"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/09/2024

Jurisprudência 2024 (14)

 
Decisão arbitral;
pedido de anulação; integração de lacuna contratual

 
1. O sumário de STJ 31/1/2024 (1195/22.8YRLSB.S1) é o seguinte:

I- Para o efeito de anulação de sentenças arbitrais, a violação do princípio do contraditório na manifestação da proibição de decisões-surpresa, com influência decisiva na resolução do litígio, encontra acolhimento na subal. ii) do art. 46º, 3, a), em conjugação com as als. b) e c) do art. 30, 1, da LAV e, devidamente interpretada em conformidade com o art. 3º, 3, do CPC, não conduz à invalidade da decisão se a questão instrumental (identificação de lacuna contratual e necessidade da sua integração de acordo com os critérios do CCiv.) para as questões decidendas foi levantada, conhecida e discutida nas peças escritas da tramitação antes da decisão final sindicada, estando em condições de ser considerada expressamente pelo tribunal no exercício legítimo de subsunção jurídica dos factos ao direito aplicável, incluindo o diálogo com tais pronúncias das partes e respectiva capacidade de influenciar e basear o raciocínio argumentativo-aplicativo do tribunal decisor; a necessidade de audição das partes sobre a questão (mesmo que seja instrumental para a questão decidenda) ou matéria a julgar e o seu enquadramento jurídico-legal de resolução distingue-se de uma eventual pronúncia das partes sobre o projecto de decisão que traduzirá o sentido concreto de aplicação desse enquadramento jurídico-legal na questão, que não é de exigir que um julgador desencadeie (embora não esteja inibido de o empreender como faculdade cautelar em determinadas circunstâncias ponderosas).

II- Para o efeito de anulação de sentenças arbitrais, a falta de competência decisória e o excesso de pronúncia da decisão arbitral (subals. iii) e v) do art. 46º, 3, a), da LAV) não se verificam se, no âmbito de uma convenção de arbitragem válida e eficaz, sem qualquer condicionamento quanto às normas a aplicar ou quaisquer limites aos poderes de cognição ao tribunal arbitral, o julgador tem o poder e o dever de resolver o litígio de acordo com a lei aplicável e reconhecida pelas partes vinculadas, com a extensão objectiva e subjectiva que decorre da própria convenção; o facto de uma das partes não concordar com o sentido da decisão não significa que o tribunal extravasou os poderes conferidos para levar a cabo o processo decisório necessário à resolução da causa, desde logo informado pela liberdade de qualificação e julgamento atribuída pelo art. 5º, 3, do CPC.

III- Para o efeito de anulação de sentenças arbitrais, a “omissão de pronúncia” (subal. v) do art. do art. 46º, 3, a), da LAV) não é vício procedente se as questões elencadas e submetidas pelas partes à arbitragem foram respondidas e decididas com fundamento pelo tribunal, enunciando de forma apreensível os fundamentos factuais e normativos da decisão e tornando perceptível o iter lógico-jurídico seguido na resolução do litígio.

IV- Para o efeito de anulação de sentenças arbitrais, a ofensa dos «princípios da ordem pública internacional» (sub al. ii do art. 46º, 3, b), da LAV) corresponde a uma sindicação mínima e de ultima ratio do resultado concreto e material da decisão (e solução do litígio) proferida, implicando uma análise do conteúdo da sentença (e não apenas ao modo como o processo se desenrola), sem que se proceda, porém e decisivamente, à revisão ou reexame do mérito; não procede se não se encontra na decisão final, e no seu percurso argumentativo para atingir os efeitos jurídicos constituídos nas esferas das partes, qualquer tratamento desigualitário e/ou composição de interesses fundada em desequilíbrio manifesto e excessivo (princípio da igualdade na aplicação do direito (com reflexo num princípio de não discriminação e de proibição do arbítrio); princípio da proporcionalidade e proibição do excesso; arts. 13º, 1, e 18º, 2-266º, 2, da CRP).
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

3.1.2. Em segundo lugar, invoca-se a falta de competência do tribunal arbitral para efectuar a integração da lacuna surpreendida no ACC por tal extravasar o âmbito da convenção de arbitragem (subal. iii) do art. 46º, 3, a), da LAV) e, em consequência, ter conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento, caindo em “excesso de pronúncia” (subal. v) do art. 46º, 3, a), da LAV).

