamos:
Os procedimentos cautelares constituem os meios – de natureza urgente (cfr. artigo 363.º do CPC) - de que o titular do direito dispõe para acautelar o efeito útil da acção (cfr. art.º 2º, n.º 2, in fine, do C.P.C.), visando-se com eles “impedir que durante a pendência de qualquer acção declarativa ou executiva a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela” (A. Varela et al; Manual de Processo Civil, 2ª ed., p. 23). [...)
Vejamos, em termos necessariamente breves, em que se traduz esta figura, inovação do CPC de 2013.
Dispõe o artigo 369.º do CPC – com a epígrafe “Inversão do contencioso” - que:
2 - A dispensa prevista no número anterior pode ser requerida até ao encerramento da audiência final; tratando-se de procedimento sem contraditório prévio, pode o requerido opor-se à inversão do contencioso conjuntamente com a impugnação da providência decretada.
3 - Se o direito acautelado estiver sujeito a caducidade, esta interrompe-se com o pedido de inversão do contencioso, reiniciando-se a contagem do prazo a partir do trânsito em julgado da decisão que negue o pedido”.
A ratio legis deste instituto é a de evitar “que tenha de se repetir inteiramente, no âmbito da ação principal, a mesma controvérsia que acabou de ser apreciada e decidida no âmbito do procedimento cautelar – obstando aos custos e demoras decorrentes desta duplicação de procedimentos” (assim, a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, do XIX Governo Constitucional, que esteve na origem do CPC de 2013). [...]
Dispõe o artigo 371.º do CPC que:
2 - O efeito previsto na parte final do número anterior verifica-se igualmente quando, proposta a ação, o processo estiver parado mais de 30 dias por negligência do autor ou o réu for absolvido da instância e o autor não propuser nova ação em tempo de aproveitar os efeitos da propositura da anterior.
3 - A procedência, por decisão transitada em julgado, da ação proposta pelo requerido determina a caducidade da providência decretada”.
Assim, decretada a inversão do contencioso, consolidar-se-á a tutela cautelar em decisão definitiva, quando se verificarem os seguintes pressupostos:
b) Na situação prevista no n.º 2 do artigo 371.º do CPC;
c) Quando, proposta a ação principal pelo requerido, transitar em julgado a decisão que a julgue improcedente. [...]
De facto, não ocorre, nessa situação, alguma das situações que determinariam a caducidade da providência e que resultam do n.º 1 do artigo 373.º do CPC.
Em particular, não se pode afirmar que, na situação dos autos, o direito da requerente se tenha extinguido, por via da conversão da tutela provisória do respetivo direito, em tutela definitiva. Pelo contrário, tal conversão determina uma maior premência e efetividade na tutela do direito – reconhecido a título definitivo - da requerente, não se podendo considerar ter-se o mesmo extinto, pelo reconhecimento de uma situação de definitividade na composição do litígio.
A nosso ver, a situação é diversa daqueles casos em que, não tenha sido determinada a inversão do contencioso e em que a providência cautelar tenha sido deferida, mas careça de confirmação em ação principal, mas que, não venha a ter lugar; ou, daqueles casos, em que, igualmente sem ter lugar a inversão e antes de a providência ser decretada, o bem venha a ser entregue ao requerente, caso em que a providência cautelar se extinguirá por inutilidade superveniente da lide, uma vez que a tutela cautelar não será mais necessária.
Ora, no presente caso, tratando-se de uma providência na qual foi determinada a apreensão e entrega de determinado bem, mas que não se encontra efetivada, sem se verificar causa de caducidade da providência ou de extinção da instância, afigura-se que, inexiste motivo para a extinção dos autos e promoção da sua contagem, com imposição à requerente do ónus de instaurar ação executiva para entrega do bem, cuja entrega já foi determinada nos presentes autos.
Ou seja: Os presentes autos deverão prosseguir termos para efetivação das mencionadas apreensão e entrega, ainda não concretizadas, mas, relativamente às quais, o correspondente direito da requerente já foi, com definitividade, reconhecido, sem necessidade de instauração de ação executiva para efetivação de tais atos.