Quid juris?

A) A arbitragem desencadeada pelas Partes teve como fundamento a cláusula 34.2. do ACC («Todos os litígios decorrentes de ou associados ao presente Acordo serão definitivamente resolvidos de acordo com o Regulamento de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional por três árbitros nomeados de acordo com esse Regulamento. (…)).

Nos termos da cláusula 33. do ACC, “o presente Acordo e quaisquer obrigações extracontratuais dele decorrentes ou a ele associadas serão regidos pela lei de Portugal”.

Na “Carta de Arbitragem” de 3/2/2020, disponível nos autos, as Partes acordaram em submeter conjuntamente a processo de arbitragem, nos termos da cláusula 34 do ACC, a resolução definitiva das matérias elencadas em relação às quais as Partes têm perspectivas divergentes (ponto 1.)

No Requerimento de Arbitragem as Partes declararam reconhecer que não tinham objecções quanto à existência, validade e âmbito desse acordo arbitral – parágrafo 10.

Nesse mesmo Requerimento, as Partes elencam as “Matérias do ACC” que submetem a “decisão de um Tribunal Arbitral” – parágrafos 84. e 85. (cfr. supra, ponto 1. do Relatório).

B) O exercício da função jurisdicional encontra-se reservado aos tribunais enquanto órgãos de soberania competentes para administrar a justiça em nome do povo (da CRP). Sem prejuízo, a nossa Constituição permite, expressamente, a constituição de tribunais arbitrais, que poderão assumir uma feição necessária ou voluntária, consoante resultem de imposição legal ou da vontade das partes (arts. 202º, 4, 209, 2 e 3, da CRP).

A arbitragem voluntária é admitida, desde que por lei especial não esteja o litígio submetido exclusivamente aos tribunais do Estado ou a arbitragem necessária, e ocorre mediante uma convenção de arbitragem (arts. 1º e 2º da LAV). Quando a convenção de arbitragem diga respeito a um litígio actual, denomina-se de compromisso arbitral e deve fixar o objecto do litígio – cfr. arts. 1º, 3, e 2º, 6, da LAV.

Como se explica, exemplificativamente, no Ac. deste STJ, de 12/11/2020 [Proc. n.º 923/16.5YRLSB.S1, Rel. OLIVEIRA ABREU, in www.dgsi.pt], “[a] arbitragem voluntária é, assim, contratual na sua origem, privada na sua natureza, jurisdicional na sua função e pública no seu resultado. No que respeita à convenção de arbitragem (…), reconhecemos que a mesma encerra um negócio jurídico bilateral, da qual emerge para as partes um direito potestativo que as vincula a instituir um tribunal arbitral com vista a dirimir o dissídio nela previsto. A convenção não se revela propriamente sobre a relação jurídica material, sendo antes acessória desta, a par de que não é a solução para o litígio, mas tão só o meio de as partes o poderem solucionar.”

E assim é uma vez que “a função é desempenhada através de poder de decisão de litígios exercido por uma instância neutral. Tem natureza contratual privada, porque os tribunais arbitrais são criados em conformidade com convenções de arbitragem, que constituem a fonte dos seus poderes e delimitam o âmbito da respectiva competência” [CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, “Convenção de arbitragem: conteúdo e efeitos”, I Congresso do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (Centro de Arbitragem Comercial) – Intervenções, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 82.]