Posicionando-se nestes moldes, onde estava em questão providência cautelar comum e a apreensão de veículo automóvel, mas cujas considerações são plenamente transponíveis para a situação dos presentes autos e que nos merecem inteira adesão, decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-04-2016 (Pº 934/14.5TVLSB-A.L1-7, rel. LUÍS ESPÍRITO SANTO) o seguinte:
O interesse primordial dos presentes autos cautelares – a apreensão do veículo automóvel, cujas sucessivas tentativas têm-se revelado infrutíferas – subsiste incólume e deverá ser empenhadamente prosseguido, com celeridade e eficácia, sob pena de irreversível frustração do direito substantivo gravemente em risco.
Assim, o que está aqui em causa é a efectivação do direito do requerente, que urge, sem delongas, acautelar, e que por circunstâncias que lhe são absolutamente alheias, ainda não foi assegurado pelo ordenamento jurídico ao qual se dirigiu e que acolheu inteiramente a sua pretensão.
Afigura-se-nos, por isso, incompreensível e ilógico que se obrigue a requerente (que anda há anos a pugnar denodadamente pela efectivação da diligência de apreensão do veículo automóvel) a encetar nova via sacra, dando à execução a sentença declarativa de teor essencialmente coincidente com a pretensão formulada em termos cautelares, com o inerente acréscimo de dispêndios de tempo e custos e inutilização do trabalho já realizado no plano deste procedimento.
Isto para impulsionar exactamente a mesmíssima actividade processual que estava em curso há longo tempo.
No fundo, refazer o que já estava a ser feito, inútil e cansativamente.
Conforme certeiramente se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22 de Março de 2007 (relator Francisco Magueijo), publicado in www.dgsi.pt: “…assumindo o procedimento cautelar uma componente eficiente de execução do direito declarado na acção, não se vê utilidade, nem interesse objectivo, na sua substituição pela acção executiva. É manifesto o prejuízo que daí resultaria para o titular do direito de propriedade sobre o bem a apreender, com evidente e desnecessária desconsideração dos princípios da economia e da celeridade processuais. Estando pendente procedimento que, no caso, realiza cabalmente os fins próprios da execução e estando ele na fase fina do processamento, não é curial impor-se ao titular do direito, se o quiser efectivar, que tome a iniciativa de propor e iniciar outro”.
Neste mesmo sentido, vide:
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Abril de 2008 (relator Olindo Geraldes), publicado in www.dgsi.pt; publicado in www.dgsi.pt; acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16 de Agosto de 2007 (relator Eduardo Tenazinha), publicitado in www.dgsi.pt; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21 de Maio de 2009 (relator Farinha Alves), publicitado in www.jusnet.pt.
Contra vide acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de Julho de 2010 (relatora Ondina Alves), publicitado in www.jusnet.pt.
Privilegiar-se-á a solução que defende substantivamente os interesses protegidos pelo sistema jurídico, salvaguardando a sua eficácia e celeridade, em detrimento de uma retórica formal e ritualista que se esgota em si própria”.
Não ocorrendo qualquer vantagem objectiva nessa substituição (designadamente no caso do titular do direito pretender indemnização, nomeadamente por não se encontrar o bem locado, sendo que a respectiva liquidação não assume cabimento processual no âmbito da providência) e tendo presente a impossibilidade de descurar a necessária prossecução e promoção dos princípios de economia e celeridade processuais, não pode deixar de se concluir que o procedimento cautelar não perde (antes continua a manter) o interesse face à substituição da decisão provisória pela definitiva (com o trânsito em julgado da acção principal). A aceitação de outra posição radica na violação do próprio sentido económico visado com o estabelecimento do regime previsto para a acção cautelar neste âmbito.
Mantendo total interesse a pendência do procedimento cautelar, não obstante o trânsito em julgado que declarou definitivamente o direito do Requerente, não há que o fazer extinguir por inverificação de qualquer situação de caducidade”.
Posto isto, a questão permanece: quando é que se pode pedir, num procedimento cautelar, a apreensão de um bem? Responde-se: certamente, quando a lei o permite. E fora disso? Nesta situação, a resposta parece dever ser a de que o pedido de apreensão não é admissível.
Imagine-se que um interessado quer reaver um computador que (alegadamente) lhe pertence. Em vez de propor uma acção de reivindicação (naturalmente destinada a obter o reconhecimento da sua propriedade e a condenação do demandado a restituir-lhe o automóvel (art. 1311.º, n.º 1, CC)), pode esse (alegado) proprietário intentar uma acção em que, com base no seu (alegado) direito de propriedade sobre o computador, pede a apreensão deste bem?