Claro que a convenção de arbitragem pode delimitar os poderes jurisdicionais em diversos aspectos. “Desde logo, quanto aos critérios de decisão: a equidade (LAV, artigo 22.º), as normas de um determinado direito estadual (LAV, artigo 33.º) ou um conjunto normativo sem referência estadual específica (direito uniforme e, embora discutível, lex mercatoria). A convenção pode ainda conter indicações sobre o estatuto dos árbitros (v.g. a remuneração, cfr. LAV, artigo 5.º) e as regras do processo (artigo 15.°, n.º 1), por exemplo, sobre a sede e a língua do processo, os articulados, o saneamento processual, as provas, o prazo da decisão (artigo 19.º, n.º 1), o funcionamento do tribunal colectivo (artigo 20.º), a admissibilidade ou inadmissibilidade de recursos (artigo 29.º). Estas indicações podem ser directas ou por remissão para regulamentos de centros de arbitragem. Na falta destas indicações sobre o critério de decisão, o direito aplicável e as regras de processo, a selecção resulta de normas legais supletivas (LAV, artigos 22.º, 33.º, n.° 2, 15.º e seguintes), por vezes com necessidade de complemento doutrinário ou jurisprudencial” [FERREIRA DE ALMEIDA, “Convenção de arbitragem: conteúdo e efeitos”, loc. cit., pág. 89.]

C) Seja como for, dispõe o art. 39.º da LAV que “os árbitros julgam segundo o direito constituído, a menos que as partes determinem, por acordo, que julguem segundo a equidade.”.

“Direito constituído é: (1) Direito estrito, por oposição à equidade, como se infere da adversativa do próprio preceito; (2) Direito substantivo (civil, comercial ou administrativo), por oposição a Direito processual; (3) Direito vigente, ex lege ou ex contracta por oposição a Direito a constituir ou a direito constituído pelos árbitros; (4) Direito competente por, para ele, haver uma remissão válida”; “A escolha das partes é decisiva. Seja na convenção de arbitragem, seja no contrato em que a mesma se insira, elas podem optar por leis nacionais ou estrangeiras. Por exemplo: aplicar o regime público a contratos privados (hipótese frequente nas empreitadas), apelar para modelos preexistentes (por exemplo, no domínio financeiro), nacionais ou estrangeiros ou remeter para leis estrangeiras, nos limites da seriedade e da ordem pública. Nada dizendo, cai-se na lex fori: os casos a decidir em Portugal guiam-se pela Lei do País. A decisão parece tão natural, que nem se refere: mas impõe-se” [ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado da Arbitragem. Comentário à Lei 63/2011, de 14 de dezembro, Almedina, Coimbra, 2016, sub art. 39º, pág. 361]

D) No caso, sujeitaram-se à apreciação do tribunal arbitral duas questões, a de saber se a «Novo Banco» podia, nos termos do ACC, reverter a decisão de implementação do regime transitório da IFRS 9 e, na afirmativa, se o «Fundo de Resolução» estava obrigado a proceder aos pagamentos contratualizados, contabilizados em função daquela decisão de reversão.

Cumpre desde logo afirmar que, como de resto a Recorrente não coloca em crise, do requerimento de arbitragem não consta qualquer condicionamento quanto às normas a aplicar ou quaisquer limites aos poderes de cognição do tribunal arbitral. Logo, ao tribunal arbitral foi atribuída a tarefa de proceder à exegese das normas contidas no ACC para delas extrair as respostas solicitadas pelas Partes.

Voltamos a distinções que importa acentuar: uma coisa é conhecer de questões diferentes das colocadas pelas partes, outra, muito diferente, é responder às questões colocadas, ainda que trilhando um caminho não secundado pelas partes ou por uma das partes.

Como é evidente, do acordo arbitral – sem limitações quanto ao âmbito de litígios a dirimir no âmbito de interpretação e aplicação do ACC – e dos sucessivos “Carta” e “Requerimento de Arbitragem” resulta a identificação das questões para as quais se buscava decisão, não se determinando o sentido da(s) resposta(s) a dar pelos árbitros, nem tão-pouco os critérios decisórios a utilizar pelos árbitros – apenas a lei aplicável.

Assim sendo, apenas se deve convocar para o caso o que decorre em geral de uma convenção de arbitragem válida e eficaz: atribuir ao tribunal arbitral o poder de resolver o litígiocom a extensão objectiva e subjectiva que decorre da própria convenção, relevando especialmente o âmbito do litígio e os sujeitos vinculados. Dentro dessa extensão e limites, o tribunal arbitral tem o poder e o dever de resolver o litígio através da prolação de uma decisão susceptível de formar caso julgado e de ser executada [Assim, MANUEL PEREIRA BARROCASManual de arbitragem, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, pág. 164.].

Se assim é, o reconhecimento da existência de uma lacuna na regulação do contrato sob análise, em função da convenção de arbitragem, e sua integração de acordo com a regra geral decorrente da lei portuguesa (Código Civil) fazem parte – sem mais e reitere-se – do processo decisório necessário à resolução da causa, desde logo informado pela liberdade de qualificação e julgamento atribuída pelo art. 5º, 3, do CPC.

O reconhecimento da existência de uma lacuna e sua conexão decisiva para a decisão sobre as questões submetidas à arbitragem jurisdicional, concorde-se ou não com o seu desfecho, integra, como questão instrumental, o iter cognitivo percorrido na busca da solução a dar às questões colocadas e, portanto, colocando-se ao nível da aplicação do direito (contratualmente estabelecido pelas partes).

De facto, o tribunal arbitral, confrontado com uma lacuna no ACC – para cuja interpretação foi expressamente convocado – tinha de dar resposta às questões colocadas pelas Partes. A circunstância de a resposta não merecer acolhimento por parte da Recorrente, o que se compreende, não implica a conclusão de que o tribunal arbitral extravasou os seus poderes de cognição, até porque a alternativa seria colocar o tribunal arbitral na posição de não poder decidir, por ausência de critério decisório, denegando a justiça requerida pelas partes.

Não se alcança, assim, o que pretendia a Recorrente que o tribunal arbitral fizesse quando constatado com ausência de previsão contratual expressa para a situação objeto do presente litígio. Veja-se que o tribunal arbitral se pronunciou apenas sobre o litígio abrangido pela convenção de arbitragem, respondendo apenas e tão-só às questões colocadas e não extravasando a pronúncia requerida.

Como é evidente, o tribunal arbitral não completou – porque tal não lhe foi solicitado – o ACC, não figurando tal matéria no dispositivo da decisão arbitral. O que o tribunal arbitral fez foi responder às questões colocadas com base na interpretação – errada ou certa, não releva – que fez do ACC. O que está em causa nos autos é um contrato cuja incompletude não foi visada ou prevista pelas partes e que só perante o presente litígio se revelou.

Por outro lado, não se vê que a interpretação (e integração através da já referida “norma hipotética” de conduta) levada a cabo pelo tribunal arbitral tenha tido a virtualidade de criar obrigações adicionais para as Partes, na medida em que se limitou a afirmar que a «Novo Banco» podia ter tomado a decisão de reversão, ainda que com essa decisão devesse assumir o risco das respetivas consequências. Não se alcança, assim, a criação de obrigações adicionais, no quadro do ACC, para qualquer uma das Partes.

O tribunal arbitral limitou-se, assim, a responder às questões colocadas pelas Partes, sendo que estas tinham que, razoavelmente, contar com os dois possíveis desfechos, de resto, antecipadas pelas Partes (resposta afirmativa ou negativa). No caso, o tribunal arbitral respondeu afirmativamente à primeira questão colocada (como pretendido pela Recorrente) e negativamente à segunda questão colocada (como pretendido pelo Recorrido).

O que sucede nos autos é que a Recorrente não concorda com a existência de lacuna (conforme resulta da sua tomada de posição nos autos), considerando que o ACC assume uma completude incompatível com a ideia de lacuna.

E assim se remata.

Acontece que tal entendimento se coloca obviamente no plano da divergência quanto ao mérito da decisão e não no plano de usurpação de poderes conferidos ao tribunal arbitral e de excesso de pronúncia quanto à vinculação ao princípio do dispositivo [Sobre este último vício, v. o Ac. do STJ de 7/5/2020, processo n.º 1079/16, Rel. MARIA DO ROSÁRIO MORGADO, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/.]

Falecem, pois, as Conclusões C. a J. do recurso quanto a estes vícios."

[MTS]